IPÊ
(Programa de publicações do IEP-RP)
Sejam muito bem-vindos(as)
A pandemia causada pelo COVID-19 vem despertando muitas reflexões no grupo do departamento científico do IEP-RP, composto por mim, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, Luís Gustavo Faria Aguiar e Mariana Siqueira Bastos Formighieri, e em todo o grupo do IEP.
Em tempos de muito medo, pânico e angústia, temos nos perguntado: como manter a ciência psicanalítica viva, quando a nossa maior matéria é feita de encontros e de relações?
Nosso primeiro evento da atual gestão precisou ser adiado, e junto com a frustração desta necessidade, vimos nossas mentes também travadas, mesmo que momentaneamente.
Retomar a capacidade de pensar, de produzir ciência, quando o medo entra em cena, é talvez um dos maiores desafios do homem. E este tem sido nosso desafio: manter a ciência psicanalítica viva, quando há angústia e isolamento físico.
Ainda não sabemos a resposta. Precisaremos utilizar da capacidade negativa (tema do evento adiado que ainda acontecerá, mas sem data prevista) para tolerar o não-saber, tolerar a espera do que ainda virá, das necessidades que ainda se imperarão sobre a nossa realidade, das saídas e soluções que ainda encontraremos.
Para isso, acreditamos ser necessário estarmos dispostos a sentir, e assim pensar, e nos movimentar.
Para darmos início ao movimento, estamos lançando o IPÊ: um programa de publicações de textos autorais de membros do IEP, além do compartilhamento de material que nos auxilie nesta jornada de muito crescimento e aprendizado.
Por hora, cientes de que a psicanálise vive de sonhos e dores vividos a dois, acreditamos que ela se manterá viva enquanto três, dez ou 7 bilhões de pessoas estiverem experienciando algo.
“(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia” (Guimarães Rosa)
Carta de lançamento escrita por: Marina Delduca Cilino (Diretora do Departamento Científico do IEP-RP)
Em tempos de muito medo, pânico e angústia, temos nos perguntado: como manter a ciência psicanalítica viva, quando a nossa maior matéria é feita de encontros e de relações?
Nosso primeiro evento da atual gestão precisou ser adiado, e junto com a frustração desta necessidade, vimos nossas mentes também travadas, mesmo que momentaneamente.
Retomar a capacidade de pensar, de produzir ciência, quando o medo entra em cena, é talvez um dos maiores desafios do homem. E este tem sido nosso desafio: manter a ciência psicanalítica viva, quando há angústia e isolamento físico.
Ainda não sabemos a resposta. Precisaremos utilizar da capacidade negativa (tema do evento adiado que ainda acontecerá, mas sem data prevista) para tolerar o não-saber, tolerar a espera do que ainda virá, das necessidades que ainda se imperarão sobre a nossa realidade, das saídas e soluções que ainda encontraremos.
Para isso, acreditamos ser necessário estarmos dispostos a sentir, e assim pensar, e nos movimentar.
Para darmos início ao movimento, estamos lançando o IPÊ: um programa de publicações de textos autorais de membros do IEP, além do compartilhamento de material que nos auxilie nesta jornada de muito crescimento e aprendizado.
Por hora, cientes de que a psicanálise vive de sonhos e dores vividos a dois, acreditamos que ela se manterá viva enquanto três, dez ou 7 bilhões de pessoas estiverem experienciando algo.
“(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia” (Guimarães Rosa)
Carta de lançamento escrita por: Marina Delduca Cilino (Diretora do Departamento Científico do IEP-RP)
TEXTO 10: Quando a arte é perturbadora:
A Psicanálise face à Síndrome de Stendhal(*)
Por muito tempo a arte tem sido empregada como recurso terapêutico em uma diversidade de tratamentos psicológicos. Winnicott (1971/1975) a incluiu entre as experiências transicionais, no mesmo nível do brincar. Desse modo, uma vez que o brincar é terapêutico em si mesmo, a arte também o seria. Porém, a síndrome de Stendhal mostra que a arte pode favorecer uma série de perturbações psicológicas.
A síndrome de Stendhal é também conhecida como síndrome de Florença, não apenas por ter sido identificada nessa localidade, mas principalmente por ser desencadeada pelas características desse lugar. Ela consiste em um conjunto de sintomas psicológicos e psicossomáticos que acomete turistas estrangeiros quando eles estão diante das belas obras de arte dessa cidade. Foi descrita pela primeira vez por Graziella Magherini (1990), que a ela atribuiu o nome de Síndrome de Stendhal em homenagem a esse escritor francês, por conta de um relato feito por ele em seu livro, Roma, Nápoles e Florença, sobre as sensações que experimentou ao visitar a Capela de Santa Croce. Stendhal (1826/1973) referiu ter sentido uma emoção que se aproximava de sensações celestes, teve arritmia, a impressão de que a vida desvanecia e passou a caminhar com medo de cair. Para ele foi um êxtase sublime.
Magherini (1990; 2007) descreveu que as perturbações apresentadas pelos pacientes eram de gravidade variável, como tonturas, taquicardia, palpitações, falta de ar, alucinações visuais e auditivas, desorientação, despersonalização, ataques de pânico, perda da identidade, exaustão e tentativas de destruir as obras de arte que despertavam esses desconfortos. Sua etiologia seria o produto de encontrar-se em uma cidade ou prédio que permite ao visitante maravilhar-se diante de trabalhos de arte do passado. Os sintomas duram entre dois e oito dias, sendo que em alguns casos os pacientes se recuperam bem após esse tempo, mas em outros é necessário hospitalização ou mesmo o repatriamento. Os distúrbios podem ser precipitados por obras de arte e/ou locais diversos de Florença: o quadro “Bacchus” de Caravagio, o Palácio de Bargello, a Capela Brancacci, obras de arte da Galleria degli Uffizi, o quadro “Arca de Noé” de Chagall, o quadro “Juízo Final” de Nardo de Sion, os afrescos de Beato Angelico, bem como simplesmente as ruas e a arquitetura da cidade. No entanto, uma obra mereceu atenção especial, a ponto de receber o status de um subtipo da síndrome de Stendhal: o Davi de Michelangelo. A chamada “Síndrome de Davi” envolve sintomas como sentimentos de prazer sexual e estético diante da escultura, mas também profunda inveja devido à sua perfeição física. Esses sentimentos provocam sérias comoções no paciente, que pode, além de tentar destruir a estátua, literalmente apaixonar-se por ela.
Apesar dessa síndrome ter sido descrita no início da década de 1990, relatos de perturbações diante de cidades históricas e artísticas já existiam bem antes disso. Além de Stendhal (1826/1973), o próprio Freud (1936/1976) narrou sentimentos de alienação e despersonalização após visitar a Acrópole de Atenas. Dostoievsky referiu paralisias e ausência quando se viu diante do quadro “Cristo morto no túmulo” de Hans Hobeins, na Suíça (PALACIOS-SÁNCHEZ et al., 2018). Jung (1949/1986), por sua vez, mencionou que, quando já era idoso, cancelou uma viagem para Roma, que desejou durante toda a sua vida, pelo temor de que o impacto emocional de conhecer antigas estruturas imperiais excedesse as suas capacidades de recepção.
A compreensão dessa síndrome foi objeto de duas abordagens: a neurofisiológica e a psicanalítica. A primeira remete os sintomas a uma overdose cultural que evoca uma reação autonômica anômala. Essa reação se basearia na ação dos ‘neurônios-espelho’, presentes no córtex pré-motor, que são ativados quando uma pessoa realiza uma ação ou observa outra realizando-a. Assim, a observação artística estimula mecanismos que imitam e encarnam emoções, ações ou sensações corporais.
Já a perspectiva psicanalítica é pouco sistematizada, estendendo-se por teorias de vários autores como Freud, Klein, Bion e Winnicott, mas sem haver consenso nesse assunto. De um modo bastante resumido, existe uma compreensão que concebe a obra de arte como capaz de romper defesas e fazer emergir aspectos inconscientes da história do indivíduo. Contudo, segundo Loureiro (2005), não são apenas conteúdos inconscientes e fantasias sexuais e agressivas que irrompem a barragem do recalcado, mas também existem referências à área do não-pensado, do irrepresentável; seria o contato com esta última que evocaria sentimentos persecutórios, de despersonalização e desrealização em alguns pacientes.
Do nosso ponto de vista, o contato com essa área do irrepresentável permitiria entender por que a maioria dos pacientes exibe sintomas de natureza psicótica ou psicossomática, mesmo aqueles que pareciam apresentar uma estrutura de personalidade neurótica. Tal hipótese remete à consideração dos processos de construção de símbolos, de conferir representação ao conteúdo psíquico que não foi mentalizado. As alucinações e as alterações psicossomáticas consistiriam assim em formas primárias de simbolização (BRUNN, 2014). Esse pressuposto vai ao encontro da compreensão de Milner (1950/2010) de que a função do artista seria a de produzir novos símbolos. Nessa perspectiva, o espectador da obra de arte, para compreender a sua mensagem, precisaria despir-se dos símbolos que carrega consigo para assimilar aqueles do artista; seria nesse momento que os sintomas afloram. Os fenômenos de desorientação e despersonalização poderiam ocorrer como parte desse processo, visto que o artista, ao pintar um quadro ou realizar uma escultura, precisa ‘tornar-se’ o objeto que cria, tornando diáfanas as fronteiras entre o eu e o não eu. Já o espectador, ao buscar compreender a intenção do artista, passaria pelo mesmo processo regressivo de indiferenciação eu - não eu. Isso explicaria o relato de muitos pacientes de desejar entrar nos quadros ou sentir que os personagens representados tinham vida e se relacionavam com eles. Nesse contexto, uma determinada qualidade de uma obra de arte específica, em uma pessoa em particular e em um momento peculiar, pode se tornar um “fato selecionado” (BION, 2004), passível de conferir um significado emotivo à obra e de iluminar algum aspecto da vida do paciente. Desse modo, as abordagens psicanalítica e neurofisiológica não seriam concorrentes mas complementares, visto que as bases necessárias a esse processo de fusão entre o artista/espectador e a obra estariam garantidas pelos neurônios-espelho.
Esse caminho para a compreensão da Síndrome de Stendhal parece-nos promissor, embora não esgote todos os vértices desse complexo fenômeno. Em todo caso, constitui uma alternativa interessante a levar em conta nessa empreitada.
_____________________________________________________
(*)Expresso os meus agradecimentos a Ana Valéria Guelli-Ribeiro, orientadora deste estudo.
REFERÊNCIAS:
BION, W. R. Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p.17-20.
BRUNN, A. Introduction. In: _______Formes primaires de symbolisation. Paris: Dunod, 2014, p.1-10.
FREUD, S. (1936). Um distúrbio de memória na Acrópole. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 291-303.
JUNG, C.G. (1949). Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1986.
LOUREIRO, I. Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a síndrome de Stendhal. Psychê – Ano IX, n. 16, p. 97-114, jul.-dez. 2005
MAGHERINI, G. Le syndrome de Stendhal: du Voyage dans les villes d’art. Éditions Sogedin Usher, 1990.
MAGHERINI, G. “Mi sono innamorato di una statua” Oltre la Sindrome di Stendhal. Firenze: Nicomp L. E., 2007.
MILNER, M. (1950). On not being able to paint. Oxfordshire : Routledge, 2010.
PALACIOS-SÁNCHEZ, L.; BOTERO-MENESES, J. S.; PACHÓN, R. P.; HERNÁNDEZ, L. B. P.; TRIANA-MELO, J. P. T.; RAMIREZ-RODRIQUEZ, S. Stendhal syndrome: a clinical and historical overview. Archives of neuropsychiatry, v. 76, n. 2, p. 120-123, 2018.
STENDHAL. (1826). Rome, Naples, Florence. In: ______. Voyages en Italie (textes établis, presentes et annotés par V. del Litto). Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1973.
WINNICOTT, D. W. (1971). O brincar: uma exposição teórica. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 59-77.
A síndrome de Stendhal é também conhecida como síndrome de Florença, não apenas por ter sido identificada nessa localidade, mas principalmente por ser desencadeada pelas características desse lugar. Ela consiste em um conjunto de sintomas psicológicos e psicossomáticos que acomete turistas estrangeiros quando eles estão diante das belas obras de arte dessa cidade. Foi descrita pela primeira vez por Graziella Magherini (1990), que a ela atribuiu o nome de Síndrome de Stendhal em homenagem a esse escritor francês, por conta de um relato feito por ele em seu livro, Roma, Nápoles e Florença, sobre as sensações que experimentou ao visitar a Capela de Santa Croce. Stendhal (1826/1973) referiu ter sentido uma emoção que se aproximava de sensações celestes, teve arritmia, a impressão de que a vida desvanecia e passou a caminhar com medo de cair. Para ele foi um êxtase sublime.
Magherini (1990; 2007) descreveu que as perturbações apresentadas pelos pacientes eram de gravidade variável, como tonturas, taquicardia, palpitações, falta de ar, alucinações visuais e auditivas, desorientação, despersonalização, ataques de pânico, perda da identidade, exaustão e tentativas de destruir as obras de arte que despertavam esses desconfortos. Sua etiologia seria o produto de encontrar-se em uma cidade ou prédio que permite ao visitante maravilhar-se diante de trabalhos de arte do passado. Os sintomas duram entre dois e oito dias, sendo que em alguns casos os pacientes se recuperam bem após esse tempo, mas em outros é necessário hospitalização ou mesmo o repatriamento. Os distúrbios podem ser precipitados por obras de arte e/ou locais diversos de Florença: o quadro “Bacchus” de Caravagio, o Palácio de Bargello, a Capela Brancacci, obras de arte da Galleria degli Uffizi, o quadro “Arca de Noé” de Chagall, o quadro “Juízo Final” de Nardo de Sion, os afrescos de Beato Angelico, bem como simplesmente as ruas e a arquitetura da cidade. No entanto, uma obra mereceu atenção especial, a ponto de receber o status de um subtipo da síndrome de Stendhal: o Davi de Michelangelo. A chamada “Síndrome de Davi” envolve sintomas como sentimentos de prazer sexual e estético diante da escultura, mas também profunda inveja devido à sua perfeição física. Esses sentimentos provocam sérias comoções no paciente, que pode, além de tentar destruir a estátua, literalmente apaixonar-se por ela.
Apesar dessa síndrome ter sido descrita no início da década de 1990, relatos de perturbações diante de cidades históricas e artísticas já existiam bem antes disso. Além de Stendhal (1826/1973), o próprio Freud (1936/1976) narrou sentimentos de alienação e despersonalização após visitar a Acrópole de Atenas. Dostoievsky referiu paralisias e ausência quando se viu diante do quadro “Cristo morto no túmulo” de Hans Hobeins, na Suíça (PALACIOS-SÁNCHEZ et al., 2018). Jung (1949/1986), por sua vez, mencionou que, quando já era idoso, cancelou uma viagem para Roma, que desejou durante toda a sua vida, pelo temor de que o impacto emocional de conhecer antigas estruturas imperiais excedesse as suas capacidades de recepção.
A compreensão dessa síndrome foi objeto de duas abordagens: a neurofisiológica e a psicanalítica. A primeira remete os sintomas a uma overdose cultural que evoca uma reação autonômica anômala. Essa reação se basearia na ação dos ‘neurônios-espelho’, presentes no córtex pré-motor, que são ativados quando uma pessoa realiza uma ação ou observa outra realizando-a. Assim, a observação artística estimula mecanismos que imitam e encarnam emoções, ações ou sensações corporais.
Já a perspectiva psicanalítica é pouco sistematizada, estendendo-se por teorias de vários autores como Freud, Klein, Bion e Winnicott, mas sem haver consenso nesse assunto. De um modo bastante resumido, existe uma compreensão que concebe a obra de arte como capaz de romper defesas e fazer emergir aspectos inconscientes da história do indivíduo. Contudo, segundo Loureiro (2005), não são apenas conteúdos inconscientes e fantasias sexuais e agressivas que irrompem a barragem do recalcado, mas também existem referências à área do não-pensado, do irrepresentável; seria o contato com esta última que evocaria sentimentos persecutórios, de despersonalização e desrealização em alguns pacientes.
Do nosso ponto de vista, o contato com essa área do irrepresentável permitiria entender por que a maioria dos pacientes exibe sintomas de natureza psicótica ou psicossomática, mesmo aqueles que pareciam apresentar uma estrutura de personalidade neurótica. Tal hipótese remete à consideração dos processos de construção de símbolos, de conferir representação ao conteúdo psíquico que não foi mentalizado. As alucinações e as alterações psicossomáticas consistiriam assim em formas primárias de simbolização (BRUNN, 2014). Esse pressuposto vai ao encontro da compreensão de Milner (1950/2010) de que a função do artista seria a de produzir novos símbolos. Nessa perspectiva, o espectador da obra de arte, para compreender a sua mensagem, precisaria despir-se dos símbolos que carrega consigo para assimilar aqueles do artista; seria nesse momento que os sintomas afloram. Os fenômenos de desorientação e despersonalização poderiam ocorrer como parte desse processo, visto que o artista, ao pintar um quadro ou realizar uma escultura, precisa ‘tornar-se’ o objeto que cria, tornando diáfanas as fronteiras entre o eu e o não eu. Já o espectador, ao buscar compreender a intenção do artista, passaria pelo mesmo processo regressivo de indiferenciação eu - não eu. Isso explicaria o relato de muitos pacientes de desejar entrar nos quadros ou sentir que os personagens representados tinham vida e se relacionavam com eles. Nesse contexto, uma determinada qualidade de uma obra de arte específica, em uma pessoa em particular e em um momento peculiar, pode se tornar um “fato selecionado” (BION, 2004), passível de conferir um significado emotivo à obra e de iluminar algum aspecto da vida do paciente. Desse modo, as abordagens psicanalítica e neurofisiológica não seriam concorrentes mas complementares, visto que as bases necessárias a esse processo de fusão entre o artista/espectador e a obra estariam garantidas pelos neurônios-espelho.
Esse caminho para a compreensão da Síndrome de Stendhal parece-nos promissor, embora não esgote todos os vértices desse complexo fenômeno. Em todo caso, constitui uma alternativa interessante a levar em conta nessa empreitada.
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(*)Expresso os meus agradecimentos a Ana Valéria Guelli-Ribeiro, orientadora deste estudo.
REFERÊNCIAS:
BION, W. R. Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p.17-20.
BRUNN, A. Introduction. In: _______Formes primaires de symbolisation. Paris: Dunod, 2014, p.1-10.
FREUD, S. (1936). Um distúrbio de memória na Acrópole. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 291-303.
JUNG, C.G. (1949). Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1986.
LOUREIRO, I. Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a síndrome de Stendhal. Psychê – Ano IX, n. 16, p. 97-114, jul.-dez. 2005
MAGHERINI, G. Le syndrome de Stendhal: du Voyage dans les villes d’art. Éditions Sogedin Usher, 1990.
MAGHERINI, G. “Mi sono innamorato di una statua” Oltre la Sindrome di Stendhal. Firenze: Nicomp L. E., 2007.
MILNER, M. (1950). On not being able to paint. Oxfordshire : Routledge, 2010.
PALACIOS-SÁNCHEZ, L.; BOTERO-MENESES, J. S.; PACHÓN, R. P.; HERNÁNDEZ, L. B. P.; TRIANA-MELO, J. P. T.; RAMIREZ-RODRIQUEZ, S. Stendhal syndrome: a clinical and historical overview. Archives of neuropsychiatry, v. 76, n. 2, p. 120-123, 2018.
STENDHAL. (1826). Rome, Naples, Florence. In: ______. Voyages en Italie (textes établis, presentes et annotés par V. del Litto). Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1973.
WINNICOTT, D. W. (1971). O brincar: uma exposição teórica. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 59-77.
Por: Valeria Barbieri é professora associada aposentada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Possui mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), pós-doutorado em Psicanálise e Psicologia Clínica pela Université de Paris Denis-Diderot - Paris 7 - Sorbonne Paris-Cité, e livre-docência em Psicodiagnóstico: enfoque avaliativo e interventivo pela FFCLRP-USP. É psicóloga clínica e coordenadora do Projeto Fênix-USP Promoção e intervenções em saúde mental no contexto da pandemia do COVID-19. É orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP nos níveis de Mestrado e Doutorado. Seus principais temas de investigação são as relações entre a experiência parental e o desenvolvimento do self infantil na saúde e na patologia em uma perspectiva transcultural, estudos estes realizados em cooperações científicas com universidades francesas e de outros países da Europa.
TEXTO 09: Uma reflexão psicanalítica sobre habitar e comunicar-se em novos territórios
Aceitei muito agradecida o convite do Departamento Científico de escrever para o IPÊ, um projeto delicado originário de mentes criativas em tempos difíceis, cuidado pelos Departamentos Científico (Marina Delduca Cilino, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, Luís Gustavo Faria Aguiar e Mariana Siqueira Bastos Formighieri) e de Relações Institucionais (Rhianne Yukana Ishihara Souza, Lucas dos Santos Lotério e Nádia Marina Bonardi Trebi).
Conto a história dessa minha experiência de sentir, apesar do medo. O perigo da contaminação pelo coronavírus e a forma diversa com a qual ataca cada corpo, passando despercebido ou devastando a capacidade de reagir do organismo, coloca-nos diante da ameaça constante da morte. Escrevo a partir das minhas inquietações nesse momento de uma pandemia que teve por consequência o isolamento social a fim de evitar a propagação maior do vírus. Szymborska (2011, p. 36) com seu poema é oportuna:
Conto a história dessa minha experiência de sentir, apesar do medo. O perigo da contaminação pelo coronavírus e a forma diversa com a qual ataca cada corpo, passando despercebido ou devastando a capacidade de reagir do organismo, coloca-nos diante da ameaça constante da morte. Escrevo a partir das minhas inquietações nesse momento de uma pandemia que teve por consequência o isolamento social a fim de evitar a propagação maior do vírus. Szymborska (2011, p. 36) com seu poema é oportuna:
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal
Escrever para não (deixar) morrer a fim de ajudar a entender o que está se passando. A turbulência vivida não paralisou nem os infortúnios nem a disponibilidade para a descoberta e construção de tesouros. Medos simultâneos da pandemia, da política, da economia. O isolamento foi temporariamente rompido pelo manifesto de uma multidão na ocasião da morte de George Floyd. Deitou-se no chão solidária à dor não escutada do homem sufocado, apesar de sua súplica. Inúmeras vezes ecoou “I can’t breathe!”. Sua filha traz uma lição “meu pai está mudando o mundo”. Ainda morre-se de racismo, de corrupção, de impotência. Miguel, o menino brasileiro pobre e assustado, cai do edifício. A desigualdade fica evidente, é muito diferente enfrentar o mar revolto quando se está em um grande navio ou quando se segura em um galho de árvore. A vitrine brasileira expõe a lúgubre desvalorização da educação e da ciência, a subserviência política, a submissão. Um homem revoltado arranca as cruzes plantadas na areia do Rio de Janeiro para homenagear os mortos pela Covid-19. Outro homem replanta, com a força e o sofrimento de quem perdeu um filho para o vírus, uma daquelas cruzes representava sua dor. Arrancar as cruzes é negar a própria mente.
Tempos tristes... de silêncio, de alguns sons. Descobri a música minimalista de Arvo Pärt para acalentar o coração, música doce com sinos, na “técnica tintinabular” (VOTTA JUNIOR, 2009, p. 10) criada pelo compositor após anos de silêncio composicional de sua crise artística e espiritual. Também é tempo de criar oportunidades, ficar mais perto de situações caseiras. Os dentinhos não pararam de cair, as aulas são online, as lições de casa continuaram, mesmo que às vezes aos protestos! A solidariedade aparece, os amiguinhos gravam seus vídeos de parabéns. Além dos jogos online para se encontrar, tem o Tik Tok, um jeito de mostrar as novidades dançantes, olhar e ser olhado. “Mãe, bugou!”. O que será isso? Outro vocabulário! Entre uma conversa e outra, despropositada, surge a pergunta “mas porque tem que ter esse coronavírus?”. Não sabemos quando estamos sendo infectados nem como estamos afetados, muito menos como está o infantil dependente que habita nosso psiquismo, o infantil na criança, no adolescente, no adulto. É preciso tempo para compreender essa experiência emocional vivida.
Preocupações com a saúde, com a família, com as economias, medos intensos. Os moinhos de ventos não pararam de soprar. Desmatamento para “passar a boiada”, nuvem de gafanhotos, terremotos, ciclones. País desmatado esse nosso, podia ser gigante pela própria natureza. Paradoxalmente, a natureza constantemente violentada respirou um pouco, mostrou-se. Bonitas paisagens, águas límpidas. Em seu livro Gênesis, publicado em 2013, o fotógrafo Sebastião Salgado fez uma homenagem fotográfica ao nosso planeta em seu estado natural. Trata-se de um hino visual ao esplendor, à fartura e à fragilidade da Terra, que só pude olhar com atenção nesse momento, na troca pelo tempo do trânsito. Dentre muitas, encontrei uma foto que me chamou a atenção pensando no que estamos vivendo. Era uma casa no alto de uma árvore (p. 148-149), não como o brinquedo para as crianças, mas como morada, um lugar de habitação. A foto foi tirada entre fevereiro e março de 2010. O lugar foi encontrado pelo fotógrafo na pesquisa de santuários “ilhas isoladas que oferecem as condições ideais para o desenvolvimento e a sobrevivência de flora e fauna endêmicas” (SALGADO, 2013, p. 117), refúgios inevitavelmente ameaçados de extinção. Na Papua Ocidental (Indonésia), os korowai, uma tribo tradicional que esteve em total isolamento até 1970, vivem em pequenos grupos familiares em casas nas árvores, construídas entre 6 a 25 metros acima do chão. Essas casas podem chegar até os 40 metros de altura, se houver uma disputa com vizinhos ou comunidade próxima, por segurança. É a luta da espécie humana pela vida. Pela segurança precisamos ficar distantes dos nossos vizinhos por aqui, cuidado conosco e com o outro, escolhemos ficar em casa. Estamos impedidos de sair, de encontrar as pessoas, de conviver com a família, amigos, de abraçar, conversar. Como vamos pertencer se não podemos estar junto? Como explorar e habitar novos territórios de convivência, de trabalho, de lazer?
Uma mudança abrupta se impôs, nunca mais seremos os mesmos. É preciso aceitar a pressão da realidade. Se não dá para movimentar para fora, o movimento é para dentro, e esse pode ser mais ameaçador. Pode ser também oportunidade para observar mente e corpo com atenção, com a chance de refletir, repensar, reparar. Um estranhamento inicial deu lugar à urgência. O isolamento precisou ser rápido assim como as decisões sobre como realizar um trabalho terapêutico orientado pela psicanálise de modo virtual. Novas linguagens tecnológicas, novos códigos, plataformas. Da trágica mudança me lembrei do humor do samba “Pelo telefone”:
Tempos tristes... de silêncio, de alguns sons. Descobri a música minimalista de Arvo Pärt para acalentar o coração, música doce com sinos, na “técnica tintinabular” (VOTTA JUNIOR, 2009, p. 10) criada pelo compositor após anos de silêncio composicional de sua crise artística e espiritual. Também é tempo de criar oportunidades, ficar mais perto de situações caseiras. Os dentinhos não pararam de cair, as aulas são online, as lições de casa continuaram, mesmo que às vezes aos protestos! A solidariedade aparece, os amiguinhos gravam seus vídeos de parabéns. Além dos jogos online para se encontrar, tem o Tik Tok, um jeito de mostrar as novidades dançantes, olhar e ser olhado. “Mãe, bugou!”. O que será isso? Outro vocabulário! Entre uma conversa e outra, despropositada, surge a pergunta “mas porque tem que ter esse coronavírus?”. Não sabemos quando estamos sendo infectados nem como estamos afetados, muito menos como está o infantil dependente que habita nosso psiquismo, o infantil na criança, no adolescente, no adulto. É preciso tempo para compreender essa experiência emocional vivida.
Preocupações com a saúde, com a família, com as economias, medos intensos. Os moinhos de ventos não pararam de soprar. Desmatamento para “passar a boiada”, nuvem de gafanhotos, terremotos, ciclones. País desmatado esse nosso, podia ser gigante pela própria natureza. Paradoxalmente, a natureza constantemente violentada respirou um pouco, mostrou-se. Bonitas paisagens, águas límpidas. Em seu livro Gênesis, publicado em 2013, o fotógrafo Sebastião Salgado fez uma homenagem fotográfica ao nosso planeta em seu estado natural. Trata-se de um hino visual ao esplendor, à fartura e à fragilidade da Terra, que só pude olhar com atenção nesse momento, na troca pelo tempo do trânsito. Dentre muitas, encontrei uma foto que me chamou a atenção pensando no que estamos vivendo. Era uma casa no alto de uma árvore (p. 148-149), não como o brinquedo para as crianças, mas como morada, um lugar de habitação. A foto foi tirada entre fevereiro e março de 2010. O lugar foi encontrado pelo fotógrafo na pesquisa de santuários “ilhas isoladas que oferecem as condições ideais para o desenvolvimento e a sobrevivência de flora e fauna endêmicas” (SALGADO, 2013, p. 117), refúgios inevitavelmente ameaçados de extinção. Na Papua Ocidental (Indonésia), os korowai, uma tribo tradicional que esteve em total isolamento até 1970, vivem em pequenos grupos familiares em casas nas árvores, construídas entre 6 a 25 metros acima do chão. Essas casas podem chegar até os 40 metros de altura, se houver uma disputa com vizinhos ou comunidade próxima, por segurança. É a luta da espécie humana pela vida. Pela segurança precisamos ficar distantes dos nossos vizinhos por aqui, cuidado conosco e com o outro, escolhemos ficar em casa. Estamos impedidos de sair, de encontrar as pessoas, de conviver com a família, amigos, de abraçar, conversar. Como vamos pertencer se não podemos estar junto? Como explorar e habitar novos territórios de convivência, de trabalho, de lazer?
Uma mudança abrupta se impôs, nunca mais seremos os mesmos. É preciso aceitar a pressão da realidade. Se não dá para movimentar para fora, o movimento é para dentro, e esse pode ser mais ameaçador. Pode ser também oportunidade para observar mente e corpo com atenção, com a chance de refletir, repensar, reparar. Um estranhamento inicial deu lugar à urgência. O isolamento precisou ser rápido assim como as decisões sobre como realizar um trabalho terapêutico orientado pela psicanálise de modo virtual. Novas linguagens tecnológicas, novos códigos, plataformas. Da trágica mudança me lembrei do humor do samba “Pelo telefone”:
O chefe da polícia
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
Foi concebido em um terreiro de candomblé, numa criação conjunta e cheia de improvisações, provavelmente o primeiro samba gravado no Brasil, em 1916 (SILVA, sem data). Pelo telefone começava-se a fazer um monte de coisas, como avisar a um desavisado de que alguma coisa aconteceria. Oitenta anos depois, Gilberto Gil canta “Pela internet”:
Eu quero entrar na rede para contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze
Tem um videopôquer para se jogar.
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze
Tem um videopôquer para se jogar.
Trabalho remoto, palavras, sons e silêncio agora atravessando o fio condutor do computador ou celular, telefone, via Skype, Whatsapp e outros. Fio para nutrir e ser nutrido. Certa simetria com o paciente, vivemos um acontecimento em comum. Fiquei surpresa com a disponibilidade das pessoas de ocupar esse novo território. No começo, era mais cansativo pela privação dos elementos sensoriais, mas sobretudo pelo distanciamento, pelo não presencial. Primeiro veio a exploração, depois a ocupação. Passando da fase aguda à crônica, as coisas pareceram acomodar-se, mesmo que com o incômodo da incerteza, com a perda da condição de certo conforto. Mas, como disse Júlia Kristeva (2020) “quando tivemos conforto?”. O trabalho com o inconsciente é desconfortante. Ainda assim, é surpreendente poder fazer um bom trabalho através de um aplicativo. Kristeva (2020) contou que procura pensar no telefone não como um artifício tecnológico, num gesto protetivo, mas como uma membrana que nos permite entrar através da nossa voz na vida do paciente, escutar seu trauma potencial e entendê-lo. Pacientes com imensas angústias de desintegração aceitaram conversar conosco dessa maneira. Embora se tenha mudado a maneira formal de atender, mantemos nossa posição. As pessoas estão evoluindo, é possível fazer um trabalho relevante pelo aplicativo. Diante desse desafio, é preciso aprender a escutar pelo telefone, ver o paciente através de uma tela, conhecer outras dimensões de presença, mesmo que aquela que estamos acostumados continue sendo o nosso desejo e esperança ao sairmos dessa situação.
Referências bibliográficas
DONGA; ALMEIDA, M. Pelo telefone. 1916.
GIL, G. Pela internet. 1997.
KRISTEVA, J. La situation virale et ses résonances psychanalaytiques. Videoconferência realizada no dia 14 de junho de 2020 pela International Psychoanalytical Association – IPA.
SALGADO, S. Gênesis. Colônia, Alemanha: Editora Taschen, 2013.
SILVA, F. Pelo telefone e a história do samba. Disponível em https://musicabrasilis.org.br/temas/pelo-telefone-e-historia-do-samba. Acessado em 03 de julho de 2020.
SZYMBORSKA. W. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
VOTTA JUNIOR, A. A técnica tintinanbular de Arvo Pärt. Dissertação (Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2009.
Referências bibliográficas
DONGA; ALMEIDA, M. Pelo telefone. 1916.
GIL, G. Pela internet. 1997.
KRISTEVA, J. La situation virale et ses résonances psychanalaytiques. Videoconferência realizada no dia 14 de junho de 2020 pela International Psychoanalytical Association – IPA.
SALGADO, S. Gênesis. Colônia, Alemanha: Editora Taschen, 2013.
SILVA, F. Pelo telefone e a história do samba. Disponível em https://musicabrasilis.org.br/temas/pelo-telefone-e-historia-do-samba. Acessado em 03 de julho de 2020.
SZYMBORSKA. W. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
VOTTA JUNIOR, A. A técnica tintinanbular de Arvo Pärt. Dissertação (Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2009.
Por: Maria Ângela Favero-Nunes. Psicóloga Clínica, Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP, com estágio de doutorado na Université René Descartes - Paris 5. Professora Titular e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Saúde Mental nos Contextos Institucionais da Universidade Paulista - Unip. Membro integrante da Diretoria de Ensino e docente do curso de Especialização em Teorias e Técnicas Psicoterápicas do IEP-RP. Membro Efetivo da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família - ABPCF.
TEXTO 08: Querida Kitty, entreMentes, 2020
Anne Frank foi uma adolescente judia que ganhou um caderno de capa dura dias antes de ter que se esconder do avanço nazista em um secreto anexo ao prédio comercial que seu pai trabalhava. O caderno contém as cartas que escrevia a Kitty, sua grande amiga, ou melhor, o seu diário: “O papel é mais paciente que os homens.” (FRANK, 2018, p. 7). Anne endereçou a Kitty os mais diversos conteúdos, de acontecimentos do mundo e do anexo a percepções, emoções e ideias. Numa dessas cartas, lê-se que Anne sente Margot, sua irmã mais velha, tentando tornar-se sua confidente, mas escreve “(...) não posso dizer tudo para ela. É simpática e boa, mas um tanto acadêmica quando conversamos sobre coisas profundas. (...) Estamos sempre juntas e eu não queria ter a minha confidente sempre tão perto” (FRANK, 2018, p. 122). A que Anne está se referindo como necessário para o estabelecimento de uma relação confiável?
Entrementes 2020, o privado tem sido mais exposto: pedaços da casa visualizados virtualmente de fora, parte de diálogos domésticos expostos na internet, cenas íntimas vazadas, bem como uma parte importante da vida, até então de competência mais individual, tornaram-se mais suscetíveis a uma ordem social. É de onde eu parto para aqui escrever, tentando localizar meu incômodo com uma exposição perante as câmeras de meus filhos em seus agora compromissos on line e, mais amplamente, desta redefinição da minha casa. Privado e social/público tem apresentado novos limites, que podem se encaminhar para uma confusão, ou para um endereço único. O quanto isso pode repercutir no funcionamento mental dos indivíduos e na díade terapêutica? Diante de algo novo, num contexto em que ainda não foi possível aprender pela experiência, estaríamos mais suscetíveis a agir sob pressupostos básicos?
Vázquez (2015) ressalta a suscetibilidade aos grupos de supostos básicos como defesa, havendo um desejo de proteção e gratificação advindas do grupo. Tais grupos, segundo Bion (1961/1975), parecem funcionar apoiados numa suposição básica, que nunca foi combinada previamente entre seus membros, mas que ocorre de modo inconsciente e automático. O autor considerava comum a estes grupos a valência, condição do indivíduo de “combinar-se instantaneamente com outros indivíduos segundo um padrão estabelecido de comportamento” (BION, 1961/1975, p. 163). Ele também observou que nos grupos de supostos básicos é comum a descrença na capacidade de aprender pela experiência.
Em linhas gerais, o funcionamento dos grupos de supostos básicos baseia-se na ação recíproca de uma tríade entre as necessidades individuais, a mentalidade de grupo e a cultura (BION, 1961/1975). A mentalidade grupal é a vontade do grupo expressa de forma unânime; a cultura grupal diz respeito aos comportamentos advindos do conflito entre a mentalidade grupal e aquilo que o indivíduo deseja, incluindo “a estrutura que o grupo atinge em qualquer momento determinado, as ocupações que persegue e a organização que adota” (Ibid, p. 47). Bion (1961/1975) descreve ainda que há uma tendência, por parte do indivíduo destes grupos, de ignorar qualquer atividade intelectual dissonante da suposição básica.
Neste sentido, Schneider (2015) afirma que os postulados de Bion envolvendo a relação entre a mente individual e sua capacidade para pensar, as mentalidades dos grupos nos quais o indivíduo está inserido e estados corporais deste constituem importante contribuição à psicanálise. Ele chama a atenção para a constante presença de fenômenos grupais, mesmo na díade analítica, reconhecendo mentalidades grupais na análise de indivíduos.
É possível considerar a colocação acerca de Margot, além de seu pertencimento ao grupo familiar, como fuga para fora da dupla: respaldado por um grupo (o acadêmico), fuga rumo a um logradouro coletivo. Em consonância com tal perspectiva, Kitty pode ser considerada um espaço salvaguardado, endereço particular, onde Anne pôde recolher e pensar seus próprios pensamentos. Reflexões acerca desses lugares parecem importantes para o trabalho analítico: ao fazer um apanhado do desenvolvimento de determinadas teorias psicanalíticas, Meltzer (2009) escreveu:
Entrementes 2020, o privado tem sido mais exposto: pedaços da casa visualizados virtualmente de fora, parte de diálogos domésticos expostos na internet, cenas íntimas vazadas, bem como uma parte importante da vida, até então de competência mais individual, tornaram-se mais suscetíveis a uma ordem social. É de onde eu parto para aqui escrever, tentando localizar meu incômodo com uma exposição perante as câmeras de meus filhos em seus agora compromissos on line e, mais amplamente, desta redefinição da minha casa. Privado e social/público tem apresentado novos limites, que podem se encaminhar para uma confusão, ou para um endereço único. O quanto isso pode repercutir no funcionamento mental dos indivíduos e na díade terapêutica? Diante de algo novo, num contexto em que ainda não foi possível aprender pela experiência, estaríamos mais suscetíveis a agir sob pressupostos básicos?
Vázquez (2015) ressalta a suscetibilidade aos grupos de supostos básicos como defesa, havendo um desejo de proteção e gratificação advindas do grupo. Tais grupos, segundo Bion (1961/1975), parecem funcionar apoiados numa suposição básica, que nunca foi combinada previamente entre seus membros, mas que ocorre de modo inconsciente e automático. O autor considerava comum a estes grupos a valência, condição do indivíduo de “combinar-se instantaneamente com outros indivíduos segundo um padrão estabelecido de comportamento” (BION, 1961/1975, p. 163). Ele também observou que nos grupos de supostos básicos é comum a descrença na capacidade de aprender pela experiência.
Em linhas gerais, o funcionamento dos grupos de supostos básicos baseia-se na ação recíproca de uma tríade entre as necessidades individuais, a mentalidade de grupo e a cultura (BION, 1961/1975). A mentalidade grupal é a vontade do grupo expressa de forma unânime; a cultura grupal diz respeito aos comportamentos advindos do conflito entre a mentalidade grupal e aquilo que o indivíduo deseja, incluindo “a estrutura que o grupo atinge em qualquer momento determinado, as ocupações que persegue e a organização que adota” (Ibid, p. 47). Bion (1961/1975) descreve ainda que há uma tendência, por parte do indivíduo destes grupos, de ignorar qualquer atividade intelectual dissonante da suposição básica.
Neste sentido, Schneider (2015) afirma que os postulados de Bion envolvendo a relação entre a mente individual e sua capacidade para pensar, as mentalidades dos grupos nos quais o indivíduo está inserido e estados corporais deste constituem importante contribuição à psicanálise. Ele chama a atenção para a constante presença de fenômenos grupais, mesmo na díade analítica, reconhecendo mentalidades grupais na análise de indivíduos.
É possível considerar a colocação acerca de Margot, além de seu pertencimento ao grupo familiar, como fuga para fora da dupla: respaldado por um grupo (o acadêmico), fuga rumo a um logradouro coletivo. Em consonância com tal perspectiva, Kitty pode ser considerada um espaço salvaguardado, endereço particular, onde Anne pôde recolher e pensar seus próprios pensamentos. Reflexões acerca desses lugares parecem importantes para o trabalho analítico: ao fazer um apanhado do desenvolvimento de determinadas teorias psicanalíticas, Meltzer (2009) escreveu:
Segundo essa teoria, toda função criadora considerada artística, científica, tem suas raízes na criatividade desses objetos internos e essa criatividade depende dos objetos internos terem permissão para retirar-se para sua câmara nupcial e renovar sua combinação um com o outro. Evidentemente, o trabalho psicanalítico nos faz saber que forças tremendas da personalidade se alinham para não permitir essa conjunção. (MELTZER, 2009, p. 406)
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No que se refere ao pensamento criativo, Vázquez (2015) ressaltou a perda deste diante da mentalidade grupal, destacando que, sob o domínio de fantasias grupais inconscientes, impossibilita-se o aprender pela experiência e adaptabilidade ao novo, uma vez que o que não se ajusta a esta vontade que exige manifestação unânime provoca medo de subtração do status quo grupal. Para ela, o pensar, que permite adiar e suportar a espera, pode ser visto pelo grupo de suposto básico como um risco à gratificação das demandas imediatas dele e é percebido como uma ameaça ao suposto básico. Assim, considera necessário um trabalho em direção à alteridade para escapar das armadilhas dos supostos básicos.
Nestas considerações, Vázquez (2015) destacou que Bion considerou a verdade sendo oriunda de uma “verdade em comum”, estabelecida na relação mãe e bebê, com uma mãe “continente”, sentindo junto com o bebê e oferecendo tempo e espaço para suas necessidades. Neste contexto, Bion identificou a reverie da mãe como um dos fatores da função-alfa: “A capacidade de reverie da mãe é o órgão receptor da colheita de sensações que o bebê, através de seu consciente, experimenta em relação a si mesmo.” (BION, 1962/1994, p. 134). Cabe à função alfa desenvolver um caráter minimamente simbólico a estímulos e sensações brutas oriundas da realidade interna ou externa, tornando a matéria bruta da realidade pensável (BLÉANDONU, 1993). Se a função alfa falhar, os elementos, permanecendo brutos, somente se prestam à eliminação motora ou alucinatória, ou se produz pensamento concreto. O aprender com a experiência está atrelado à função alfa. Assim, sem a função alfa, não se pode sonhar (BLÉANDONU, 1993).
Vázquez (2015) explicou que, se houver fracasso deste processo, a capacidade de pensar fica comprometida, o que, somado à fragilidade humana, pode predispor o indivíduo a recorrer aos supostos básicos como defesa. Se bem sucedida, a relação mãe-bebê estabelece um continente adequado e o Outro passa a ter papel importante no desenvolvimento de recursos numa relação de cooperação, no sentido conferido por Bion, possibilitando o aprender com a experiência. Se assim for, abre-se possibilidade para o pensar, tanto em grupo quanto individualmente, com maior proteção em relação aos grupos de supostos básicos e mentalidade grupal.
No recorte trazido inicialmente nesta reflexão, se por um lado as colocações de Anne sobre Margot sugerem que esta não oferecia uma relação continente para suas particularidades, Anne sinalizou endereçá-las ao papel/função “Kitty”, “papel paciente”, conforme citado no primeiro parágrafo. Kitty extrapola as folhas do caderno de capa dura, constituindo um espaço com possibilidade de simbolização, podendo-se fazer uma aproximação com a função-alfa. Metaforicamente inseridos em anexo(s, secretos?), entrementes 2020, caberiam destinatários e remetentes desse papel, onde é possível sonhar? Sonhos? Estes, querida Kitty, são matéria para um outro dia.
__________________________
Meus agradecimentos especiais à Professora Dra. Adriana Salvitti, orientadora da monografia “Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell”, trabalho que baseou este artigo.
Agradeço ao IPÊ/IEP-RP o convite à escrita, em especial a Marina, Luís e Ana, pelos generosos espaços de trocas.
Referências:
BASTOS-FORMIGHIERI, M.S. Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell. Monografia (especialização) – FATECE/IEPRP, Ribeirão Preto, 2020.
BION, W. R. (1961). Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 2ª.ed.
_____. UMA TEORIA DO PENSAR (1962). Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.
BLÉANDONU, G. Wilfred R. Bion: a vida e a obra, 1897-1979. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1993, 268p.
FRANK, A. O diário de Anne Frank. Jandira, SP: Principis, 2018, 192p.
MELTZER, D. Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 26, n. 3, p. 397-408, 1992.
SCHNEIDER, J. A. Bions’s thinking about groups: a study of influence and originality. Psychoanalytic Quartely,vol. 84, n.2, p. 415-440, p. 2015.
VÁZQUEZ, S. Abrirse al pensamiento, abrirse al Outro: una reflexión sobre el respeto y la alteridad en Wilfred R. Bion y Emmanuel Lévinas. Desafios, vol. 27, n. 2, p. 187-217, 2015.
Nestas considerações, Vázquez (2015) destacou que Bion considerou a verdade sendo oriunda de uma “verdade em comum”, estabelecida na relação mãe e bebê, com uma mãe “continente”, sentindo junto com o bebê e oferecendo tempo e espaço para suas necessidades. Neste contexto, Bion identificou a reverie da mãe como um dos fatores da função-alfa: “A capacidade de reverie da mãe é o órgão receptor da colheita de sensações que o bebê, através de seu consciente, experimenta em relação a si mesmo.” (BION, 1962/1994, p. 134). Cabe à função alfa desenvolver um caráter minimamente simbólico a estímulos e sensações brutas oriundas da realidade interna ou externa, tornando a matéria bruta da realidade pensável (BLÉANDONU, 1993). Se a função alfa falhar, os elementos, permanecendo brutos, somente se prestam à eliminação motora ou alucinatória, ou se produz pensamento concreto. O aprender com a experiência está atrelado à função alfa. Assim, sem a função alfa, não se pode sonhar (BLÉANDONU, 1993).
Vázquez (2015) explicou que, se houver fracasso deste processo, a capacidade de pensar fica comprometida, o que, somado à fragilidade humana, pode predispor o indivíduo a recorrer aos supostos básicos como defesa. Se bem sucedida, a relação mãe-bebê estabelece um continente adequado e o Outro passa a ter papel importante no desenvolvimento de recursos numa relação de cooperação, no sentido conferido por Bion, possibilitando o aprender com a experiência. Se assim for, abre-se possibilidade para o pensar, tanto em grupo quanto individualmente, com maior proteção em relação aos grupos de supostos básicos e mentalidade grupal.
No recorte trazido inicialmente nesta reflexão, se por um lado as colocações de Anne sobre Margot sugerem que esta não oferecia uma relação continente para suas particularidades, Anne sinalizou endereçá-las ao papel/função “Kitty”, “papel paciente”, conforme citado no primeiro parágrafo. Kitty extrapola as folhas do caderno de capa dura, constituindo um espaço com possibilidade de simbolização, podendo-se fazer uma aproximação com a função-alfa. Metaforicamente inseridos em anexo(s, secretos?), entrementes 2020, caberiam destinatários e remetentes desse papel, onde é possível sonhar? Sonhos? Estes, querida Kitty, são matéria para um outro dia.
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Meus agradecimentos especiais à Professora Dra. Adriana Salvitti, orientadora da monografia “Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell”, trabalho que baseou este artigo.
Agradeço ao IPÊ/IEP-RP o convite à escrita, em especial a Marina, Luís e Ana, pelos generosos espaços de trocas.
Referências:
BASTOS-FORMIGHIERI, M.S. Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell. Monografia (especialização) – FATECE/IEPRP, Ribeirão Preto, 2020.
BION, W. R. (1961). Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 2ª.ed.
_____. UMA TEORIA DO PENSAR (1962). Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.
BLÉANDONU, G. Wilfred R. Bion: a vida e a obra, 1897-1979. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1993, 268p.
FRANK, A. O diário de Anne Frank. Jandira, SP: Principis, 2018, 192p.
MELTZER, D. Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 26, n. 3, p. 397-408, 1992.
SCHNEIDER, J. A. Bions’s thinking about groups: a study of influence and originality. Psychoanalytic Quartely,vol. 84, n.2, p. 415-440, p. 2015.
VÁZQUEZ, S. Abrirse al pensamiento, abrirse al Outro: una reflexión sobre el respeto y la alteridad en Wilfred R. Bion y Emmanuel Lévinas. Desafios, vol. 27, n. 2, p. 187-217, 2015.
Por: Mariana S. B. Formighieri. Graduação em Psicologia (CRP: 06/73712) e Mestrado pela FFCL/RP-USP, Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP/RP, membro integrante e diretora suplente do Departamento Científico deste.
Texto 07: Há sempre tempo de flor(e)ser
Uma reflexão sobre a capacidade de pensar
Começo esse texto pensando onde será que ele vai dar. Será que vou conseguir pensar ou meu receio e alegria com esse convite inibirão meu processo criativo? Será possível escrever aqui tudo que penso? Será possível pensar tudo que escrevo? Ou, indo um pouco além, será possível pensar tudo que me ocorre neste instante? A alegria, com que inicio esse texto, vai logo abrindo espaço e rapidamente certa frustração toma seu lugar. Acho que é porque vou me aproximando do que, paradoxalmente, quero tentar falar: nossa capacidade de pensar é sempre limitada! Não há jeito mais gentil de dizer isso, essa é a realidade e precisamos enfrentá-la em algum momento da vida.
Neste sentido, há alguns dias (ou meses talvez), venho tentando pensar sobre uma frase que li sobre a pandemia e a necessária quarentena que estamos tentando fazer. A frase era a seguinte: quanto mais a quarentena funcionar, mais ela parecerá desnecessária. Assim que a ouvi, o primeiro pensamento que me ocorreu foi que no processo analítico isso também acontece. Inventei uma nova frase que foi o pontapé inicial para essa reflexão: quanto mais um processo de psicoterapia funciona, mais ele parece desnecessário. Não sei vocês, mas falando em primeira pessoa, já vivi muito isso em minha análise e também com os generosos pacientes que me fazem companhia.
Normalmente inventamos um jeito de chegar até à análise ou psicoterapia e, independentemente do jeito que cada um arruma para iniciar essa difícil missão, geralmente vem junto um pedido de ajuda, conserto ou salvação. E, nós, tendo real clareza ou não desse pedido, o firmamos, sentados em nossas poltronas confortáveis e o selamos com o contrato verbal. Miguel Marques (2018) disse, certa vez, que ao recebermos um paciente estamos fazendo algo muito sério, estamos abrindo nossas portas, que estão longe de serem apenas as concretas, e estas vão muito além das fronteiras do consultório. Penso que não há momento mais propício para entendermos essa afirmação. E, se nos abrimos para os que nos chegam, eles também podem (ou não) se abrir para nós. Mas abertura para quê? Acho que aí mora a questão, pois não há de antemão como saber. E quando não há garantias que nos deixem seguros, o que inclusive é a nossa lida diária, corremos risco. Pode ser de vida ou de morte, mas não deixa de ser risco.
Pode-se instalar, assim, o medo de sentir medo. Chico Buarque (2019), já dizia, no seu livro Chapeuzinho Amarelo, do medo do medo que temos do lobo que sequer existe concretamente, mas sim do lobo que criamos internamente, e esse com certeza existe e é tão grande que às vezes nos engole por inteiro. Assim, não há mesmo como pensar. Um processo terapêutico, para deixar de ser conserto de peças e passar a ser uma análise, requer muita paciência e tolerância, de ambas as partes, senão o trabalho sequer será uma boa oficina. Se não há uma boa peça funcionando, isto é, um bom aparelho para pensar os pensamentos, não há como atravessar essa cesura da análise como oficina e, muito menos, se aventurar a ir (devagar e sempre) além. No lugar, instala-se algo com grafia muito semelhante, mas sentido totalmente oposto, a censura.
Formular isso me ajuda a digerir, ainda que com azia, o que temos vivenciado. Uma junção terrível de dificuldade de pensar e falta de continência, sendo esta última a capacidade de conter, decodificar, transformar e devolver, em doses apropriadas, as identificações projetivas do bebê (ZIMERMAN, 2008). Sinto que as tentativas de silenciamento da ciência, negação da realidade e criação de delírios coletivos a fim de evitar colapsos financeiros tem gerado uma espécie de terror sem nome, termo criado por Bion para explicar o que acontece quando não há continência e acolhimento por parte do outro com quem nos relacionamos. Estes podem ser representados pelo par mãe-bebê, paciente-analista e, acredito, que até mesmo a relação população-presidente. Sendo assim, a ameaça aumenta, pois sentimos que não temos que nos proteger apenas de algo invisível. Além de lavar as mãos, faz-se necessário desinfetarmos o que ouvimos e, que, trancados ou não em casa, inevitavelmente chega até nós (ALMEIDA, 2020).
A psicanálise, para Freud, tem a importante função de capacitar o indivíduo a estar apto a trabalhar e amar. Penso, a partir disso, que há real legitimidade na preocupação com a volta ao trabalho e com os recursos financeiros do país, mas com a impossibilidade desse retorno imediato, há também (ou pode haver) a capacidade de amar, que também nos ajuda a pensar e a nos relacionar, primeiro com nós mesmos e, depois, com o outro. Desta forma, novos jeitos podem ser dados e estão, em diferentes esferas, sendo colocados em prática. Mas, afinal, o que significa se amar?
Freud (1969) criou o conceito de narcisismo primário, que diz respeito a um momento inicial e fundamental na vida de todos nós, mas que também precisa ser ultrapassado para que possamos investir nossa libido em outras pessoas e objetivos. Se essa fase da vida não ocorre ou não é bem vivida, instala-se o narcisismo como defesa. E que defesa maciça e rígida! Assim, fica realmente impossibilitado sair da superfície e ousar mergulhar em águas mais profundas.
Valter Hugo Mãe (2016) dá pistas de algo que pode acontecer caso essa defesa seja arrancada de uma vez, quando escreve que Crisóstomo "via-se metade ao espelho, porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía"(p.19). Como, então, se levar a sério? Como apostar no autocuidado, seja fazendo análise ou quarentena, se há no lugar do corpo e da mente, um abismo sem fim?
Finalizo compartilhando uma experiência que vivi pouco antes dessa escrita, que sem saber já era parte integrante do texto. Estava pesquisando sobre orquídeas na tentativa de encontrar qual era a espécie que eu ganhei de uma paciente muito querida há seis anos, quando lhe fazia visitas domiciliares. Esta é uma espécie que a flor nasce e morre no mesmo dia e, quando ela dá indícios de que irá florir é uma alegria só, bem parecido com a alegria que a raposa sente à espera do pequeno príncipe (SAINT-EXUPÉRY, 2015). É tão bela, que sempre esqueço de seu aspecto abjeto que dura quase todo o ano até que renasce, enfim.
No momento ela se encontra com folhas tão secas que é como se ela já não mais vivesse. Me preocupei e fui procurar algo que pudesse fazê-la reviver. Surpreendi-me ao saber que existem diversas espécies que eu sequer imaginava e, descobri que a que tenho é adaptada para longas temporadas secas em seu ambiente nativo e, durante este período, suas folhas se assemelham a galhos mortos. Que alívio, eu senti. O que me parecia morte era na verdade adaptação. Lendo um pouco mais descobri que para elas florirem, elas gastam muita energia e, por isso, precisam dormir por muito tempo depois de uma florada a fim de que um novo florescer venha a acontecer.
Pensando sobre esse lindo processo, senti tamanha esperança que rapidinho vim escrever, como se tivesse medo de, no caminho, encontrar um rato como o da Clarice Lispector (1998) no texto Perdoando Deus, em que se sentindo nua e entregue à vida, dá de cara com um rato, também nu, mas escancaradamente morto. Pensei, então, algo que antes não havia adubo suficiente para formular. É engraçado, porque quando finalmente conseguimos pensar um pensamento, ele parece já ser tão óbvio. Contudo, como Bion (1979) afirma, o óbvio às vezes não é observado.
Percebi que a paciente daquela época, sábia e sensível senhora, não me deu essa orquídea por acaso. Ainda que nem ela soubesse, hoje, eu penso, que assim ela me dizia com muita delicadeza o que ela sentia em relação às visitas que aconteciam a cada mês. Pouco, não é? Mas parece que suficiente para a dupla que formamos. As visitas, embora espaçadas devido às particularidades dos atendimentos em atenção primária, traziam-lhe tamanha vida, o que lindamente mostrava por meio de poemas que escrevia nos períodos de seca (apenas de encontros presenciais e não mentais) e, que, juntas, tomando um cafezinho, para mim, ela declamava!
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Agradecimento: Agradeço imensamente o Departamento Científico do IEP-RP pelo convite. Que alegria e prazer poder, por aqui, florescer junto a tantas pessoas que tenho como referência!
Referências:
ALMEIDA, R.R. E agora quem poderá nos defender? No divã da vida. Publicação eletrônia. Disponível em: https://www.revide.com.br/blog/roberta-rodrigues-de-almeida/e-agora-quem-podera-nos-defender/ Revide, 2020.
BION, W.R. Seminários Italianos. São Paulo: Blucher, 2017.
BION. W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v13, n.4, 1979.
BUARQUE, C. Chapeuzinho Amarelo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
FREUD, S. Introdução ao Narcisismo. In: Freud, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LISPECTOR. C. Perdoando Deus. In: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MÃE, V.H. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
MARQUES, M. Conversas boas sobre Bion. Ribeirão Preto, 2018.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. 51ed. Rio de Janeiro: Agir, 2015.
ZIMERMAN, D. E. A Função de "Continente" do Analista e os "Subcontinentes". In: Bion: da teoria á prática -uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed, 2ª ed. 2008.
Neste sentido, há alguns dias (ou meses talvez), venho tentando pensar sobre uma frase que li sobre a pandemia e a necessária quarentena que estamos tentando fazer. A frase era a seguinte: quanto mais a quarentena funcionar, mais ela parecerá desnecessária. Assim que a ouvi, o primeiro pensamento que me ocorreu foi que no processo analítico isso também acontece. Inventei uma nova frase que foi o pontapé inicial para essa reflexão: quanto mais um processo de psicoterapia funciona, mais ele parece desnecessário. Não sei vocês, mas falando em primeira pessoa, já vivi muito isso em minha análise e também com os generosos pacientes que me fazem companhia.
Normalmente inventamos um jeito de chegar até à análise ou psicoterapia e, independentemente do jeito que cada um arruma para iniciar essa difícil missão, geralmente vem junto um pedido de ajuda, conserto ou salvação. E, nós, tendo real clareza ou não desse pedido, o firmamos, sentados em nossas poltronas confortáveis e o selamos com o contrato verbal. Miguel Marques (2018) disse, certa vez, que ao recebermos um paciente estamos fazendo algo muito sério, estamos abrindo nossas portas, que estão longe de serem apenas as concretas, e estas vão muito além das fronteiras do consultório. Penso que não há momento mais propício para entendermos essa afirmação. E, se nos abrimos para os que nos chegam, eles também podem (ou não) se abrir para nós. Mas abertura para quê? Acho que aí mora a questão, pois não há de antemão como saber. E quando não há garantias que nos deixem seguros, o que inclusive é a nossa lida diária, corremos risco. Pode ser de vida ou de morte, mas não deixa de ser risco.
Pode-se instalar, assim, o medo de sentir medo. Chico Buarque (2019), já dizia, no seu livro Chapeuzinho Amarelo, do medo do medo que temos do lobo que sequer existe concretamente, mas sim do lobo que criamos internamente, e esse com certeza existe e é tão grande que às vezes nos engole por inteiro. Assim, não há mesmo como pensar. Um processo terapêutico, para deixar de ser conserto de peças e passar a ser uma análise, requer muita paciência e tolerância, de ambas as partes, senão o trabalho sequer será uma boa oficina. Se não há uma boa peça funcionando, isto é, um bom aparelho para pensar os pensamentos, não há como atravessar essa cesura da análise como oficina e, muito menos, se aventurar a ir (devagar e sempre) além. No lugar, instala-se algo com grafia muito semelhante, mas sentido totalmente oposto, a censura.
Formular isso me ajuda a digerir, ainda que com azia, o que temos vivenciado. Uma junção terrível de dificuldade de pensar e falta de continência, sendo esta última a capacidade de conter, decodificar, transformar e devolver, em doses apropriadas, as identificações projetivas do bebê (ZIMERMAN, 2008). Sinto que as tentativas de silenciamento da ciência, negação da realidade e criação de delírios coletivos a fim de evitar colapsos financeiros tem gerado uma espécie de terror sem nome, termo criado por Bion para explicar o que acontece quando não há continência e acolhimento por parte do outro com quem nos relacionamos. Estes podem ser representados pelo par mãe-bebê, paciente-analista e, acredito, que até mesmo a relação população-presidente. Sendo assim, a ameaça aumenta, pois sentimos que não temos que nos proteger apenas de algo invisível. Além de lavar as mãos, faz-se necessário desinfetarmos o que ouvimos e, que, trancados ou não em casa, inevitavelmente chega até nós (ALMEIDA, 2020).
A psicanálise, para Freud, tem a importante função de capacitar o indivíduo a estar apto a trabalhar e amar. Penso, a partir disso, que há real legitimidade na preocupação com a volta ao trabalho e com os recursos financeiros do país, mas com a impossibilidade desse retorno imediato, há também (ou pode haver) a capacidade de amar, que também nos ajuda a pensar e a nos relacionar, primeiro com nós mesmos e, depois, com o outro. Desta forma, novos jeitos podem ser dados e estão, em diferentes esferas, sendo colocados em prática. Mas, afinal, o que significa se amar?
Freud (1969) criou o conceito de narcisismo primário, que diz respeito a um momento inicial e fundamental na vida de todos nós, mas que também precisa ser ultrapassado para que possamos investir nossa libido em outras pessoas e objetivos. Se essa fase da vida não ocorre ou não é bem vivida, instala-se o narcisismo como defesa. E que defesa maciça e rígida! Assim, fica realmente impossibilitado sair da superfície e ousar mergulhar em águas mais profundas.
Valter Hugo Mãe (2016) dá pistas de algo que pode acontecer caso essa defesa seja arrancada de uma vez, quando escreve que Crisóstomo "via-se metade ao espelho, porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía"(p.19). Como, então, se levar a sério? Como apostar no autocuidado, seja fazendo análise ou quarentena, se há no lugar do corpo e da mente, um abismo sem fim?
Finalizo compartilhando uma experiência que vivi pouco antes dessa escrita, que sem saber já era parte integrante do texto. Estava pesquisando sobre orquídeas na tentativa de encontrar qual era a espécie que eu ganhei de uma paciente muito querida há seis anos, quando lhe fazia visitas domiciliares. Esta é uma espécie que a flor nasce e morre no mesmo dia e, quando ela dá indícios de que irá florir é uma alegria só, bem parecido com a alegria que a raposa sente à espera do pequeno príncipe (SAINT-EXUPÉRY, 2015). É tão bela, que sempre esqueço de seu aspecto abjeto que dura quase todo o ano até que renasce, enfim.
No momento ela se encontra com folhas tão secas que é como se ela já não mais vivesse. Me preocupei e fui procurar algo que pudesse fazê-la reviver. Surpreendi-me ao saber que existem diversas espécies que eu sequer imaginava e, descobri que a que tenho é adaptada para longas temporadas secas em seu ambiente nativo e, durante este período, suas folhas se assemelham a galhos mortos. Que alívio, eu senti. O que me parecia morte era na verdade adaptação. Lendo um pouco mais descobri que para elas florirem, elas gastam muita energia e, por isso, precisam dormir por muito tempo depois de uma florada a fim de que um novo florescer venha a acontecer.
Pensando sobre esse lindo processo, senti tamanha esperança que rapidinho vim escrever, como se tivesse medo de, no caminho, encontrar um rato como o da Clarice Lispector (1998) no texto Perdoando Deus, em que se sentindo nua e entregue à vida, dá de cara com um rato, também nu, mas escancaradamente morto. Pensei, então, algo que antes não havia adubo suficiente para formular. É engraçado, porque quando finalmente conseguimos pensar um pensamento, ele parece já ser tão óbvio. Contudo, como Bion (1979) afirma, o óbvio às vezes não é observado.
Percebi que a paciente daquela época, sábia e sensível senhora, não me deu essa orquídea por acaso. Ainda que nem ela soubesse, hoje, eu penso, que assim ela me dizia com muita delicadeza o que ela sentia em relação às visitas que aconteciam a cada mês. Pouco, não é? Mas parece que suficiente para a dupla que formamos. As visitas, embora espaçadas devido às particularidades dos atendimentos em atenção primária, traziam-lhe tamanha vida, o que lindamente mostrava por meio de poemas que escrevia nos períodos de seca (apenas de encontros presenciais e não mentais) e, que, juntas, tomando um cafezinho, para mim, ela declamava!
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Agradecimento: Agradeço imensamente o Departamento Científico do IEP-RP pelo convite. Que alegria e prazer poder, por aqui, florescer junto a tantas pessoas que tenho como referência!
Referências:
ALMEIDA, R.R. E agora quem poderá nos defender? No divã da vida. Publicação eletrônia. Disponível em: https://www.revide.com.br/blog/roberta-rodrigues-de-almeida/e-agora-quem-podera-nos-defender/ Revide, 2020.
BION, W.R. Seminários Italianos. São Paulo: Blucher, 2017.
BION. W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v13, n.4, 1979.
BUARQUE, C. Chapeuzinho Amarelo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
FREUD, S. Introdução ao Narcisismo. In: Freud, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LISPECTOR. C. Perdoando Deus. In: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MÃE, V.H. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
MARQUES, M. Conversas boas sobre Bion. Ribeirão Preto, 2018.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. 51ed. Rio de Janeiro: Agir, 2015.
ZIMERMAN, D. E. A Função de "Continente" do Analista e os "Subcontinentes". In: Bion: da teoria á prática -uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed, 2ª ed. 2008.
Por: Roberta Rodrigues de Almeida, Psicóloga Clínica (CRP: 06/120562) formada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Especialista em Atenção Integral à Saúde pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP e Especialista em Psicologia Clínica pelo CFP. Atualmente, membro integrante e membro da Diretoria do IEP-RP, escritora do Blog No Divã da Vida da revista Revide, aprendiz de escritora de contos e poesias e co-criadora do Podcast Desculpa o Áudio Longo.
VÍDEO IPÊ 03: Eliana Fátima de Pádua
A psicóloga Eliana Pádua é nossa convidada e nos presenteou com este vídeo, no qual compartilha importantes contribuições acerca do momento atual, pensamentos sobre nossos sentimentos, a atuação na Psicanálise e ainda, reflexões importantes para pensarmos juntos.
Eliana Fátima de Pádua é Psicóloga (CRP: 06/12954) formada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP). Pós-graduada em “Psicossomática na Clínica Cotidiana” pela Faculdades Claretianas. Possui formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientae - São Paulo. É ex-Presidente, atual membro, supervisora e docente do IEP-RP.
Referências:
Freud, S. Obras completas. Editora Imago. Volume XII.
Greenson, Ralph R. A Técnica e a Prática da Psicanálise - Rio de Janeiro: Imago, 1981.Volume 1e2.
Racker,H. Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.
Bettelheim,B. Freud e a alma humana. São Paulo, Editora Cultrix, 1982.
Brandao, J.S. Mitologia grega, vol 3. Petrópolis, Editora Vozes, 1987
Eliana Fátima de Pádua é Psicóloga (CRP: 06/12954) formada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP). Pós-graduada em “Psicossomática na Clínica Cotidiana” pela Faculdades Claretianas. Possui formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientae - São Paulo. É ex-Presidente, atual membro, supervisora e docente do IEP-RP.
Referências:
Freud, S. Obras completas. Editora Imago. Volume XII.
Greenson, Ralph R. A Técnica e a Prática da Psicanálise - Rio de Janeiro: Imago, 1981.Volume 1e2.
Racker,H. Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.
Bettelheim,B. Freud e a alma humana. São Paulo, Editora Cultrix, 1982.
Brandao, J.S. Mitologia grega, vol 3. Petrópolis, Editora Vozes, 1987
TEXTO 06: Tempos de COVID-19
Memória e criação
Estava mergulhada neste quadro, quando recebi o convite para escrever um trabalho para o IPÊ. Não tive dúvida quanto a aceitar o convite, pois o que me proponho a fazer aqui, já estava tomando alguma forma dentro de mim quando me deparei com a imagem. Já ecoava meu mundo interno alguns pensamentos sobre a mesma e aqui está minha tentativa de dar um contorno para a experiência que estamos vivendo.
Em tempos tão sombrios, a arte se faz necessária. Penso que a proximidade com ela nos enriquece, nos tira do nosso lugar comum, nos faz sonhar. Em busca de sentidos às vivências atuais, ela nunca foi tão enriquecedora. Tenho buscado, tanto dentro como fora de mim, memórias, imagens, pensamentos e sentimentos que caminhassem ao meu lado nesse percurso tão nebuloso que atravessamos. Sim, uma companhia viva, companhia que ajuda no caminhar deste deserto, como na pintura acima.
Encontro nessa obra de arte, um acalento. Ou um desespero. Podem ser as duas coisas. Penso na temporalidade e a memória. O tempo nunca foi tão subjetivo para nós. Assim como na pintura, estamos em um deserto, um espaço sem vida, cores e plantas. O relógio, também esboçado no quadro, representando um tempo distorcido. E com isso, quantas dúvidas. Quanto tempo ficaremos longe das pessoas que amamos? O que sobrará deste tempo? Quanto tempo as crianças ficarão sem brincar com os amigos? E seus processos criativos, que também se dão, em pares? Ah, o tempo! O tempo indefinido. Sim, perdemos a noção do tempo e dos dias. Quantas vezes nos pegamos sem saber qual o dia da semana? Para os que não estão desconectados da realidade, não é a mesma sensação de estarmos de férias. Falo de tempo distorcido, sem forma, que se esvai, tempo líquido. Quais os sonhos possíveis? O futuro existe, por força da expectativa de que as coisas ocorrerão, no presente. Assim, em consonância com as vivências atuais, como estabelecer planos futuros?
Neste percurso de acontecimentos, o tempo vai nos deixando memórias, nosso arsenal psíquico de lembranças continua em constante formação. As memórias nesse caminho tortuoso, sem vida e brilho, como um deserto no quadro. Os sonhos que acessamos, quais os pesadelos que temos. Memórias de dias difíceis, cheios de dores e ansiedades. Memórias de esforços para mantermos nossas mentes vivas. Criativas. Pensantes. Memórias de pessoas esgotadas, outras tantas, sem perspectivas. Mortes reais e subjetivas. Perdas de ícones, referências, afetos. Um tempo real distorcido que nos traz tantas perdas, mas também ganhos. Ganhos de novos encontros, dentro de nossas próprias realidades, aprendizados até então não acessíveis. Tantas memórias de dias aterrorizantes, mas também de dias criativos.
Já nos dizia Winnicott (1999) que, para ser criativa, uma pessoa deve existir e possuir o sentimento de existir, é então algo que brota do ser. Isso indica que quem é, está vivo. Só podemos ser criativos se tivemos uma boa experiência com o outro (ABRAM, 2000). Observam-se muitas novidades com esse novo momento que estamos vivendo. Quantos movimentos criativos notamos em nossos dias, novos modos de trabalhos e de viver, até então, nunca imagináveis e possíveis. Novas brincadeiras com os filhos, novos modos de interação no campo de trabalho.
No fundo no quadro, há um esboço de esperança. Uma imensidão de água e céu, que também me faz pensar em um infinito. Infinitas possibilidades. De reconstruções, necessárias, de caminhos possíveis.
Diante de tantas perdas nesse novo tempo, distorcido, memórias difíceis que não poupam em emergir e esforços para nos mantermos saudáveis, há um universo infinito, como o encontro do mar e do céu. Em contato com o mar, por onde você olha, sempre tem céu e mar, esse encontro nunca acaba. O que vem da imensidão deste encontro? Eu não sei, acredito que nem você. Trago muitas dúvidas, mas algum ponto para pensar e sentir algumas coisas. Penso em caminhos, bons, ruins, novos, também encontros e possibilidades. Que este ponto de criação possa ser um início para vocês também, leitores. Que a partir dele, vocês possam criar. Coisas, pensamentos, ideias, e sentimentos. Sigamos. Acompanhando e sendo acompanhados pelo tempo e por nossas memórias! As de hoje e as que virão, juntas, nessa imensidão.
Trago para finalizar este trabalho, um trecho de Winnicott (1999, p. 28) que me inspira “No viver criativo, tanto você como eu descobrimos que tudo aquilo que fazemos fortalece o sentimento de que estamos vivos, de que somos nós mesmos.”
_________________________________
Agradeço a Diretoria de Ensino pela oportunidade e acolhimento. Agradeço a toda família IEP que me acompanha e me oferece a oportunidade de tanto desenvolvimento, vínculos, e trocas. Minha eterna gratidão!
Referências:
ABRAM, J. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
WINNICOTT, D. W. Vivendo de modo criativo. In: Tudo começa em casa.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Em tempos tão sombrios, a arte se faz necessária. Penso que a proximidade com ela nos enriquece, nos tira do nosso lugar comum, nos faz sonhar. Em busca de sentidos às vivências atuais, ela nunca foi tão enriquecedora. Tenho buscado, tanto dentro como fora de mim, memórias, imagens, pensamentos e sentimentos que caminhassem ao meu lado nesse percurso tão nebuloso que atravessamos. Sim, uma companhia viva, companhia que ajuda no caminhar deste deserto, como na pintura acima.
Encontro nessa obra de arte, um acalento. Ou um desespero. Podem ser as duas coisas. Penso na temporalidade e a memória. O tempo nunca foi tão subjetivo para nós. Assim como na pintura, estamos em um deserto, um espaço sem vida, cores e plantas. O relógio, também esboçado no quadro, representando um tempo distorcido. E com isso, quantas dúvidas. Quanto tempo ficaremos longe das pessoas que amamos? O que sobrará deste tempo? Quanto tempo as crianças ficarão sem brincar com os amigos? E seus processos criativos, que também se dão, em pares? Ah, o tempo! O tempo indefinido. Sim, perdemos a noção do tempo e dos dias. Quantas vezes nos pegamos sem saber qual o dia da semana? Para os que não estão desconectados da realidade, não é a mesma sensação de estarmos de férias. Falo de tempo distorcido, sem forma, que se esvai, tempo líquido. Quais os sonhos possíveis? O futuro existe, por força da expectativa de que as coisas ocorrerão, no presente. Assim, em consonância com as vivências atuais, como estabelecer planos futuros?
Neste percurso de acontecimentos, o tempo vai nos deixando memórias, nosso arsenal psíquico de lembranças continua em constante formação. As memórias nesse caminho tortuoso, sem vida e brilho, como um deserto no quadro. Os sonhos que acessamos, quais os pesadelos que temos. Memórias de dias difíceis, cheios de dores e ansiedades. Memórias de esforços para mantermos nossas mentes vivas. Criativas. Pensantes. Memórias de pessoas esgotadas, outras tantas, sem perspectivas. Mortes reais e subjetivas. Perdas de ícones, referências, afetos. Um tempo real distorcido que nos traz tantas perdas, mas também ganhos. Ganhos de novos encontros, dentro de nossas próprias realidades, aprendizados até então não acessíveis. Tantas memórias de dias aterrorizantes, mas também de dias criativos.
Já nos dizia Winnicott (1999) que, para ser criativa, uma pessoa deve existir e possuir o sentimento de existir, é então algo que brota do ser. Isso indica que quem é, está vivo. Só podemos ser criativos se tivemos uma boa experiência com o outro (ABRAM, 2000). Observam-se muitas novidades com esse novo momento que estamos vivendo. Quantos movimentos criativos notamos em nossos dias, novos modos de trabalhos e de viver, até então, nunca imagináveis e possíveis. Novas brincadeiras com os filhos, novos modos de interação no campo de trabalho.
No fundo no quadro, há um esboço de esperança. Uma imensidão de água e céu, que também me faz pensar em um infinito. Infinitas possibilidades. De reconstruções, necessárias, de caminhos possíveis.
Diante de tantas perdas nesse novo tempo, distorcido, memórias difíceis que não poupam em emergir e esforços para nos mantermos saudáveis, há um universo infinito, como o encontro do mar e do céu. Em contato com o mar, por onde você olha, sempre tem céu e mar, esse encontro nunca acaba. O que vem da imensidão deste encontro? Eu não sei, acredito que nem você. Trago muitas dúvidas, mas algum ponto para pensar e sentir algumas coisas. Penso em caminhos, bons, ruins, novos, também encontros e possibilidades. Que este ponto de criação possa ser um início para vocês também, leitores. Que a partir dele, vocês possam criar. Coisas, pensamentos, ideias, e sentimentos. Sigamos. Acompanhando e sendo acompanhados pelo tempo e por nossas memórias! As de hoje e as que virão, juntas, nessa imensidão.
Trago para finalizar este trabalho, um trecho de Winnicott (1999, p. 28) que me inspira “No viver criativo, tanto você como eu descobrimos que tudo aquilo que fazemos fortalece o sentimento de que estamos vivos, de que somos nós mesmos.”
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Agradeço a Diretoria de Ensino pela oportunidade e acolhimento. Agradeço a toda família IEP que me acompanha e me oferece a oportunidade de tanto desenvolvimento, vínculos, e trocas. Minha eterna gratidão!
Referências:
ABRAM, J. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
WINNICOTT, D. W. Vivendo de modo criativo. In: Tudo começa em casa.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Por: Dra. Ana Cristina Bragheto. Psicóloga (CRP: 06/74526). Doutora em Ciências pela USP-RP, Membro da Comissão de Ensino no IEP-RP, Membro titular IEP-RP. Atua na área clínica há 17 anos, atendendo crianças, adolescentes e adultos na abordagem de orientação psicanalítica.
TEXTO 05: Sobre nós. Sobre nós agora
Foi com muita alegria que recebi o convite para participar deste novo espaço, o IPÊ. Impossível não lembrar o motivo pelo qual fora criado, graças à criatividade do departamento de eventos científicos, devido à suspensão de todos os eventos presenciais enquanto durar a pandemia da COVID-19. Esse convite foi um grande estímulo para pensar de forma um pouco mais organizada, diante de tanta novidade que as orientações de restrição nos causaram. Fique em casa – quantos desdobramentos vieram a partir destas três palavras! Para nós, os “trabalhadores psis”, citando Di Loreto (2004), ficar em casa equivale a não ir ao consultório, não ter os encontros com os pacientes, muitos deles já há anos, outros, recém-chegados. Seja qual for a situação, esse foi o primeiro susto que suscita questão desde sempre pensada e discutida, que é sobre quando é possível interromper um processo de psicoterapia baseada na abordagem psicanalítica ou o processo de análise em si. Enfim, constata-se que não há fase para ser considerada tranquila para interromper um processo psicanalítico. Vamos, então, aceitar e experimentar o que, até então, era pouco utilizado pela maioria dos psicólogos, o atendimento online, já que quão precioso é estar junto, pessoalmente, como o método mais conhecido para o encontro além do físico, o encontro psíquico para o desenvolvimento do nosso trabalho. Flexíveis, aprendizes, em constante construção como é a nossa formação, disponibilizando nossas mentes e reorganizar o setting para as experiências neste espaço virtual.
Algo de fora nos fez reagir assim, uma pandemia, que afetou de maneira importante, dentre vários, dois conceitos: espaço e tempo. Kaës (2012) trouxe uma compreensão de que o mal estar surge a partir de transtornos de nossa relação com tempo e espaço e que esses são transformados sob efeito da ação humana. O conceito de espaço entendido como acessibilidade quase universal dos territórios além do planeta, aceleração das velocidades de deslocamento, as realocações econômicas, a virtualização do espaço da internet, a extensão do espaço conhecível, o espaço hiperurbano, a diversidade dos meios de transporte e os equipamentos transformaram radicalmente nossa geometria mental, nossas marcas de identificação, o sentimento da nossa identidade. O espaço psíquico também se transformou, na difração de vários espaços, o espaço psíquico íntimo, virtual, espaço dos vínculos e dos grupos, entre outros. O tempo – a velocidade acompanhou todas as modernidades. A hipermodernidade é o tempo do excesso de velocidade e essa velocidade alterou nossa concepção de tempo e nossas temporalidades psíquicas, sociais e culturais. Acrescenta dizendo que, em todas as sociedades e culturas, momentos de sincronização são necessários para a continuidade da vida psíquica, ajustes nos vínculos intersubjetivos e para a coesão social. As religiões e as festas, a escola e a família, eventos laicos ou religiosos são os momentos de sincronização. Eles exigem um imediatismo que reforça a necessidade imperiosa de estar no presente, e não no passado, sem memória, ou no futuro, sem projeto. A ruptura da normalidade que estamos vivendo pode ser compreendida como um momento de sincronização, pensada como um ajuste do “corpo social”, devido à mudança de ritmo do cotidiano que foi imposta. Por outra perspectiva, pela necessidade imperiosa de estar no presente, podemos compreender, também, assim como acontece nas sessões de análise, nos encontros psíquicos, a sessão sendo essa possibilidade de sincronização do sujeito ao próprio psiquismo, tanto para o paciente quanto a importância do analista estar sincronizado consigo mesmo para poder estar com o outro no seu máximo de inteireza possível.
Essa pandemia nos colocou em uma batalha, uma guerra contra um vírus que podemos acompanhar diariamente através de números, os que sobreviveram, conseguiram se recuperar e os que não conseguiram, infelizmente, resistir. Quanta angústia causa a todos serem lembrados a todo instante da existência da morte. Morte essa real, concreta, do corpo. No entanto, essa batalha é travada também dentro de cada um, de maneira permanente. Lembremos de Freud, em seu artigo de 1911, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, com a complementariedade dos princípios de prazer e de realidade, trabalho no qual insere a ideia de que existe o conflito fundamental entre os instintos de vida e de morte habitando nos psiquismos dos sujeitos. Lidamos com os sentimentos para os quais também não existem vacinas e que só conhecemos os estragos quando dentro da experiência, de maneira única para cada ser. Como também é esse vírus, desde assintomático para alguns, mas mortal para outros. Devemos levar em consideração qual corpo é esse que fora infectado, assim como considerar qual é o funcionamento desta mente que também é parte constituinte deste todo quando em contato com as experiências. Como essa experiência concreta, esse duelo entre a vida e a morte, repercute em cada um nesses movimentos mentais? Lembro Bion (1957), em Sobre arrogância, com a “hipótese de que, na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogância”.
Muito tem sido falado sobre imunidade. Imunidade do corpo. E da mente? Já vimos ser impossível, já que não existe maneira de se preparar para algo antes de ser vivido. Kaës (2012), contribuiu com o conceito de plasticidade do aparelho psíquico, definido como sendo a propriedade do conteúdo psíquico, de seus processos e suas formações, de se transformar diante do contato de imperativos internos e externos. A plasticidade diz respeito também à flexibilidade das organizações pulsionais que as realizações de desejo, os conteúdos e as formas de pensamento a vincula com os outros processos mentais. Ela é um processo vital, que se opõe à rigidez, à fixação e aos automatismos, vistos como manifestações das pulsões de morte. A qualidade plástica do psiquismo é particularmente solicitada nas situações de perigo, de ameaça, cada vez que a capacidade de recompor os dispositivos e as formas são exigidos para superar essas situações. Esta qualidade permitiu à espécie humana de se desenvolver, superando as crises que ameaçam sua sobrevivência, assim como ela também tornou possível que cada sujeito, em seu crescimento, de não se fixar a um estado de inércia.
As restrições estão interferindo em nossa percepção subjetiva de tempo e espaço. O tempo está limitado para o agora, sem possibilidades de planejamento, já que estamos lidando com um desconhecido. O espaço está restrito para o aqui, pois quanto menor a movimentação, melhor a contribuição para o todo. A realidade se mostra o oposto do que Kaës (2012) nos descreveu, exigindo plasticidade psíquica e criatividade, diante de uma realidade que amedronta e coloca a vida em risco. Situação também rica, que nos humaniza diante da igualdade, por meio da vulnerabilidade lembrada pelo surgimento de um vírus que não discrimina.
As urgências emocionais com as quais nos deparamos também nos coloca na linha de frente, mesmo na aparente calmaria do consultório, recebendo em nossas mentes os conteúdos projetados e que nos impactam, impactos impossíveis de quantificar e mensurar, diante das constantes epidemias de depressão, ansiedade, obsessões, compulsões, automutilações, entre outras.
Agradeço o convite do departamento cientifico para participar deste espaço, criado a fim de podermos continuar estando juntos, sempre tão fundamental para nossas trocas, que nos alimentam e contribuem para o constante desenvolvimento da nossa capacidade de pensar.
Referências:
BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. – 3ª ed. Revisada – Rio de Janeiro: Imago, DI LORETO, O. Origem e modo de construção das moléstias da mente (psicopatogênese): a psicopatogênese que pode estar contida nas relações familiares. – São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2004.
1994.
FREUD, S. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XII, p. 237-244). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KAËS, R. Le malêtre. Malakoff: Dunod, 2012.
Algo de fora nos fez reagir assim, uma pandemia, que afetou de maneira importante, dentre vários, dois conceitos: espaço e tempo. Kaës (2012) trouxe uma compreensão de que o mal estar surge a partir de transtornos de nossa relação com tempo e espaço e que esses são transformados sob efeito da ação humana. O conceito de espaço entendido como acessibilidade quase universal dos territórios além do planeta, aceleração das velocidades de deslocamento, as realocações econômicas, a virtualização do espaço da internet, a extensão do espaço conhecível, o espaço hiperurbano, a diversidade dos meios de transporte e os equipamentos transformaram radicalmente nossa geometria mental, nossas marcas de identificação, o sentimento da nossa identidade. O espaço psíquico também se transformou, na difração de vários espaços, o espaço psíquico íntimo, virtual, espaço dos vínculos e dos grupos, entre outros. O tempo – a velocidade acompanhou todas as modernidades. A hipermodernidade é o tempo do excesso de velocidade e essa velocidade alterou nossa concepção de tempo e nossas temporalidades psíquicas, sociais e culturais. Acrescenta dizendo que, em todas as sociedades e culturas, momentos de sincronização são necessários para a continuidade da vida psíquica, ajustes nos vínculos intersubjetivos e para a coesão social. As religiões e as festas, a escola e a família, eventos laicos ou religiosos são os momentos de sincronização. Eles exigem um imediatismo que reforça a necessidade imperiosa de estar no presente, e não no passado, sem memória, ou no futuro, sem projeto. A ruptura da normalidade que estamos vivendo pode ser compreendida como um momento de sincronização, pensada como um ajuste do “corpo social”, devido à mudança de ritmo do cotidiano que foi imposta. Por outra perspectiva, pela necessidade imperiosa de estar no presente, podemos compreender, também, assim como acontece nas sessões de análise, nos encontros psíquicos, a sessão sendo essa possibilidade de sincronização do sujeito ao próprio psiquismo, tanto para o paciente quanto a importância do analista estar sincronizado consigo mesmo para poder estar com o outro no seu máximo de inteireza possível.
Essa pandemia nos colocou em uma batalha, uma guerra contra um vírus que podemos acompanhar diariamente através de números, os que sobreviveram, conseguiram se recuperar e os que não conseguiram, infelizmente, resistir. Quanta angústia causa a todos serem lembrados a todo instante da existência da morte. Morte essa real, concreta, do corpo. No entanto, essa batalha é travada também dentro de cada um, de maneira permanente. Lembremos de Freud, em seu artigo de 1911, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, com a complementariedade dos princípios de prazer e de realidade, trabalho no qual insere a ideia de que existe o conflito fundamental entre os instintos de vida e de morte habitando nos psiquismos dos sujeitos. Lidamos com os sentimentos para os quais também não existem vacinas e que só conhecemos os estragos quando dentro da experiência, de maneira única para cada ser. Como também é esse vírus, desde assintomático para alguns, mas mortal para outros. Devemos levar em consideração qual corpo é esse que fora infectado, assim como considerar qual é o funcionamento desta mente que também é parte constituinte deste todo quando em contato com as experiências. Como essa experiência concreta, esse duelo entre a vida e a morte, repercute em cada um nesses movimentos mentais? Lembro Bion (1957), em Sobre arrogância, com a “hipótese de que, na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogância”.
Muito tem sido falado sobre imunidade. Imunidade do corpo. E da mente? Já vimos ser impossível, já que não existe maneira de se preparar para algo antes de ser vivido. Kaës (2012), contribuiu com o conceito de plasticidade do aparelho psíquico, definido como sendo a propriedade do conteúdo psíquico, de seus processos e suas formações, de se transformar diante do contato de imperativos internos e externos. A plasticidade diz respeito também à flexibilidade das organizações pulsionais que as realizações de desejo, os conteúdos e as formas de pensamento a vincula com os outros processos mentais. Ela é um processo vital, que se opõe à rigidez, à fixação e aos automatismos, vistos como manifestações das pulsões de morte. A qualidade plástica do psiquismo é particularmente solicitada nas situações de perigo, de ameaça, cada vez que a capacidade de recompor os dispositivos e as formas são exigidos para superar essas situações. Esta qualidade permitiu à espécie humana de se desenvolver, superando as crises que ameaçam sua sobrevivência, assim como ela também tornou possível que cada sujeito, em seu crescimento, de não se fixar a um estado de inércia.
As restrições estão interferindo em nossa percepção subjetiva de tempo e espaço. O tempo está limitado para o agora, sem possibilidades de planejamento, já que estamos lidando com um desconhecido. O espaço está restrito para o aqui, pois quanto menor a movimentação, melhor a contribuição para o todo. A realidade se mostra o oposto do que Kaës (2012) nos descreveu, exigindo plasticidade psíquica e criatividade, diante de uma realidade que amedronta e coloca a vida em risco. Situação também rica, que nos humaniza diante da igualdade, por meio da vulnerabilidade lembrada pelo surgimento de um vírus que não discrimina.
As urgências emocionais com as quais nos deparamos também nos coloca na linha de frente, mesmo na aparente calmaria do consultório, recebendo em nossas mentes os conteúdos projetados e que nos impactam, impactos impossíveis de quantificar e mensurar, diante das constantes epidemias de depressão, ansiedade, obsessões, compulsões, automutilações, entre outras.
Agradeço o convite do departamento cientifico para participar deste espaço, criado a fim de podermos continuar estando juntos, sempre tão fundamental para nossas trocas, que nos alimentam e contribuem para o constante desenvolvimento da nossa capacidade de pensar.
Referências:
BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. – 3ª ed. Revisada – Rio de Janeiro: Imago, DI LORETO, O. Origem e modo de construção das moléstias da mente (psicopatogênese): a psicopatogênese que pode estar contida nas relações familiares. – São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2004.
1994.
FREUD, S. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XII, p. 237-244). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KAËS, R. Le malêtre. Malakoff: Dunod, 2012.
Por: Lívia Maria Saadi Ezinatto Dassie - Psicóloga Especialista Clínica (CFP)(CRP: 06/83329), membro titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP), membro efetivo da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família, docente da Pós-Graduação em Psicoterapia de Casal e Família de Orientação Psicanalítica da Universidade Paulista, campus Ribeirão Preto - SP.
TEXTO 04: "Lá, Lá, Lá, Lá, Lá, Lá"
Uma Rápida Reflexão sobre Reações à Pandemia
Quando fui convidado a escrever para o projeto Ipê me senti bastante honrado e agradecido pelo convite, e logo comecei a pensar sobre o que poderia abordar. Depois de esfregar os neurônios uns nos outros para ver se saía alguma faísca, dei um tempo e fui realizar uma pesquisa de campo sobre interações humanas através de uma interface digital (termo erudito para “procrastinar na internet”) e me deparei com uma enxurrada de notícias sobre o COVID-19. Corri para dentro de minha casa mental e tentei fechar a porta, mas como em toda enchente, acabei me molhando e um pouco de água entrou pelas frestas da porta também.
Uma das coisas que vi nas notícias e que mais me gerou perplexidade na atual situação é a forma como tantas pessoas têm ignorado a gravidade do que vivemos, insistindo em participar de aglomerações, minimizando os danos causados pelo vírus e agindo como se nada estivesse acontecendo, com comportamentos que, em alguns casos, se aproximam muito do ato de tapar os ouvidos e gritar “lá-lá-lá-lá-lá” para não escutar os fatos.
E então surgiu a faísca: por que tanta gente insiste em ignorar a ameaça desta pandemia?
Fui procurar uma resposta possível para esta pergunta, e penso ter encontrado uma parte substancial dela no pensamento kleiniano.
Klein (1935) aponta que o funcionamento mental possui dois importantes pontos: a posição esquizoparanóide e a depressiva, sendo a primeira considerada mais primitiva. Quando nos deparamos com situações traumáticas, difíceis de serem processadas, desagradáveis, etc, não é incomum que nosso funcionamento mental se aproxime mais da posição esquizoparanóide e busque formas características desta posição de lidar com tais situações.
Dentre estas formas, gostaria de ressaltar duas que são abordadas por Klein: o sentimento de onipotência e a negação. A negação refuta a importância que os objetos bons têm para o sujeito, de forma que a perda destes é colocada como algo sem importância, colocando o sujeito em uma posição de superioridade a estes. Além disso, é feita a negação do perigo ao qual os objetos bons se encontram expostos frente aos objetos maus. Juntamente à negação, costuma-se encontrar o sentimento de superioridade que visa controlar e dominar os objetos.
Mas afinal, o que isso tem a ver com a pandemia?
Milhares de pessoas- seres humanos como eu e você- têm morrido em decorrência do contágio avassalador do COVID-19. Nossos modos de vida, rotinas e hábitos acabaram sendo despedaçados. Um abraço ou um beijo no rosto, cumprimentos tão comuns entre amigos (e no Brasil até mesmo entre estranhos) passaram de demonstrações de afeto a um risco para a vida da noite para o dia.
Tudo isso é ameaçador e desestruturante, e é aí que a onipotência e a negação entram em cena.
A negação e a onipotência buscam proteger nossos objetos internos e, consequentemente, uma parte importante de nossa existência, negando a importância, a gravidade e a dor de algo, como uma situação em que outros seres humanos- tão mortais quanto nós- têm perdido suas vidas aos milhares. Elas nos permitem que nos sintamos superiores ao que é negado, de forma que possamos sentir um maior controle da situação- e quem não gostaria de ter o controle sobre a pandemia?
Em outras palavras, nos coloca em posição de superioridade à coisa da qual estamos tentando nos proteger, ao mesmo tempo em que faz com que as perdas que viemos tendo- vidas, hábitos, rotinas e etc- sejam sentidos como menos importantes do que são. Ambos os fatores se somam, e o resultado é o que vemos: ações que têm colocado a vida das pessoas em risco, tanto as que negam quanto as que não negam, observáveis nas ruas e nas notícias: pessoas participando de aglomerações, festas e eventos públicos, a subestimação dos cuidados de higiene para a prevenção da doença, a crença de que o vírus é uma farsa (criada por outro país, pelos Iluminatti, pelos marcianos, etc) para enfraquecer a economia, e por aí vai.
Guardadas as devidas proporções, as defesas possuem uma importância para o funcionamento mental, porém suas formas mais extremas e rígidas, como parece ser o caso da negação neste momento, fazem com que ignorar o que está acontecendo seja perigoso. Portanto faz-se necessário o trabalho mental para lidarmos com os fatos e com a fragilidade da condição de ser humano, bem como para encontrarmos os recursos internos (e mesmo externos) para enfrentarmos os desafios que nos esperam e, dessa forma, encontrar um modo mais saudável de lidar com a vida e a verdade.
Referência:
KLEIN, M. (1935). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M. Amor, culpa e reparação. Imago: Rio de Janeiro, 1996, p. 301-329 (cap. 17)
Uma das coisas que vi nas notícias e que mais me gerou perplexidade na atual situação é a forma como tantas pessoas têm ignorado a gravidade do que vivemos, insistindo em participar de aglomerações, minimizando os danos causados pelo vírus e agindo como se nada estivesse acontecendo, com comportamentos que, em alguns casos, se aproximam muito do ato de tapar os ouvidos e gritar “lá-lá-lá-lá-lá” para não escutar os fatos.
E então surgiu a faísca: por que tanta gente insiste em ignorar a ameaça desta pandemia?
Fui procurar uma resposta possível para esta pergunta, e penso ter encontrado uma parte substancial dela no pensamento kleiniano.
Klein (1935) aponta que o funcionamento mental possui dois importantes pontos: a posição esquizoparanóide e a depressiva, sendo a primeira considerada mais primitiva. Quando nos deparamos com situações traumáticas, difíceis de serem processadas, desagradáveis, etc, não é incomum que nosso funcionamento mental se aproxime mais da posição esquizoparanóide e busque formas características desta posição de lidar com tais situações.
Dentre estas formas, gostaria de ressaltar duas que são abordadas por Klein: o sentimento de onipotência e a negação. A negação refuta a importância que os objetos bons têm para o sujeito, de forma que a perda destes é colocada como algo sem importância, colocando o sujeito em uma posição de superioridade a estes. Além disso, é feita a negação do perigo ao qual os objetos bons se encontram expostos frente aos objetos maus. Juntamente à negação, costuma-se encontrar o sentimento de superioridade que visa controlar e dominar os objetos.
Mas afinal, o que isso tem a ver com a pandemia?
Milhares de pessoas- seres humanos como eu e você- têm morrido em decorrência do contágio avassalador do COVID-19. Nossos modos de vida, rotinas e hábitos acabaram sendo despedaçados. Um abraço ou um beijo no rosto, cumprimentos tão comuns entre amigos (e no Brasil até mesmo entre estranhos) passaram de demonstrações de afeto a um risco para a vida da noite para o dia.
Tudo isso é ameaçador e desestruturante, e é aí que a onipotência e a negação entram em cena.
A negação e a onipotência buscam proteger nossos objetos internos e, consequentemente, uma parte importante de nossa existência, negando a importância, a gravidade e a dor de algo, como uma situação em que outros seres humanos- tão mortais quanto nós- têm perdido suas vidas aos milhares. Elas nos permitem que nos sintamos superiores ao que é negado, de forma que possamos sentir um maior controle da situação- e quem não gostaria de ter o controle sobre a pandemia?
Em outras palavras, nos coloca em posição de superioridade à coisa da qual estamos tentando nos proteger, ao mesmo tempo em que faz com que as perdas que viemos tendo- vidas, hábitos, rotinas e etc- sejam sentidos como menos importantes do que são. Ambos os fatores se somam, e o resultado é o que vemos: ações que têm colocado a vida das pessoas em risco, tanto as que negam quanto as que não negam, observáveis nas ruas e nas notícias: pessoas participando de aglomerações, festas e eventos públicos, a subestimação dos cuidados de higiene para a prevenção da doença, a crença de que o vírus é uma farsa (criada por outro país, pelos Iluminatti, pelos marcianos, etc) para enfraquecer a economia, e por aí vai.
Guardadas as devidas proporções, as defesas possuem uma importância para o funcionamento mental, porém suas formas mais extremas e rígidas, como parece ser o caso da negação neste momento, fazem com que ignorar o que está acontecendo seja perigoso. Portanto faz-se necessário o trabalho mental para lidarmos com os fatos e com a fragilidade da condição de ser humano, bem como para encontrarmos os recursos internos (e mesmo externos) para enfrentarmos os desafios que nos esperam e, dessa forma, encontrar um modo mais saudável de lidar com a vida e a verdade.
Referência:
KLEIN, M. (1935). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M. Amor, culpa e reparação. Imago: Rio de Janeiro, 1996, p. 301-329 (cap. 17)
Por: Luís Gustavo Faria Aguiar, psicólogo, formado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Pós-Graduado em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP). Atua na área clínica, oferecendo psicoterapia psicanalítica presencial para crianças, adolescentes e adultos, bem como psicoterapia online para adolescentes e adultos, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. É Diretor suplente do departamento científico e membro integrante do IEP-RP.
Texto 03: Quando nada mais nos restar...
(Uma homenagem aos que seguem comigo)
Partimos do escuro. Nele, solidão e compartilhamento, paradoxo da intimidade. Para dar início a essas reflexões, utilizo-me da história fictícia de Susan, uma cientista e Michel, um cozinheiro, duas pessoas (como outras quaisquer) que se lançam à misteriosa e à arriscada jornada de uma parceria de intimidade. Diante dos desafios de construir – e de sustentar – um par que se dispõe (e se expõe!) a uma vinculação em profundidade, Susan e Michel vão ficando radicalmente privados de tudo que lhes é conhecido.
Este é o cenário do filme “Perfect Sense” (em português “Sentidos do Amor” – 2011) em que acompanhamos, durante uma estranha pandemia que assola o mundo, o incrível registro de uma realidade que não podíamos e, em alguma medida não podemos nunca, prever: a realidade da força do que surge em um encontro. Nesta realidade imaginária, como efeito da pandemia, as pessoas vão perdendo seus sentidos (olfato, audição, visão), um a um, fenômeno que é acompanhado de reações emocionais intensas, até chegar à privação sensorial quase total. Diante da “falta de sentidos”, sem poder contar com aquilo que habitualmente as localizam e as orientam na interação com os outros e com o mundo, o que resta?
A presente história não é sobre Susan e Michel, mas sobre mim e, ouso dizer, em alguma medida sobre você. Com isso não quero propor que cheguemos aos mesmos pontos ou sigamos o mesmo caminho, mas que possamos compartilhar o interesse pela investigação. A minha, parte daquilo que profundamente me toca e me surpreende neste momento (poderia ser diferente?): as experiências com aqueles que seguem comigo, com os que se mantém na exploração de si – e o que me chama à atenção é que alguns a intensificam – ainda que as referências externas desabem. Assim, este texto também pretende ser uma história sobre a exploração do que resta, quando nada mais nos restar.
Nós, exploradores do universo psi, estamos nesse momento de crise privados da relativa estabilidade de nossos consultórios, do contato presencial com nossos pacientes incluindo todos os seus sentidos. Diante da evidência de nossa precariedade, com que contamos? De que instrumentos dispomos para conhecer a realidade (mental) e andar na escuridão? Um cego, lembra-nos Bion em seus Seminários na Tavistock (2017), conta com sua bengala para se aproximar da realidade que a ele se apresenta. Por vezes, podemos usar um “cão farejador”, capaz de rastrear aquilo que é invisível aos olhos. O “cão fareja-dor” tem muitas formas de se comunicar conosco; uma delas é por intermédio de um sonho, noturno ou diurno.
Da mesma forma, tem os que usam a dor, a fome ou a escuridão para trilhar ou rastrear um caminho em direção ao encontro com o outro e consigo. Não é um caminho fácil. Podemos ficar enroscados no trajeto, por exemplo, em estados de fome, escuridão e dor infinitos, sem palavras, sem meios de serem acolhidos. Também podemos ficar presos no tempo, lamentando o que passou, ressentidos pelo que perdemos ou por aquilo que poderia ter sido e não foi. Outro risco é, com as agruras do presente, que vivamos na cola do futuro, à sua espera: quando é que ele vai chegar? Todos nós ansiamos para que a situação melhore o mais rápido possível, mas o perigo é não estarmos presentes no momento presente, pelo tempo que ele durar.
Por outro lado, a situação de crise coletiva e de muitas privações também me parece abrir caminhos intensos no campo analítico. A começar, o paciente precisa se mobilizar para dar um jeito de manter as sessões on-line: achar um espaço (interno e externo), negociar com a família, etc. Será que nesse processo ativo de batalhar por suas sessões, o paciente também já não inicia um movimento em direção a se apropriar de suas questões? Mais ainda, como quem descasca uma cebola, há aqueles que se despem - camada por camada - dos paramentos desnecessários, dos excessos, das distrações, dos sentidos que já estão prontos e organizados. Estes parecem aproveitar como nunca a oportunidade que se revela: em meio a tantas mudanças, algo – o nosso encontro, o nosso trabalho e, em última instância, o nosso vínculo – se mantém.
Acredito que esse compartilhamento profundo, entre terapeuta e paciente, de uma condição de abrir mão de tantos sentidos e de se assombrar diante da possibilidade da continuidade do trabalho psicanalítico, delineia um momento fértil e potente para a dupla. Lembro-me agora do que escrevi tempos atrás (“Estranhar-se, Entranhar-se”, blog da SBPRP) e penso que momentos de crise são momentos de diminuir: “Diminuir, diminuir tanto até chegar ao essencial – o ponto mais concentrado, cerne do ser. Então tornar-se infinito. Infinito também mora dentro, é um universo em nós: céu estrelado.” Como é possível que, desnudos e privados, reduzidos ao essencial, possamos expandir, abrir-nos para possibilidades infinitas? O curioso é que, em se tratando de desenvolvimento emocional, costuma ser assim. Dessa forma, o momento da crise pode nos diminuir até o essencial, até nossas mais imprescindíveis buscas e particulares formas de ser no mundo e reagir a ele.
Ouvi recentemente de um colega que nós, que continuamos a trabalhar em direção ao mundo emocional e mental, somos uma espécie de “guardiões da crise”; daquela que é útil ao trabalho psicanalítico quando possível de ser sustentada e investigada. Deparo-me, em minhas reflexões, com a crise que se dá em pelo menos três dimensões. Uma é a crise maior, mundial, macroscópica. Sobre ela haverá muito o que se pensar (só essa crise já contém muitas crises dentro de si). Outra é a que a crise maior desencadeia em nós: cada um a seu modo é afetado por ela, é tocado em suas particularidades, em seus medos, em seus recursos ou na falta deles. Por fim, a crise pode ser um estado mental, sempre a espreita ou, ainda, a forma mais importante de algumas pessoas conhecerem o mundo. Sobre esta última, atrevo-me a falar um pouco.
Quem conta com o estado de mente que podemos delinear com o nome de crise (poderia chamar-se “bengala” ou “cão farejador”) como instrumento de investigação e de conhecimento da realidade emocional e mental, dificilmente está estável e confortavelmente seguro. Conheço alguns “tipos” assim. Essas pessoas vivem sob a ameaça da morte: a morte dos sentidos originais e essenciais, a morte proveniente dos desvios que podemos fazer nas comunicações, nas buscas pelo encontro. Podem ser pessoas atentas às nuances, às múltiplas perspectivas que uma comunicação apresenta. São aquelas que olham simultaneamente para o que se tem e o que se perdeu. E tanto, tanto nos escapa o tempo todo! Nestas pessoas, a sensibilidade pode ser um tormento ou um recurso. Ou os dois, simultaneamente.
Eu, ainda que sob o risco constante da morte, luto para manter-me aqui - em todos os sentidos, viva. Voltando a brincar com a ideia do filme que iniciou esse texto, eu lhe pergunto: qual seria seu “Perfect sense” (sentido perfeito), aquele que resiste, o essencial, aquele que, quando nada mais restar, te guia na escuridão? Neste momento o meu seria o vínculo de intimidade psíquica, e tudo que pode se abrir através dele.
____________________________
Agradeço ao IEP-RP pelo convite para a escrita, em especial aos coordenadores do projeto IPÊ – Marina Delduca Cilino, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, Luís Gustavo Faria Aguiar e Mariana Siqueira Bastos Formighieri.
Referências:
BION, W.R (2017) Quarto Seminário. Em Seminários na Clínica Tavistock (p.61-78). São Paulo: Blucher. (Trabalho original publicado em 1978)
ZANIN, D. (2019) Estranhar-se, entranhar-se. Publicação eletrônica. https://sbprp.com/2019/04/10/estranhar-se-estranhar-se/
Perfect Sense (2011) https://www.youtube.com/watch?v=9oDOxvN8ivg
Este é o cenário do filme “Perfect Sense” (em português “Sentidos do Amor” – 2011) em que acompanhamos, durante uma estranha pandemia que assola o mundo, o incrível registro de uma realidade que não podíamos e, em alguma medida não podemos nunca, prever: a realidade da força do que surge em um encontro. Nesta realidade imaginária, como efeito da pandemia, as pessoas vão perdendo seus sentidos (olfato, audição, visão), um a um, fenômeno que é acompanhado de reações emocionais intensas, até chegar à privação sensorial quase total. Diante da “falta de sentidos”, sem poder contar com aquilo que habitualmente as localizam e as orientam na interação com os outros e com o mundo, o que resta?
A presente história não é sobre Susan e Michel, mas sobre mim e, ouso dizer, em alguma medida sobre você. Com isso não quero propor que cheguemos aos mesmos pontos ou sigamos o mesmo caminho, mas que possamos compartilhar o interesse pela investigação. A minha, parte daquilo que profundamente me toca e me surpreende neste momento (poderia ser diferente?): as experiências com aqueles que seguem comigo, com os que se mantém na exploração de si – e o que me chama à atenção é que alguns a intensificam – ainda que as referências externas desabem. Assim, este texto também pretende ser uma história sobre a exploração do que resta, quando nada mais nos restar.
Nós, exploradores do universo psi, estamos nesse momento de crise privados da relativa estabilidade de nossos consultórios, do contato presencial com nossos pacientes incluindo todos os seus sentidos. Diante da evidência de nossa precariedade, com que contamos? De que instrumentos dispomos para conhecer a realidade (mental) e andar na escuridão? Um cego, lembra-nos Bion em seus Seminários na Tavistock (2017), conta com sua bengala para se aproximar da realidade que a ele se apresenta. Por vezes, podemos usar um “cão farejador”, capaz de rastrear aquilo que é invisível aos olhos. O “cão fareja-dor” tem muitas formas de se comunicar conosco; uma delas é por intermédio de um sonho, noturno ou diurno.
Da mesma forma, tem os que usam a dor, a fome ou a escuridão para trilhar ou rastrear um caminho em direção ao encontro com o outro e consigo. Não é um caminho fácil. Podemos ficar enroscados no trajeto, por exemplo, em estados de fome, escuridão e dor infinitos, sem palavras, sem meios de serem acolhidos. Também podemos ficar presos no tempo, lamentando o que passou, ressentidos pelo que perdemos ou por aquilo que poderia ter sido e não foi. Outro risco é, com as agruras do presente, que vivamos na cola do futuro, à sua espera: quando é que ele vai chegar? Todos nós ansiamos para que a situação melhore o mais rápido possível, mas o perigo é não estarmos presentes no momento presente, pelo tempo que ele durar.
Por outro lado, a situação de crise coletiva e de muitas privações também me parece abrir caminhos intensos no campo analítico. A começar, o paciente precisa se mobilizar para dar um jeito de manter as sessões on-line: achar um espaço (interno e externo), negociar com a família, etc. Será que nesse processo ativo de batalhar por suas sessões, o paciente também já não inicia um movimento em direção a se apropriar de suas questões? Mais ainda, como quem descasca uma cebola, há aqueles que se despem - camada por camada - dos paramentos desnecessários, dos excessos, das distrações, dos sentidos que já estão prontos e organizados. Estes parecem aproveitar como nunca a oportunidade que se revela: em meio a tantas mudanças, algo – o nosso encontro, o nosso trabalho e, em última instância, o nosso vínculo – se mantém.
Acredito que esse compartilhamento profundo, entre terapeuta e paciente, de uma condição de abrir mão de tantos sentidos e de se assombrar diante da possibilidade da continuidade do trabalho psicanalítico, delineia um momento fértil e potente para a dupla. Lembro-me agora do que escrevi tempos atrás (“Estranhar-se, Entranhar-se”, blog da SBPRP) e penso que momentos de crise são momentos de diminuir: “Diminuir, diminuir tanto até chegar ao essencial – o ponto mais concentrado, cerne do ser. Então tornar-se infinito. Infinito também mora dentro, é um universo em nós: céu estrelado.” Como é possível que, desnudos e privados, reduzidos ao essencial, possamos expandir, abrir-nos para possibilidades infinitas? O curioso é que, em se tratando de desenvolvimento emocional, costuma ser assim. Dessa forma, o momento da crise pode nos diminuir até o essencial, até nossas mais imprescindíveis buscas e particulares formas de ser no mundo e reagir a ele.
Ouvi recentemente de um colega que nós, que continuamos a trabalhar em direção ao mundo emocional e mental, somos uma espécie de “guardiões da crise”; daquela que é útil ao trabalho psicanalítico quando possível de ser sustentada e investigada. Deparo-me, em minhas reflexões, com a crise que se dá em pelo menos três dimensões. Uma é a crise maior, mundial, macroscópica. Sobre ela haverá muito o que se pensar (só essa crise já contém muitas crises dentro de si). Outra é a que a crise maior desencadeia em nós: cada um a seu modo é afetado por ela, é tocado em suas particularidades, em seus medos, em seus recursos ou na falta deles. Por fim, a crise pode ser um estado mental, sempre a espreita ou, ainda, a forma mais importante de algumas pessoas conhecerem o mundo. Sobre esta última, atrevo-me a falar um pouco.
Quem conta com o estado de mente que podemos delinear com o nome de crise (poderia chamar-se “bengala” ou “cão farejador”) como instrumento de investigação e de conhecimento da realidade emocional e mental, dificilmente está estável e confortavelmente seguro. Conheço alguns “tipos” assim. Essas pessoas vivem sob a ameaça da morte: a morte dos sentidos originais e essenciais, a morte proveniente dos desvios que podemos fazer nas comunicações, nas buscas pelo encontro. Podem ser pessoas atentas às nuances, às múltiplas perspectivas que uma comunicação apresenta. São aquelas que olham simultaneamente para o que se tem e o que se perdeu. E tanto, tanto nos escapa o tempo todo! Nestas pessoas, a sensibilidade pode ser um tormento ou um recurso. Ou os dois, simultaneamente.
Eu, ainda que sob o risco constante da morte, luto para manter-me aqui - em todos os sentidos, viva. Voltando a brincar com a ideia do filme que iniciou esse texto, eu lhe pergunto: qual seria seu “Perfect sense” (sentido perfeito), aquele que resiste, o essencial, aquele que, quando nada mais restar, te guia na escuridão? Neste momento o meu seria o vínculo de intimidade psíquica, e tudo que pode se abrir através dele.
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Agradeço ao IEP-RP pelo convite para a escrita, em especial aos coordenadores do projeto IPÊ – Marina Delduca Cilino, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, Luís Gustavo Faria Aguiar e Mariana Siqueira Bastos Formighieri.
Referências:
BION, W.R (2017) Quarto Seminário. Em Seminários na Clínica Tavistock (p.61-78). São Paulo: Blucher. (Trabalho original publicado em 1978)
ZANIN, D. (2019) Estranhar-se, entranhar-se. Publicação eletrônica. https://sbprp.com/2019/04/10/estranhar-se-estranhar-se/
Perfect Sense (2011) https://www.youtube.com/watch?v=9oDOxvN8ivg
Por: Denise Zanin, psicóloga formada pela USP de Ribeirão Preto, membro filiado da SBPRP, membro do IEP, Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica (CEPSI - IP/USP).
Vídeo IPÊ 02: Maria de Fátima Cury Meireles
A psicóloga Maria de Fátima Cury Meireles fala brevemente para o IPÊ (Programa de Publicações do IEP-RP) sobre a atual situação que estamos vivendo com a emergência do novo Coronavírus (Covid-19), e nos brinda com uma fala sensível, acalentadora e que nos chama a atenção para as defesas que estamos utilizando neste enfrentamento e traz reflexões sobre contribuições possíveis da Psicanálise na elaboração e superação destes novos tempos que temos vivido.
Maria de Fatima Cury Meirelles é Psicóloga Clínica (CRP: 06/15000), formada pela PUCSP.
Atuou como psicóloga no Hospital Santa Teresa em Ribeirão Preto por 25 anos.
É estudante de Psicanálise desde a faculdade.
Membro do IEP desde 2006 e atual Vice-presidente na gestão 2020-2021.
Maria de Fatima Cury Meirelles é Psicóloga Clínica (CRP: 06/15000), formada pela PUCSP.
Atuou como psicóloga no Hospital Santa Teresa em Ribeirão Preto por 25 anos.
É estudante de Psicanálise desde a faculdade.
Membro do IEP desde 2006 e atual Vice-presidente na gestão 2020-2021.
TEXTO 02: Pontes caídas e mapas danificados
Desafios do atendimento clínico em tempos de pandemia
Como parte do Projeto IPÊ, agradeço o convite para escrever sobre os desafios deste momento de mudança de setting no atendimento clínico. Podemos dizer que começar um atendimento online foi nossa “primeira onda” de contágio, guardadas as proporções, em um trocadilho com o complicado momento que vivemos. Mas agora, a novidade cedeu espaço, a euforia inicial também (sim, ela existiu frente às novas possibilidades de trabalho), o prazo para passar não se confirmou e o que era uma possibilidade provisória tem se tornado mais permanente. Manter o atendimento e conectar-se ao que é psicanalítico tem se transformado, assim, na nossa “segunda onda” de desafio. Como é que se faz agora?
Em alguns casos, isso se mantém ali, quase inabalável. Os afetos, os sonhos e a via de acesso ao psíquico permanecem fortes e emocionantes, como sabemos que acontece quando há um encontro psíquico. É quase comovente ver a potência de uma relação se manter assim. E também é surpreendente ver relações novas nascendo diretamente online. Encontros reais.
Tudo isso tão parecido com a psicanálise, que continua sempre obstinada, apoiada na convicção de que haverá uma alternativa, com base no conceito já bem estabelecido de que temos um aparelho para pensar (Bion,1967) que é capaz de ser ativado e profícuo, tanto em situações aparentemente triviais, como de instabilidade e crise.
E meu ponto de interesse está justamente aí. Se há muito relato de êxito, até no anteriormente impensável atendimento online de crianças, por outro lado, há também sinais de ruptura, bloqueio e o risco de descontinuidade. Se aproximar do que é psíquico é quase como buscar por um mundo. E, portanto, uma via de acesso precisa ser construída – e mantida - buscando essa área constituída de “espaço e tempo”, que faz com que cada um de nós seja peculiar e único.
Isso porque, em tempos de pandemia, em que o mundo “de fora” para, em que o contato com externo diminui muitíssimo, algumas pessoas sentem que não há nada para dizer, pois não há nada acontecendo em suas vidas. Estrada interrompida. Outras pessoas se dão conta de que há um turbilhão de coisas, mas também não podem acessar o tormento, porque ele atrapalha a capacidade de pensar. Acesso negado. E, dessa maneira, só podem lamentar ou se desesperar. Mais pontes caindo.
Considero que este tem sido o desafio mais marcante do atendimento online. Nossa tarefa, de “criação da realidade psíquica” e curiosidade sobre o que é construído a partir do registro dos fatos (Ogden, 2017, p.125) ficou ainda mais evidente. Sempre estivemos nessa função, mas o mapa, em alguns casos, agora, parece ter sido danificado, abandonado ou rasgado, impedindo o acesso, dificultando o contato.
Em nossos encontros com colegas, supervisões e em nossa própria análise, estamos em busca, então, de uma nova cartografia. Por onde já navegaram? Como enfrentaram os monstros marinhos? Uma espécie de “faísca de entusiasmo” para continuar em busca do que sempre nos foi tão fascinante e valioso. Ao mesmo tempo, sabemos que cada um passará a pavimentar a própria pista e a desbravar uma área nova. Somos, portanto, pioneiros, precursores.
Dito de outra forma, queremos saber como acessar esse lugar em que mora o invisível, o subjetivo, o que não se sabe nem se conhece, a matéria prima do nosso trabalho. Estamos em busca do outro. Mas precisamos de nossa própria originalidade para seguir. Tarefa enorme, prejudicada pelo risco a que ficamos também expostos, de perder o contato com o próprio simbolismo e subjetividade, diante desta ruptura, que certamente é coletiva. Enfim, que rumo as coisas que estamos vivendo tomam dentro de nós? A intimidade com nossa própria mente é essencial para reconstruir caminhos e ousar desenhar novos mapas. Ganho alívio e confiança na psicanálise ao perceber que as imagens não param de ser formadas, buscando dar algum tipo de significado a cada uma das tantas novas loucuras em nossos dias.
E então precisamos sentar, fechar os olhos e diminuir a luz, permitindo que o aparelho para pensar os pensamentos seja ativado primeiro em nós, como as máscaras de emergências nos voos. Que a gente tenha segurança, tranquilidade e competência para respirar e, em seguida, oferecer segurança e oxigênio para quem estiver ao nosso lado na turbulência. Ou na frente da nossa tela.
E que seja imperativo se revigorar com o movimento, mantendo o entusiasmo de transitar em terrenos instáveis, procurando frestas e construindo elos. Não vejo outro caminho, além da persistência e criatividade. Mistura de trabalho e jogo. Combinação necessária pra que algo novo aconteça e (re)aproxime o inconsciente de um ao inconsciente do outro, encontro mais bonito que pode haver. É esse o mapa de sempre. E já sabemos, continua sendo válido por um único encontro, mais do que nunca.
Referências:
OGDEN, T. H. A matriz da mente: relações objetais e o diálogo psicanalítico. Blucher, SP, 2017.
BION, WR. Estudos psicanalíticos revisados. Imago, RJ, 1967.
Em alguns casos, isso se mantém ali, quase inabalável. Os afetos, os sonhos e a via de acesso ao psíquico permanecem fortes e emocionantes, como sabemos que acontece quando há um encontro psíquico. É quase comovente ver a potência de uma relação se manter assim. E também é surpreendente ver relações novas nascendo diretamente online. Encontros reais.
Tudo isso tão parecido com a psicanálise, que continua sempre obstinada, apoiada na convicção de que haverá uma alternativa, com base no conceito já bem estabelecido de que temos um aparelho para pensar (Bion,1967) que é capaz de ser ativado e profícuo, tanto em situações aparentemente triviais, como de instabilidade e crise.
E meu ponto de interesse está justamente aí. Se há muito relato de êxito, até no anteriormente impensável atendimento online de crianças, por outro lado, há também sinais de ruptura, bloqueio e o risco de descontinuidade. Se aproximar do que é psíquico é quase como buscar por um mundo. E, portanto, uma via de acesso precisa ser construída – e mantida - buscando essa área constituída de “espaço e tempo”, que faz com que cada um de nós seja peculiar e único.
Isso porque, em tempos de pandemia, em que o mundo “de fora” para, em que o contato com externo diminui muitíssimo, algumas pessoas sentem que não há nada para dizer, pois não há nada acontecendo em suas vidas. Estrada interrompida. Outras pessoas se dão conta de que há um turbilhão de coisas, mas também não podem acessar o tormento, porque ele atrapalha a capacidade de pensar. Acesso negado. E, dessa maneira, só podem lamentar ou se desesperar. Mais pontes caindo.
Considero que este tem sido o desafio mais marcante do atendimento online. Nossa tarefa, de “criação da realidade psíquica” e curiosidade sobre o que é construído a partir do registro dos fatos (Ogden, 2017, p.125) ficou ainda mais evidente. Sempre estivemos nessa função, mas o mapa, em alguns casos, agora, parece ter sido danificado, abandonado ou rasgado, impedindo o acesso, dificultando o contato.
Em nossos encontros com colegas, supervisões e em nossa própria análise, estamos em busca, então, de uma nova cartografia. Por onde já navegaram? Como enfrentaram os monstros marinhos? Uma espécie de “faísca de entusiasmo” para continuar em busca do que sempre nos foi tão fascinante e valioso. Ao mesmo tempo, sabemos que cada um passará a pavimentar a própria pista e a desbravar uma área nova. Somos, portanto, pioneiros, precursores.
Dito de outra forma, queremos saber como acessar esse lugar em que mora o invisível, o subjetivo, o que não se sabe nem se conhece, a matéria prima do nosso trabalho. Estamos em busca do outro. Mas precisamos de nossa própria originalidade para seguir. Tarefa enorme, prejudicada pelo risco a que ficamos também expostos, de perder o contato com o próprio simbolismo e subjetividade, diante desta ruptura, que certamente é coletiva. Enfim, que rumo as coisas que estamos vivendo tomam dentro de nós? A intimidade com nossa própria mente é essencial para reconstruir caminhos e ousar desenhar novos mapas. Ganho alívio e confiança na psicanálise ao perceber que as imagens não param de ser formadas, buscando dar algum tipo de significado a cada uma das tantas novas loucuras em nossos dias.
E então precisamos sentar, fechar os olhos e diminuir a luz, permitindo que o aparelho para pensar os pensamentos seja ativado primeiro em nós, como as máscaras de emergências nos voos. Que a gente tenha segurança, tranquilidade e competência para respirar e, em seguida, oferecer segurança e oxigênio para quem estiver ao nosso lado na turbulência. Ou na frente da nossa tela.
E que seja imperativo se revigorar com o movimento, mantendo o entusiasmo de transitar em terrenos instáveis, procurando frestas e construindo elos. Não vejo outro caminho, além da persistência e criatividade. Mistura de trabalho e jogo. Combinação necessária pra que algo novo aconteça e (re)aproxime o inconsciente de um ao inconsciente do outro, encontro mais bonito que pode haver. É esse o mapa de sempre. E já sabemos, continua sendo válido por um único encontro, mais do que nunca.
Referências:
OGDEN, T. H. A matriz da mente: relações objetais e o diálogo psicanalítico. Blucher, SP, 2017.
BION, WR. Estudos psicanalíticos revisados. Imago, RJ, 1967.
Por: Simone Hurtado Bianchi Sanches - Membro filiado da SBPRP. Membro titular do IEP. Mestre em Psicologia (FFCLRP-USP). Doutora em Saúde Mental (FMRP –USP).
Texto 01: Em busca de abrigo psíquico
* Fotografia da janela de sua casa de infância iluminada por um facho de luz. Fotógrafo cego, utiliza-se do contraste luz-escuridão para criar seu próprio registro a partir do olhar e das palavras narradas pelo outro, os quais une ao seu acervo pessoal, a sua memória. Acredita que o mais importante é o que pode imaginar, o que se passa, pois, em sua casa interior - a casa como uma condição interna -, de cujo encontro com o outro emerge a sua arte. Na fotografia, iluminadas, aparecem as invariantes de uma casa, demonstrando, pela experiência, que aquilo que se pode enxergar está além do que se pode ver com os olhos. |
A pessoa pode ir para a África, pode ir para a China, mas não precisa sair da sua casa.
A casa de uma pessoa é a mente dela. Somos como o caramujo, a tartaruga;
para onde vamos levamos o nosso mundo mental - estamos sempre dentro da nossa casa interna.
A não ser que a pessoa sinta que não tem uma casa interna. Aí, é claro vai ter pânico.
Porque se não tem uma casa interna, vai precisar de alguém que a acolha. (KIRSCHBAUM, 2017, p. 125).
A casa de uma pessoa é a mente dela. Somos como o caramujo, a tartaruga;
para onde vamos levamos o nosso mundo mental - estamos sempre dentro da nossa casa interna.
A não ser que a pessoa sinta que não tem uma casa interna. Aí, é claro vai ter pânico.
Porque se não tem uma casa interna, vai precisar de alguém que a acolha. (KIRSCHBAUM, 2017, p. 125).
Inaugurar um espaço é das tarefas impossíveis, daquelas da maior responsabilidade, de cuja empreitada, em meio a turbulentas situações e emoções, fui encarregada por meio de um convite. Que significados tal exploração abriga? Que abertura encerra, guarda, contém em si? Permanecem em aberto, ao menos por enquanto. Mas necessitava de um princípio.
Refugiando-me em algo conhecido, recorri à experiência de ter internalizado, vivendo a Psicanálise, que seu ofício e fazer são impraticáveis enquanto um evento meramente exterior a mim, diante do qual me colocaria como mera espectadora, passiva, imparcial, impermeável e imperturbável. Assim, a partir de um chamado aparentemente inofensivo, mas intensamente instigante e provocador, assumi tal expedição desde a perspectiva de dentro, observando as reverberações e ressonâncias em mim.
Primeiro que a proposta nasceu “em tempos de guerra”: uma situação de pandemia em âmbito mundial por disseminação do coronavírus (SARS-CoV-2), para a qual, dadas sua amplitude, velocidade e conjuntura, não temos registro vivencial já conhecido ou familiar, permanecendo como algo estranho. Aliás, que palavra poderia apropriadamente nomear a experiência que vivemos?
Apelei, então, à figura paterna, justificável quando o medo e a angústia nos assolam, deixando exposta a nossa parte infantil, primitiva e desamparada a que o novo, o desconhecido e o ameaçador nos lançam. Disse Freud (2010, p. 171-174) a respeito do impacto da guerra e de nossa atitude diante da morte: “[...] nos sentimos estrangeiros neste mundo outrora belo e familiar [experimentando] o desnorteio e a paralisia da capacidade, dos quais sofremos [...].”.
Estaria eu lendo Freud ou ele, arguto que era, estaria lendo a mim? Escrito ainda em 1915, mas que poderia, muito bem, ilustrar nosso momento atual, sem dúvida, um período de guerra. Afinal, quem, neste momento, poderia negar a experiência emocional de se sentir bombardeado, em um campo minado, refletindo sobremaneira em nossa capacidade de pensar? Diante de algo desconhecido, que nem pode ser visto, mas cujos efeitos podem ser dolorosamente reconhecidos, buscamos, sob a égide da realidade, adentrar o obscuro, à espera de que algo possa emergir, desenvolvendo e fazendo nascer recursos mentais potentes ao seu enfrentamento.
Da mesma forma, o contato com o convite também não me foi sem impacto, sem que se deflagrasse uma guerra interna - aceitar ou não, impunha-me a questão, eis a minha declarada inconfidência. Aliás, qual encontro, seja com o outro ou conosco, é inócuo?
Lembrei-me de Bion (1987) que discute a perturbação decorrente da experiência do encontro, gerando turbulência emocional. Refleti: logo eu que, portadora dos convites ao outro, sempre contei com a generosidade e hospitalidade de meus pares, a quem sou especialmente grata, com seus consentimentos a inusitadas e desconhecidas ideias - teriam sido elas perturbadoras também? Em busca de algo sob o qual pudesse me abrigar, acrescentei: dizer sim ao que chega, ao novo, ao convite não seria algo conhecido, vivenciado inclusive ao se receber um paciente, por exemplo? E, mais ainda, uma forma insuspeitada de nos darmos as mãos? Aceitei, pois, a mão estendida, ainda que à distância, assim, ninguém soltaria a mão de ninguém.
Tão logo restabelecido o apaziguamento inicial, senti-me atingida por outra lufada do insondável desconhecido: vou escrever sobre o quê? Por mais que forçasse, nenhuma resposta decisiva e final surgia - não teria sido melhor ter declinado da “convocação”? Afinal, não se tratava de um alistamento... De novo no escuro, sozinha em minha casa-mente - aliás, teria eu casa-mente própria? Lembrei-me da companhia viva de Clarice: “Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que eu não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. [...] me fechavam o mundo.” (LISPECTOR, 2014, p. 15).
Sentindo-me como se à deriva, enfim me rendi às contrações naturais próprias de um parto que, ainda que dolorosas, indicam um processo vital em movimento, deixando-me ser habitada pelo desconhecido. Foi quando, sob o intenso impacto do encontro com um convite inesperado e, portanto, com o outro, em meio a incertezas, medos e inseguranças que desapercebidamente uma ideia começou a tomar forma, insurgindo em minha mente, filha legítima da experiência emocional, quem contestaria? Florescia aí uma capacidade negativa sobre a qual falaria o Dr. Arnaldo Chuster não fosse essa mesma pandemia? Uma forma poética me ocorreu, lembrando-me de Nietzsche (2008, p. 83): “[...] é preciso ter ainda o caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante.”. Mergulhei, não sem medo de submergir. Estaria sob os efeitos de um processo interno desencadeado por algo a que Bion (1981) nomeara e tratara em seu texto sobre a cesura?
Bion (1981) retomou a ideia de Freud sobre a cesura do nascimento e a continuidade entre a vida pré e pós-uterina. Em uma linguagem poética, ocorreu-me uma imagem mental equivalente ao narrado por Mia Couto (2013, p. 35):
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez. [...] Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
Mantendo-se a ideia da cesura do nascimento na mente, pode-se, como um modelo, iluminar os sentidos em diferentes outras situações da vida que remeteriam a rupturas e crises, quando uma pessoa seria desafiada a transitar entre e penetrar diferentes estados mentais, diante, por exemplo, “[...] de algum aparentemente desastroso estado de coisas [...].” (BION, 1981, 130). Estaríamos, assim, frente a um ponto de mudança e desenvolvimento, do qual se poderia tirar “bom proveito”, ou então de parada e colapso. O que se conhece e o desconhecido fariam, pois, fronteira, cujo contato implicaria entrada em uma zona franca de turbulentos conflitos, necessitando-se, diante de uma mesma situação, de um esforço para se transpor a passagem de uma condição mental para outra.
A mente, por mais que impossibilitada de alterar o externo, pode, por seu turno, deixar-se penetrar pelo reconhecidamente perturbador a partir do qual pode resultar uma gestação do novo. Para Bion (1981, p. 135), comportar o que não se sabe “[...] tem que servir ao humano naqueles momentos críticos em que o conhecimento não está lá para ser usado.”. Períodos de mudança implicariam impermanência e ideias em trânsito, em busca de desenvolvimento mental e, quem sabe, de um pensador, demandando o enfrentamento de uma desorganização psíquica a qual uma mudança, catastrófica por definição, estaria sujeita. Assim, todo um trabalho de parto, embora extremamente necessário, seria ainda insuficiente; diante da cesura, fissura, fenda, fresta, abertura, é preciso também se fazer nascer, e é desse tipo de processo que a dor mental é fruto. Trata-se não de um nascimento biológico, mas psicológico, considerando que não apenas nasce uma mente, mas também funções antes inexistentes, permitindo mobilidade psíquica.
Ainda que, diante do atual contexto pandêmico que vivemos, “ficar em casa”, portanto, sem transitar geograficamente, seja a tônica, há que se considerar que pode não ser possível seguir o imperativo “fique” no caso de não se ter onde morar e, mais especificamente, quando não se tem abrigo mental - vértice o qual foi elegido para esta reflexão, como explorado por Kirschbaum (2017) na citação da epígrafe. Sob pressões internas, o espaço mental pode ser invadido por terrores sem nome - uma catástrofe? -, que romperiam barreiras tamanha a intensidade da angústia “sem-teto”, cuja possibilidade de abrigo só poderia vir pela hospitalidade de uma casa alheia. É pelo encontro entre mentes que se pode ofertar e encontrar refúgio, uma área de sobrevivência partilhada, de mobilidade mental, a partir do que se pode identificar o material necessário para a construção da fundação de uma casa interna. Em se construindo o seu alicerce, constitui-se também a sustentação necessária, um aspecto estrutural e essencial de si e, por isso mesmo, fundante, sem o que não se é possível erguer-se. O difícil trabalho de parto não ocorre sem o reconhecimento da parentalidade, dependente, pois, de um encontro gerativo, criativo e turbulento. Através de uma experiência emocional compartilhada propiciada pelo encontro mental, ao trabalhar as e nas fendas e feridas abertas, pode-se acolher e abrigar, constituindo-se um refúgio-lar psíquico, uma casa-mente passível de ser habitada.
A frase “A criatividade é filha da tristeza”, atribuída à Pablo Picasso, a cuja parentalidade alguns autores acrescentam sabiamente a dor, aludiria, então, à potência daquilo que pode nascer a partir da ruptura e do sofrimento. Assim como, em meio à pandemia, ao desconhecido, ao espanto, ao medo, à angústia pôde, então, nascer, florescer e fundar um IPÊ, do qual a proposta aceita é fruto. Em um lampejo criativo, uma nova identidade foi vislumbrada, entre sombras e formas, no emaranhar e entrelaçar das letras do nome de um grupo sempre solidário e muito criativo: IEP. Inaugurar, pois, é parir, à luz dar, iluminar, originar, o que tem a ver com uma função materna de gerar um espaço - mental - continente. A fenda, assim, funda, como verbo, inaugurando uma casa interna.
Em tempos de incertezas, é, pois, subversivo ousar imaginar, sonhar e pensar em meio a um estado de guerra - a cujo ponto a mente pode ou não se ancorar. Seria esta a característica do “imprudentemente poético” que o escritor Valter Hugo MÃE tão sensivelmente descreveu ao narrar a lenda de que um homem, do fundo de um poço, “[...] apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho.” (MÃE, 2016, p. 141), abrigando-se? Afinal, até o medo se mostrou uma companhia viva capaz de conter, abraçar a dor, a angústia, a ameaça e o desconhecido. Um “facho de intensa escuridão” é, muitas vezes, o que se precisa para que “[...] algo que até então tenha estado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa brilhar ainda mais na escuridão.” (GROTSTEIN, 2007, p. 15). E, em meio à penumbra, poder, então, ver. Sustentar a perturbação e a turbulência geradas a partir do impacto da experiência de encontro - seja com o convite, com a pandemia ou com o outro -, sem dela nos evadirmos, a partir de um olhar para dentro e com atitude de disponibilidade para o que vem, também pode ser um jeito de atravessá-las, levando-nos, insuspeitadamente, além.
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Agradecida ao Departamento Científico (IEP-RP) que, ao me convidarem, confiando em mim e também a mim a abertura deste novo projeto, ofertaram-me, em um jogo de luz e sombra, companhia e abrigo em meio à escuridão desses dias, permanecendo em aberto, por um princípio genuíno de indecibilidade, o que ou quem nasceu nesse processo.
Referências
BION, W. R. Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 123-136, 1981.
BION, W. R. Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 21, n. 1, 121-123, 1987.
COUTO, M. A menina sem palavras. Histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013.
FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e morte (1915). In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas Volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GROTSTEIN, J. S. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Artmed. 2007.
KIRSCHBAUM, I. Breve introdução a algumas ideias de Bion. São Paulo: Blucher, 2017.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H.. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MÃE, V. H. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca azul, 2016.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
Refugiando-me em algo conhecido, recorri à experiência de ter internalizado, vivendo a Psicanálise, que seu ofício e fazer são impraticáveis enquanto um evento meramente exterior a mim, diante do qual me colocaria como mera espectadora, passiva, imparcial, impermeável e imperturbável. Assim, a partir de um chamado aparentemente inofensivo, mas intensamente instigante e provocador, assumi tal expedição desde a perspectiva de dentro, observando as reverberações e ressonâncias em mim.
Primeiro que a proposta nasceu “em tempos de guerra”: uma situação de pandemia em âmbito mundial por disseminação do coronavírus (SARS-CoV-2), para a qual, dadas sua amplitude, velocidade e conjuntura, não temos registro vivencial já conhecido ou familiar, permanecendo como algo estranho. Aliás, que palavra poderia apropriadamente nomear a experiência que vivemos?
Apelei, então, à figura paterna, justificável quando o medo e a angústia nos assolam, deixando exposta a nossa parte infantil, primitiva e desamparada a que o novo, o desconhecido e o ameaçador nos lançam. Disse Freud (2010, p. 171-174) a respeito do impacto da guerra e de nossa atitude diante da morte: “[...] nos sentimos estrangeiros neste mundo outrora belo e familiar [experimentando] o desnorteio e a paralisia da capacidade, dos quais sofremos [...].”.
Estaria eu lendo Freud ou ele, arguto que era, estaria lendo a mim? Escrito ainda em 1915, mas que poderia, muito bem, ilustrar nosso momento atual, sem dúvida, um período de guerra. Afinal, quem, neste momento, poderia negar a experiência emocional de se sentir bombardeado, em um campo minado, refletindo sobremaneira em nossa capacidade de pensar? Diante de algo desconhecido, que nem pode ser visto, mas cujos efeitos podem ser dolorosamente reconhecidos, buscamos, sob a égide da realidade, adentrar o obscuro, à espera de que algo possa emergir, desenvolvendo e fazendo nascer recursos mentais potentes ao seu enfrentamento.
Da mesma forma, o contato com o convite também não me foi sem impacto, sem que se deflagrasse uma guerra interna - aceitar ou não, impunha-me a questão, eis a minha declarada inconfidência. Aliás, qual encontro, seja com o outro ou conosco, é inócuo?
Lembrei-me de Bion (1987) que discute a perturbação decorrente da experiência do encontro, gerando turbulência emocional. Refleti: logo eu que, portadora dos convites ao outro, sempre contei com a generosidade e hospitalidade de meus pares, a quem sou especialmente grata, com seus consentimentos a inusitadas e desconhecidas ideias - teriam sido elas perturbadoras também? Em busca de algo sob o qual pudesse me abrigar, acrescentei: dizer sim ao que chega, ao novo, ao convite não seria algo conhecido, vivenciado inclusive ao se receber um paciente, por exemplo? E, mais ainda, uma forma insuspeitada de nos darmos as mãos? Aceitei, pois, a mão estendida, ainda que à distância, assim, ninguém soltaria a mão de ninguém.
Tão logo restabelecido o apaziguamento inicial, senti-me atingida por outra lufada do insondável desconhecido: vou escrever sobre o quê? Por mais que forçasse, nenhuma resposta decisiva e final surgia - não teria sido melhor ter declinado da “convocação”? Afinal, não se tratava de um alistamento... De novo no escuro, sozinha em minha casa-mente - aliás, teria eu casa-mente própria? Lembrei-me da companhia viva de Clarice: “Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que eu não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. [...] me fechavam o mundo.” (LISPECTOR, 2014, p. 15).
Sentindo-me como se à deriva, enfim me rendi às contrações naturais próprias de um parto que, ainda que dolorosas, indicam um processo vital em movimento, deixando-me ser habitada pelo desconhecido. Foi quando, sob o intenso impacto do encontro com um convite inesperado e, portanto, com o outro, em meio a incertezas, medos e inseguranças que desapercebidamente uma ideia começou a tomar forma, insurgindo em minha mente, filha legítima da experiência emocional, quem contestaria? Florescia aí uma capacidade negativa sobre a qual falaria o Dr. Arnaldo Chuster não fosse essa mesma pandemia? Uma forma poética me ocorreu, lembrando-me de Nietzsche (2008, p. 83): “[...] é preciso ter ainda o caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante.”. Mergulhei, não sem medo de submergir. Estaria sob os efeitos de um processo interno desencadeado por algo a que Bion (1981) nomeara e tratara em seu texto sobre a cesura?
Bion (1981) retomou a ideia de Freud sobre a cesura do nascimento e a continuidade entre a vida pré e pós-uterina. Em uma linguagem poética, ocorreu-me uma imagem mental equivalente ao narrado por Mia Couto (2013, p. 35):
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez. [...] Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
Mantendo-se a ideia da cesura do nascimento na mente, pode-se, como um modelo, iluminar os sentidos em diferentes outras situações da vida que remeteriam a rupturas e crises, quando uma pessoa seria desafiada a transitar entre e penetrar diferentes estados mentais, diante, por exemplo, “[...] de algum aparentemente desastroso estado de coisas [...].” (BION, 1981, 130). Estaríamos, assim, frente a um ponto de mudança e desenvolvimento, do qual se poderia tirar “bom proveito”, ou então de parada e colapso. O que se conhece e o desconhecido fariam, pois, fronteira, cujo contato implicaria entrada em uma zona franca de turbulentos conflitos, necessitando-se, diante de uma mesma situação, de um esforço para se transpor a passagem de uma condição mental para outra.
A mente, por mais que impossibilitada de alterar o externo, pode, por seu turno, deixar-se penetrar pelo reconhecidamente perturbador a partir do qual pode resultar uma gestação do novo. Para Bion (1981, p. 135), comportar o que não se sabe “[...] tem que servir ao humano naqueles momentos críticos em que o conhecimento não está lá para ser usado.”. Períodos de mudança implicariam impermanência e ideias em trânsito, em busca de desenvolvimento mental e, quem sabe, de um pensador, demandando o enfrentamento de uma desorganização psíquica a qual uma mudança, catastrófica por definição, estaria sujeita. Assim, todo um trabalho de parto, embora extremamente necessário, seria ainda insuficiente; diante da cesura, fissura, fenda, fresta, abertura, é preciso também se fazer nascer, e é desse tipo de processo que a dor mental é fruto. Trata-se não de um nascimento biológico, mas psicológico, considerando que não apenas nasce uma mente, mas também funções antes inexistentes, permitindo mobilidade psíquica.
Ainda que, diante do atual contexto pandêmico que vivemos, “ficar em casa”, portanto, sem transitar geograficamente, seja a tônica, há que se considerar que pode não ser possível seguir o imperativo “fique” no caso de não se ter onde morar e, mais especificamente, quando não se tem abrigo mental - vértice o qual foi elegido para esta reflexão, como explorado por Kirschbaum (2017) na citação da epígrafe. Sob pressões internas, o espaço mental pode ser invadido por terrores sem nome - uma catástrofe? -, que romperiam barreiras tamanha a intensidade da angústia “sem-teto”, cuja possibilidade de abrigo só poderia vir pela hospitalidade de uma casa alheia. É pelo encontro entre mentes que se pode ofertar e encontrar refúgio, uma área de sobrevivência partilhada, de mobilidade mental, a partir do que se pode identificar o material necessário para a construção da fundação de uma casa interna. Em se construindo o seu alicerce, constitui-se também a sustentação necessária, um aspecto estrutural e essencial de si e, por isso mesmo, fundante, sem o que não se é possível erguer-se. O difícil trabalho de parto não ocorre sem o reconhecimento da parentalidade, dependente, pois, de um encontro gerativo, criativo e turbulento. Através de uma experiência emocional compartilhada propiciada pelo encontro mental, ao trabalhar as e nas fendas e feridas abertas, pode-se acolher e abrigar, constituindo-se um refúgio-lar psíquico, uma casa-mente passível de ser habitada.
A frase “A criatividade é filha da tristeza”, atribuída à Pablo Picasso, a cuja parentalidade alguns autores acrescentam sabiamente a dor, aludiria, então, à potência daquilo que pode nascer a partir da ruptura e do sofrimento. Assim como, em meio à pandemia, ao desconhecido, ao espanto, ao medo, à angústia pôde, então, nascer, florescer e fundar um IPÊ, do qual a proposta aceita é fruto. Em um lampejo criativo, uma nova identidade foi vislumbrada, entre sombras e formas, no emaranhar e entrelaçar das letras do nome de um grupo sempre solidário e muito criativo: IEP. Inaugurar, pois, é parir, à luz dar, iluminar, originar, o que tem a ver com uma função materna de gerar um espaço - mental - continente. A fenda, assim, funda, como verbo, inaugurando uma casa interna.
Em tempos de incertezas, é, pois, subversivo ousar imaginar, sonhar e pensar em meio a um estado de guerra - a cujo ponto a mente pode ou não se ancorar. Seria esta a característica do “imprudentemente poético” que o escritor Valter Hugo MÃE tão sensivelmente descreveu ao narrar a lenda de que um homem, do fundo de um poço, “[...] apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho.” (MÃE, 2016, p. 141), abrigando-se? Afinal, até o medo se mostrou uma companhia viva capaz de conter, abraçar a dor, a angústia, a ameaça e o desconhecido. Um “facho de intensa escuridão” é, muitas vezes, o que se precisa para que “[...] algo que até então tenha estado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa brilhar ainda mais na escuridão.” (GROTSTEIN, 2007, p. 15). E, em meio à penumbra, poder, então, ver. Sustentar a perturbação e a turbulência geradas a partir do impacto da experiência de encontro - seja com o convite, com a pandemia ou com o outro -, sem dela nos evadirmos, a partir de um olhar para dentro e com atitude de disponibilidade para o que vem, também pode ser um jeito de atravessá-las, levando-nos, insuspeitadamente, além.
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Agradecida ao Departamento Científico (IEP-RP) que, ao me convidarem, confiando em mim e também a mim a abertura deste novo projeto, ofertaram-me, em um jogo de luz e sombra, companhia e abrigo em meio à escuridão desses dias, permanecendo em aberto, por um princípio genuíno de indecibilidade, o que ou quem nasceu nesse processo.
Referências
BION, W. R. Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 123-136, 1981.
BION, W. R. Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 21, n. 1, 121-123, 1987.
COUTO, M. A menina sem palavras. Histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013.
FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e morte (1915). In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas Volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GROTSTEIN, J. S. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Artmed. 2007.
KIRSCHBAUM, I. Breve introdução a algumas ideias de Bion. São Paulo: Blucher, 2017.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H.. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MÃE, V. H. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca azul, 2016.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
Por: Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP - CRP 06/90086, Mestre em Ciências - Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEPRP.