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Escravos recém-libertados. Referência: Arquivo do projeto Monumenta

​“E o céu se abre de manhã
Me abrigo em colo, em chão
Todo homem precisa de uma mãe (…)”

Zeca Veloso (2018). Álbum: Ofertório

O Brasil enfrenta altos índices de criminalidade e violência entre adolescentes (UNICEF, 2019). Pensando neste contexto, considero que as experiências emocionais que configuram a forma de cada indivíduo desenvolver seu aparelho para pensar, sentir e formar vínculos (BION, 1991) se mostram intrínsecas às ações que provocam no meio em que vivem.

Pensando nas condições primevas e tardias que os bebês, em pobreza, nascem e crescem, utilizei-me da experiência vivida em atendimento institucional a adolescentes em conflito com a lei, para analisar brevemente o conceito de experiência emocional tanto como norteadora de suas ações, quanto como ferramenta técnica útil no atendimento psicanalítico. Os adolescentes custodiados na referida instituição, em sua grande maioria, eram membros de famílias numerosas, que viviam em situação de pobreza. Casos socialmente mais graves incluíam experiências de pobreza extrema, que vinham dramaticamente imbricados em situações de violências psíquica e física, além de abandono, os quais em casos específicos, passavam pelo abandono concreto, como de um deles que, quando bebê, foi deixado em lata de lixo.

Nesta instituição, os atendimentos se davam em condições ambientais pouco favoráveis ao estabelecimento do setting tradicional, porém, eu percebia que, em alguns deles, a relação analítica podia ser estabelecida. Analisando, de maneira geral, foi possível notar que a experiência emocional de alguns adolescentes, nos primórdios da vida intrauterina, permeada por uma existência nem desejada e nem acolhida, de alguma forma, possa ter inviabilizado a condição da construção de um aparelho adequado para pensar pensamentos, pela falta de criação de vínculos, e de experiência afetiva satisfatória e prazerosa.

Em tais situações, parece ter ficado registrado na memória afetiva a percepção de uma necessidade corporal/psíquica não satisfeita. Sob o olhar das contribuições de Melanie Klein (2006a), não sentindo o seio bom, o indivíduo sente a insatisfação como seio mau, passando a necessitar de realizar evacuações desse último. Sob o domínio do seio mau, o recebimento de leite, quando houver, pode ser sido sentido como algo indiscriminável da evacuação do seio mau (BION, 1991). Entretanto, para o autor, o início da condição para pensar se dá porque, em algum momento, a ausência de sensações prazerosas e satisfatórias são sentidas como a ausência de um seio desejado, e não como um seio mau presente. Assim, o seio mau (desejado, porém ausente) é mais passível de se tornar uma ideia, do que o seio bom, que é associado com a coisa em si (o leite de fato), que não é um pensamento (BION, 1991). 

Sob tal vértice, parece possível refletir sobre as dificuldades que quem vive situações de privações iniciais, como os adolescentes, aqui enfocados, que viveram as experiências primevas de abandono e violência, encontram para poderem se manter conscientes, sensíveis, pensantes diante da dor do outro. Era comum que tais adolescentes passassem a infância e a adolescência realizando ataques a vínculos e tendo pouco acesso às percepções dos danos que causavam nos outros e no ambiente.

Com a experiência de pouca satisfação corporal e psíquica, a falha nos processos de estruturação do aparelho para pensar e formar pensamentos pareceu se mostrar ainda mais precoce, sendo anterior aos processos de sentir a presença concreta do seio bom, estando, assim, muito aquém de poder experienciar a ausência do seio mau como desejado, porém ausente. O que viabilizaria a construção do aparelho para pensar, caso ocorresse.

Em contrapartida, quando, em atendimento, a experiência emocional podia ser considerada, vivida na dupla comigo, e comunicada a eles novamente, os adolescentes passavam, em algumas vezes, a se sentirem respeitados, podendo existir, se constituindo como algo além de um objeto que deveria ser descartado no lixo, por exemplo. 

A abertura da analista para o receptáculo das identificações projetivas e emanação de comunicações inconscientes da experiência emocional do analisando, em algumas ocasiões, tornava possível alguma transformação na sua condição em se vincular. Tal observação era possível quando, por exemplo, algum adolescente iniciava o processo de atendimento psicológico buscando intimidar a mim, sendo truculento, mas despertando nela sentimentos de maternagem, e não de medo. Suas falas e manifestação corporais diziam algo, e suas emanações inconscientes, diziam outra. 

As experiências iniciais de abandono e violência pareciam clamar que eles reagissem com brutalidade a qualquer aproximação, porém, além disso, comunicavam sua fragilidade e, num esforço grande para me manter fiel à experiência emocional do atendimento, me via munida de ferramentas para trabalhar com eles o que se dava no aqui e agora da relação. 

Como que numa via de mãos múltiplas, o material que alguns adolescentes traziam como registro de sua existência, através da transferência, viabilizava que a minha rèverie pudesse acontecer, proporcionada também pela busca esperançosa de alguns deles, em encontrar sentido, simbolismo e refinamento, quase que químico para o bruto das emoções que viviam.  

As identificações projetivas também comunicavam tentativas de controle, através da coerção e ameaça de perigo físico. Penso que neste contexto, a psicanálise se mostrou valiosa ferramenta de compreensão e atuação, pois permitiu a percepção da necessidade de inverter a direção do medo que o próprio adolescente atendido poderia estar sentindo, além dos seus ódios de origem invejosa, característicos da relação onde se estabelece a percepção de dependência afetiva (Klein, 2006b). 

 A cesura, vivida na transferência, parecia em alguns momentos, permitir o aparecimento do novo (CHUSTER, 2003), pois os adolescentes se mostravam acostumados a serem tratados com desprezo e, repetidamente, se colocavam em situações que perpetuassem tal condição. A experiência emocional do atendimento psicológico lhes surpreendia: ao invés de serem novamente jogados no lixo, eram acolhidos, tendo algum esforço que fosse, de seu interlocutor, para a elaboração de seus elementos impensáveis.

A experiência emocional vivida pela dupla, contendo a experiência emocional registrada na história das relações do analisando, gera o novo, terceiro elemento, capaz de alterar experiências. Tendo tal experiência sendo processada pela analista, o analisando pode, quando da formação de vínculos, aprender com a experiência (BION, 1991). 

Em algumas situações, parecia que com os adolescentes isso também era possível de acontecer, pois essa nova configuração de relação lhes parecia ser a abertura para que eles pudessem falar de suas verdades. Quando eu lhes podia falar a verdade do que captava nas entrelinhas de suas comunicações, uma rua para a suas verdades se abria também. Com o decorrer de atendimentos, observava-se alguns adolescentes capazes de formar vínculos, menos defensivos, colocando suas percepções sobre algo e até construindo hipóteses sobre seus mundos internos.

A verdade que pode ser dita e vivida na relação analítica, in
exoravelmente passa pela dor. A ampliação da capacidade para sentir a dor pode, por sua vez, ampliar o acesso às realidades externas e internas, pois somente com alguma tolerância à frustração é possível lidar com as ameaças do real (BION, 2004). Cabe ao analista manter a atenção às dores que são advindas das experiências do paciente, às dores vividas na relação e às dores advindas do processo de desenvolvimento, causado pela própria análise.

Vale ressaltar que, em outras situações, muitos entraves se estabeleciam para que fosse possível que a experiência emocional fosse utilizada como ferramenta de transformação, como o caso dos atendimentos a personalidades psicopáticas, ou em momentos em que minha disponibilidade afetiva também se mostrava limitada. 

Tal como tecer rendas delicadas em ambiente rústico e desvalido como uma senzala, a técnica psicanalítica se mostrou valiosa no atendimento a pessoas com experiências psíquicas e corporais tão perturbadoras, realidade de muitos no Brasil.
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*este trabalho foi originalmente publicado no Livro Virtual do Congresso FEPAL Montevidéo 2020, sofrendo aqui, pequenas adaptações para o formato do IPÊ. 


REFERÊNCIAS
BION, W. R. (1991). O aprender com a experiência (P. D. Correa, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)  
BION, W. R. (2004). Elementos de Psicanálise (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em 1963)
CHUSTER, A. (2003). Transferência ou cesura. Em: CHUSTER, A. et al. W. R. Bion, novas leituras: a psicanálise, dos princípios ético-estéticos à clínica, v. II. p. 137-150. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
KLEIN, M. (2006a). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides . Em: Obras completas de Melanie Klein”. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1946)    
KLEIN, M. (2006b) Inveja e gratidão. Em: Obras completas de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1957)
UNICEF (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil / Fundo das Nações Unidas para a Infância; [coordenação editorial Elisa Meirelles Reis…[et al.]]. São Paulo: UNICEF.Recuperado de: https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/201911/br_30anos_cdc_relatorio.pdf


Por: Marina Delduca Cilino é psicóloga (CRP 06/88908), Mestre em Psicologia (FFCLRP-USP), Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas (IEP-RP).