Imagem do filme Náufrago. Direção e produção: Robert Zemeckis. Estados Unidos: DreamWorks Pictures, 2000.
“Os sobreviventes não tinham medo algum, mas ficaram
aterrorizados quando cogitaram que um navio se aproximava.
A possibilidade de salvamento e a possibilidade ainda maior
de que suas presenças não seriam percebidas na superfície do oceano
foi o que os aterrorizou. Anteriormente, o terror estava afundado,  ​por
​assim dizer, nas profundezas  opressivas  da depressão e do desespero.”
(BION, 2017, p.39)
A vivência pessoal que vou compartilhar aqui busca enriquecer a compreensão de uma questão importante dentro do mundo de delicadezas que a psicanálise alcança. Para, quem sabe, ajudar a rememorar a riqueza do atendimento presencial, em contraste com a praticidade e urgência do atendimento online, no que diz respeito ao reconhecimento da presença ou ausência de vida na análise.

Tal experiência intensa me marcou profundamente, suscitando escrever sobre a questão de Ogden (2013), título desse texto, que propõe olhar para o sentimento de vitalidade e desvitalização na análise, não apenas como elemento essencial da técnica analítica, mas, possivelmente, como a medida mais importante, segundo ele, do que ocorre a cada momento no processo analítico.

Ocorreu que, após dois anos de quarentena em análise online, fui convidada a retornar ao consultório da minha analista. No dia em que aceitei o convite, após algumas semanas de hesitação, estava eu parada diante do espelho checando minha aparência para sair de casa rumo à sessão presencial. Foi quando percebi meus cabelos sujos e sem corte. Cortar o cabelo era algo que eu mesma vinha fazendo, “dando um jeito” durante toda a pandemia. Pelo comprimento, lavar se tornou mais trabalhoso e menos frequente, então saí com o cabelo desarrumado, escondido em um coque feito às pressas, o que normalmente não é um problema pra mim. Mas naquele dia eu me senti diferente e isso me chamou atenção.

Enquanto dirigia, me lembrei de uma pessoa que me contou sobre como era importante pra ela se arrumar para trabalhar em casa, ou não aguentaria sobreviver ao isolamento. E mais pensamentos, que eu ainda não compreendia, surgiram ao longo do caminho. A cada minuto do trajeto, eu me sentia mais desarrumada, desmazelada… Sentia, mais intensamente, algo de um abandono com a minha aparência.

Dirigi com o sentimento ambíguo de querer e, ao mesmo tempo, não querer ter que me deslocar por aqueles quilômetros. Achava a sessão online algo prático: era colocar o fone, iniciar a chamada de vídeo e pronto. Mas a ocasião não era de ordem prática, e eu estava prestes a me encontrar com algo importante.

Estava uns minutos atrasada. Chovia. Ao chegar à sala de espera baixei a cabeça para olhar meus pés, que eu enxugava em um tapetinho. Foi quando abri a porta e me senti abraçada pelo calor e a luz cálida daquele ambiente seco e acolhedor, que contrastava com a umidade do dia frio e chuvoso lá fora. Uma música suave preencheu o silêncio.
Terminei de enxugar meus pés e levantei a cabeça, quando ouvi meu nome sendo chamado, com a entonação de uma interrogação:
– Raquel?
– Sou eu! Respondi espontaneamente, e logo percebi a esquisitice de me apresentar como se fosse a primeira vez. Eu me apresentava como uma pessoa nova, para outra que eu também não tinha certeza se ainda era a mesma.

Entrei e me deitei no divã, como de costume. De lá, a sala de atendimento parecia menor, comentei. Fui me dando conta do quanto eu havia ficado solta, num espaço aberto muito grande, fora dali, e que agora contrastava com aquele lugar acolhedor que me abraçava com seus móveis e paredes. Fui reconhecendo os objetos da sala, parados ali onde sempre estiveram, trazendo-me a lembrança do trecho de uma música: “Tudo estava igual como era antes / Quase nada se modificou / Acho que só eu mesmo mudei / E voltei”. (CARLOS, 1974)

Lembrei-me de um comentário que eu havia feito há poucos dias para meu companheiro, quando estivemos em um supermercado que tem duas portas de entrada, em lados opostos. E eu contava sobre uma lenda supersticiosa de que quando adentramos em qualquer lugar, o anjo-da-guarda que nos acompanha fica esperando na porta, e é por isso que sempre devemos passar pela mesma, para recuperá-lo ao sair. Demos risada, ele não conhecia a história, e ainda brincou com a cena de vários anjos esperando abandonados na porta do supermercado.

Na sala de análise, senti um aroma suave de madeira, vindo dos móveis, e me surpreendi, já que a Covid havia me tirado, entre outras coisas, parte do olfato. No entanto, aquele lugar e aquela presença pareciam lentamente me ajudar a recobrar os sentidos perdidos.

Durante a sessão, entendemos que eu me sentia desarrumada como um náufrago que passou tempos sem se barbear, cortar o cabelo e tomar um banho quente. Também associei os anjos esquecidos com aquele reencontro comigo mesma, na porta da sala de espera, na forma de um abraço.

Quem era eu, passados esses dois anos de pandemia, longe daquele lugar? Daquela relação que sempre me fez sentir resgatada? E me dei conta de que não um anjo, mas uma parte importante de mim aguardava um resgate desde que saí por aquela porta, anos atrás, para sobreviver em um mundo doente.

O encontro (presencial) me ajudou a recuperar algo vivo, algo de sensível, talvez ingênuo, como um anjo bobo esquecido, que teve que ficar guardado naquele consultório para que eu pudesse sobreviver em um mundo novo e caótico, em desespero silencioso como dos náufragos de Bion (2017).

Talvez as sessões por vídeo tiveram a importância de mensagens que flutuam sobre o oceano, em garrafas, para chegar até aquela ilha onde, naufragada, eu aguardava para ganhar fôlego e manter a espera. Durante toda a sessão, não houve muito que dizer, mas sentir. Começava mais um resgate… Saí da sessão me sentindo muito mais viva e perceptiva, e, ainda no carro, liguei para marcar um horário no cabeleireiro.

Conto essa experiência principalmente para exemplificar algo que acontece na análise presencial por se apoiar sobre elementos sensoriais presentes somente no espaço físico tridimensional. Por outro lado, chama a atenção o fato da análise se esparramar para além de um ambiente físico. Em casa, diante do espelho, dirigindo e entrando rapidamente no consultório para escapar da chuva, eu já estava na sessão. E continuei em análise quando saí e marquei um corte de cabelo, atuando um autocuidado que me acompanhou quando saí do consultório.

Penso ser importante notar que a pandemia foi um acontecimento que convidou mais veementemente ao recolhimento e refúgio na desvitalização. O modo sobrevivência, funcionamento elementar da condição humana frente às ameaças, necessita cuidado constante para não tornar-se crônico. Para alguns, manter a
análise online pode ser um modo de manter-se na ilha, sobrevivendo com o mínimo necessário, enquanto a existência poderia ser mais vívida e abundante. Para outros, a análise online ainda é a única opção para este momento. Além disso, o convívio online foi fundamental para tornar possível a esperança e a sobrevivência psíquica durante o longo período de isolamento, como as garrafas que chegam trazendo lembretes de que há vida lá fora.


Assim, termino enfatizando que talvez tenhamos chegado ao momento de constatar que não há como eleger a melhor maneira de se encontrar para uma sessão. Mais importante que isso é a percepção de vitalidade ou desvitalização na análise, seja no encontro online ou presencial, para que sejam possíveis os regates cotidianos para que a mente sobreviva a tantos desastres pessoais, guerras íntimas, pandemias e naufrágios.

Referências:
BION, W. R. Seminário Dois. In: _____ Seminários Italianos. São Paulo: Blucher, 2017, p.31-46.
OGDEN, T. H. Analisando formas de vitalidade e de desvitalização. In: _____ Reverie e Interpretação: Captando algo humano. São Paulo: Escuta, 2013, p.35-68.
CARLOS, R. O portão. CBS, 1974. Disponível em: https://www.letras.mus.br/roberto-carlos/48648. Acesso em: 25 mai. 2022.


Por:
Raquel Mazo, psicóloga (CRP 06/112414) pela Unesp, mestra em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela Unesp e especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto IEP-RP (com efeito, especialista em Psicologia Clínica pelo CFP), e membro associado desse mesmo instituto. Psicoterapeuta de adolescentes e adultos na clínica psicanalítica de adolescentes e adultos, com consultório em Ribeirão Preto e atendimento online para demais localidades.