​A dor é uma estrada: você anda por ela,
no adiante da sua lonjura, para chegar a um
outro lado. E esse lado é uma parte de nós
que não conhecemos. Eu, por exemplo, já
​viajei muito dentro de mim… (Mia Couto
)

Em um mar de palavras: mergulha-se ou se submerge? É possível fazer um rasgo e divisar passagem? E o que se encontrará? Será uma paragem, uma parte do mar propícia à navegação? Ou haverá um clima tempestuoso, em mares turbulentos que, a qualquer momento, pode uma embarcação entornar? Haverá ilhas, em suas extensões cercadas – e ameaçadas! – por água por todos seus lados? Ou haverá um istmo, aquela porção estreita de terra que conecta duas grandes áreas emersas, recriando uma passagem e dois mares?

Realizar-se-á a profecia de um sertão que vira mar, em um transbordamento? Em que, em um sentido bioniano, o continente se rompe por forças… internas? Daí que o desaguar viria de dentro… Acessar tais forças não seria, pois, significado como ameaça a se evitar? Consistiria, então, a análise um perigo? Tendo, como pano de fundo, a ameaça e o temor que se apresentam: de a mente não oferecer guarida e sustentação a si. Ainda mais em uma situação que pode ser, no dizer de Bion (1992), ultrajante, em que o outro entra ou parece entrar na mente de alguém, e o terror correspondente. Mas qual perigo maior: conhecer-se ou não se conhecer? Eis a questão! 
Segundo o vértice do autor, a experiência emocional do encontro analítico e consigo mesmo é arriscada. Metaforizando o mundo interno a partir dessa perspectiva, pode-se aproximá-lo de um contexto de selva, de mata fechada, cuja exploração pode levar a abrir clareiras e fundar caminhos. Mas também à escuridão e estancamentos. Há aqueles “animais” domesticados, mas também aqueles não sonhados. Seriam esses “pensamentos selvagens”? Que qualidade seria essa? 

A esses, Bion (2009) atribui a característica de pensamentos que vagueiam em busca de um pensador, que podem vir a ser domesticados – e não domados -, tornados “residentes”, do lar, íntimos e familiares. Pensáveis e sonháveis. “Selvagem”, por sua vez, não remeteria a aspectos associados à ferocidade. Haveria a possibilidade de se captar e capturar tais pensamentos? Ou a “caça” suprimiria e subverteria o caçador/pensa-dor, que permaneceria ao largo daquela, distante da condição de se lhe oferecer hospedagem, ainda que temporariamente?

Poderia, a análise, partindo-se do modelo do sonho, configurar a possibilidade de domesticar, no sentido de poder captar, acolher, aconchegar, pensar, sonhar e, assim, quem sabe, não naufragar? Ou há também a possibilidade de a dupla submergir em mares turbulentos, não pensáveis ou sonháveis? Bion (2017) sinaliza que, da união que aproxima duas pessoas, a resultante pode ser o naufrágio ou uma jornada contínua. Tal qual a relação da dupla analítica, descrita como um trabalho difícil, análogo a se estar no mar, turbulento para ambos, analista e analisando, como pontua Bion (1994). Correria, pois, o risco de naufragar? 

Para Bion (1992), trata-se de uma relação a duas mãos, em que está em jogo o falar entre duas pessoas. O encontro analítico, ainda que perturbador (BION, 2017), possibilitaria o viver a experiência emocional, que também inclui a de ameaça – a do trans-bordamento (para além do que se pode conter) e do naufrágio. “O desenvolvimento da mente tem sido um incômodo terrível […]” (BION, 2017, p. 79), de cujo contato emergiria uma turbulência emocional, essa sina de se ter uma mente com a qual lidar e con-viver. E que se precisa tolerar.

Como, então, atravessar esse ser-tão, onde também habita a dor mental? Aliás, que dor seria esta? Onde doeria? Seria possível acessá-la através de suas veredas? Áreas que permitem trânsito. Estreitas, com sua característica semiaridez e clima seco? Com a ameaça de invasão de que aquilo que súbita e violentamente irrompe possa arrebentar as cercanias, os arredores antes pensados conhecidos e, por sua vez, protegidos. “Travessia perigosa, mas é a da vida.” (ROSA, 2019, p. 440).

O ser-tão, a verdade, assim como nos diz Rosa (2019, p. 59) a respeito do real “[…] se dispõe[m] para a gente é no meio da travessia.”. Caminho o qual necessita ser percorrido se não quisermos restar à margem de nós mesmos. Não apenas pelo analisando. Pois que entre luzes e sombras, demasiadamente humano, também caminha um analista.

De que, então, necessita um analista em seu itinerário para afinar seu instrumental de trabalho? Não seria também, não só, mas sobretudo, a expedição rumo a si mesmo? Da qual um analista não escapa, dizendo de uma condição sine qua non para a gestação, o nascimento e o desenvolvimento de uma função analítica. Não sendo possível, ao ver de Bion (1994), ser analista sem conhecer tal turbulência emocional, equivalente a se estar em um tempestuoso mar… Aliás, o que faz de alguém um analista? Nasce-se analista? Torna-se um analista? Ou analista é um devir, um constante vir a ser que não se completa, no sentido de que não há um ponto de finalização, mas uma contínua formação, dependente do atravessar de seus próprios revoltos mares…

Pois não se engane, “[…] só aos poucos é que o escuro é claro.” (ROSA, 2019, p. 157). “É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 2019, p. 492). Em um “Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe.” (ROSA, 2019, p. 440). Afinal, “[…] podem ter pensamentos querendo nascer, querendo ajuda para sair para uma condição em que possam crescer e se expressar por si.” (BION, 2017, p. 124). Pois então, como divisar veredas?

Talvez a-ben-sonhar as próprias estórias e experiências, como propõe – tal qual um pensamento selvagem ao qual se ofereceu morada – um livro de Couto (1994). Para, quem sabe, chegar a outras partes de si. Tão estranhas quanto mais familiares, pois que próprias, como nos lembra Freud (2010). Mas que só se chega pela travessia. Penetrando e mergulhando em si mesmo. Cuja estrada impõe contato lonjuras adentro. Nas e através das fronteiras e turbulências internas. E que se dá a dois, acompanhado. É no junto com o outro que mais se aproxima de si. Como nos adverte Saramago (1999, p. 35), “O que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca, e é preciso andar muito para se alcançar o que está perto.”. Andemos, pois. Afinal, “Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.” (BOSI, 2003, p. 45). Entre compreensões internas e dores, luzes e sombras: veredas!
 

Referências:
BION, W. R.  Conversando com Bion. Quatro conversas com W. R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
BION, W. R. Clinical seminars and other works. Londres: Routledge, 1994
BION, W. R. Seminários na clínica Tavistock. S
ão Paulo: Blucher, 2017.
BOSI, A. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2 ed., São Paulo: Duas cidades, 2003.
COUTO, M. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FREUD, S. O inquietante (1919). In: FREUD, S. Histórias de uma neurose infantil [“O homem dos lobos”], Além do princípio do prazer e outros textos [1917-1920]. São Paulo: Editora Schwarcz S. A., 2010.
ROSA, G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SARAMAGO, J. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


Por:
Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP (CRP 06/90086), Mestre em Ciências – Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto – IEPRP.