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Asian Civilizations Museum (2021). Russel Wong in Kyoto. Life in Edo (folheto).

Recentemente, lendo notícias sobre as Olímpiadas de 2020, me surpreendeu o desabafo sincero do Altobeli Silva sobre o seu desempenho na participação no atletismo. O atleta já foi finalista e medalhista em várias provas no Brasil e no mundo, tendo dedicado parte da sua vida ao esporte. Após chegar em décimo lugar na bateria eliminatória dos 3000m com obstáculos, desabafou: É uma decepção muito grande. A ponto de você analisar, será que vale a pena se dedicar? (GLOBO, 2021)

Acredito que essa pergunta possa ser comum a todos, ela deve ter aparecido na sua mente pelo menos em algum momento da sua vida. Quem sabe como com o atleta, quando nos dedicamos e ultrapassamos muitos obstáculos e não chegamos ao resultado desejado. E aí vem a decepção, dor, raiva, frustração e junto com tudo isso a dúvida, a pergunta quase inevitável: valeu a pena? Vale a pena se dedicar ao trabalho, ao emprego, a uma paixão, aos filhos, à família, à saúde, …?

Pergunta complexa que parece sugerir uma resposta individual e subjetiva. Vou me permitir arriscar e divagar um pouco sobre ela, seguindo com uma associação de ideias, refletindo alguns temas que parecem estar envolvidos nessa situação. Os temas que me saltam aos olhos são a passagem do tempo, o valor atribuído a ele e a autoavaliação da atividade exercida. Para compreender melhor esses temas, faço a seguir uma reflexão sobre poesias e música da língua portuguesa do século XX, a arte japonesa dos séculos XV a XIX e ideias de Bion, psicanalista inglês do século XX.

Começo com Quintana com um trecho do poema Seiscentos e sessenta e seis: “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.  Quando se vê, já são seis horas: há tempo (…) quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, passaram 60 anos … Agora é tarde demais para ser reprovado …”

Esse trecho compara a existência humana com a lição de casa que trazemos da escola.  Se vamos adiando para fazer a tarefa porque não queremos, não sabemos ou qual for o motivo, adiamos a missão que temos na vida e deixamos de vivê-la em sua plenitude. Pode-se postergar por medo dos riscos ou ainda por dificuldades em compreender qual a missão destinada a nós mesmos. Em alguns projetos de vida arriscamos e investimos recursos, inspiração, transpiração e quando nos damos conta já se passou um bom tempo aplicado nisso. E aí? Não queremos ser reprovados, temos uma missão a cumprir e a vida é passageira.

Bom, se não dá para voltar ao tempo e começar tudo de novo, o que resta então com o que se investiu ou ainda com o que não pôde ser investido? E ainda, como avaliar esse percurso?

Divagando e com a ânsia de alguma resposta, lembrei-me de Pessoa e quem sabe você se lembrou também: “Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena.” 

Parece algo simples, uma resposta pronta, chavão. Podemos aproveitar tudo o que é vivido, de algum jeito, de alguma forma, se tivermos um coração nobre.  Explorando um pouco mais essa ideia, continuo com os versos desse mesmo poema, Mar salgado: “Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.”

Para o poeta, viver é arriscar, viver o incerto, superar o medo e fazer a travessia, com possibilidades de perder, de se frustrar, mas também de vencer e conquistar novos horizontes e desafios. A própria jornada pode ser fonte de prazer. No percurso pode-se hesitar, ter medo, mas se quiser prosseguir é preciso passar além da dor, porque nesse mar, além do perigo e frustração, há um encontro com o belo. Nos preocupamos com as tempestades, mas também podemos usufruir da calmaria e beleza de um céu azul. Poder enxergar o céu tão azul como o mar é viver uma experiência estética, uma beleza efêmera.

Há pouco tempo, numa exposição sobre o Japão no Museu da Civilização Asiática em Singapura, deparei-me com a arte do mundo transiente (ukyio), um gênero da arte japonesa. As figuras e pinturas (ukyio-e) retratam a captura de momentos fugazes na vida humana de forma bela, como paisagens, beleza feminina, flora, fauna, dentre outros.  O interessante é que alguns dos temas retratam momentos da vida cotidiana, como cuidados com a higiene pessoal, conversa entre pessoas, sorrisos, afagos em animais de estimação etc. A arte retrata a passagem do tempo sendo apreciada em sua própria finalidade.

Ressalto o que parece ser da dificuldade humana atual em apreciar a trajetória e o tempo investido principalmente quando o resultado é o insucesso. É muito prazeroso apreciar a passagem do tempo quando ela converge numa vitória, mas o sabor da derrota é amargo. Além disso, há muitas vezes o peso de carregar sozinho o resultado não alcançado. O fracasso pode ressoar como um problema interno do indivíduo, ideia muitas vezes relacionada à mentalidade contemporânea, segundo a qual, a autonomia e a responsabilidade são inteiramente atribuídas à pessoa.

Em muitas culturas, o insucesso pode ser visto como uma inadequação individual que não sofre influência do contexto social. As pessoas bem-sucedidas são até mesmo veneradas e às fracassadas resta nenhum apreço.  Existem muitas discussões acerca dessa temática, mas por aqui não vou me alongar e sim pontuar que a experiência individual não está delimitada apenas ao indivíduo, ela é também coletiva.  A apropriação da experiência vivida leva em conta o grau de percepção da nossa realidade interna (quem somos, o que queremos) e da realidade externa (o ambiente social, as pessoas, acontecimentos).

Verificar o que aconteceu na realidade, buscar a verdade interna e externa exige coragem, pois a realidade nem sempre é aprazível ou bem-vinda. Em um artigo intitulado Como tornar proveitoso um mau negócio, o psicanalista Bion (2000) aborda a capacidade humana de transformar uma circunstância adversa num resultado bom. Não que sejamos obrigados a fazer isso. Pode acontecer de não desejarmos ou não sermos capazes de modificar uma situação para que ela seja mais bem aproveitada, seja por uma dificuldade pessoal ou por um impedimento num contexto mais amplo.  Entretanto, quando há a possibilidade de transformar uma conjuntura em algo mais prazeroso, precisamos fazer uso da nossa capacidade de pensar.

Quando avaliamos o que nos
ocorreu, podemos experienciar algo da ordem do desprazer.  No extremo do desprazer, a vivência pode estar embebida em frustrações e privações. A dor, tristeza, raiva e agonia podem ser vividas intensamente. Nesse momento, pode ser desafiador pensar sobre o que foi vivido e experimentado como desagradável. A autoavaliação pode ficar prejudicada.

Bion (2000) compara essa situação de pensar no que é desprazeroso com situações de guerra. É como se estivéssemos num campo de batalha à frente do inimigo.  Nessa condição, o objetivo do inimigo é fazer com que fiquemos aterrorizados e não consigamos pensar com clareza.  Para enfrentar as batalhas é interessante pensar com clareza, apesar da situação ser desfavorável. A avaliação lúcida da realidade é muito vantajosa.

Fazer perguntas, assim como fez o atleta, nos ajuda a refletir sobre os acontecimentos e avaliar a realidade na qual nos encontramos.  A reflexão é subjetiva, ou seja, não existe uma resposta igual para todos. Cabe a própria pessoa avaliar sobre a missão que se propôs a cumprir e as vocações e habilidades que emprega para isso. A reflexão é ainda mais desafiadora em momentos adversos, onde o uso do pensamento e atenção à realidade se fazem prementes.

Finalizo esse texto com a avaliação que Gonzaguinha fez sobre o sentido da vida. Ele compôs um samba como pergunta-desafio. O título da música faz referência aos jogos de adivinhação feito pelas crianças: O que é, o que é?  Seguem alguns dos versos: “Cantar … a beleza de ser um eterno aprendiz (…) somos nós que fazemos a vida. Como der, ou puder, ou quiser”.
 

Referências:
BARBOSA, I.V.; THOMAZELLI, P.P.; LAMAR, A.R. Lágrimas salgadas: Uma análise sobre o poema mar português de Fernando Pessoa e o refúgio sírio pelo mar mediterrâneo. In: Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação ISSN 1981-9943 Blumenau, v. 11, n. 1, jan./abr. 2017, p. 64-77.
BION, W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. VII, número 3, dezembro 2000, p.491-501.
GONZAGUINHA, O que é, o que é? Disponível em: https://www.letras.com/gonzaguinha/463845 Consulta realizada em: 03/11/2021.
GLOBO Altobeli Silva desabafa após 10º lugar: “Será que vale a pena se dedicar?” Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/altobeli-silva-desabafa-apos-10o-lugar-sera-que-vale-a-pena-se-dedicar.ghtml Consulta realizada em 31/07/2021.
QUINTANA, M. Seiscentos e Sessenta e Seis. Disponível em https://www.pensador.com/frase/MTA4NTY2NQ/  Consulta realizada em 03/11/2021.
PESSOA, F. Mar Português. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/ODM2OTU/ Consulta realizada em 03/11/2021.
 

Por:
Deborah Maria Amed Ali de Moura
Psicóloga de orientação psicanalítica (CRP – 06/51668), atualmente residente em Singapura
debmaa.moura@gmail.com