​Ubuntu significa: “Eu sou porque nós somos” ou, em outras palavras “Eu só existo porque nós existimos”. Ubuntu é uma palavra das línguas Zulu e Xhosa, faladas na África do Sul, que exprime um conceito moral, uma filosofia, um modo de viver bem diferente do individualismo tão presente em nosso modo de vida ocidental (DOMINGUES, 2015).

Muito tenho me perguntado a respeito de como temos vivido e se, como seres humanos, temos sido capazes de sustentar nossa vida em conjunto. Freud (1930), em seu texto muito lembrado em nossos tempos, “O Mal-estar na cultura”, afirma que a tensão entre as demandas do indivíduo e as demandas da civilização sempre se fará presente, pois o indivíduo terá que realizar renúncias pulsionais em favor da vida em coletividade. Diz assim: “O poder dessa comunidade opõe-se então como “direito” ao poder do indivíduo, poder esse que vai ser condenado como violência bruta. Essa substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade é o passo cultural decisivo. (pág. 344)”.

Em março de 2020, vivemos estarrecidos a experiência de, aos poucos, nos darmos conta, de que uma pandemia se espalhava pelo mundo e em consequência, nossas rotinas e hábitos teriam que ser mudados forçosamente. Na ocasião, o mundo parou: assistimos a vídeos surpreendentes em que lugares turísticos normalmente lotados de gente, apareciam vazios e silenciosos. Era voz corrente que a experiência seria transformadora para a humanidade. Nós, que levávamos vidas frenéticas e que não podíamos parar, pois tínhamos que ser produtivos e prová-lo a todo momento (Provar para quem? A nós mesmos? Ao vizinho? Ao banco do qual tomamos o último empréstimo?). Era certo que nossas vidas individualistas e autocentradas não seriam mais as mesmas: percebíamos que não era tão importante assim ir ao shopping, fazer compras e frequentar bons restaurantes. Ficamos em nossas casas e as descobrimos – casas que, em muitos casos, antes pareciam meros dormitórios, tal a extensão do dia de trabalho e afazeres de seus moradores… Ailton Krenak (2019), escritor e ativista das causas dos povos originários, se tornou presença constante em eventos on-line e seus livros “Ideias para adiar o fim do mundo” e “A vida não é útil” se apresentaram como urgentes e necessários. Afinal, o mundo parecia estar acabando ou, pelo menos, aquele mundo ao qual estávamos habituados. Era tempo de cuidarmos uns dos outros, pensarmos no coletivo e repensarmos nossa relação com a natureza: enxergarmos a nós, humanos, como centros do mundo e como os donos da terra e dos recursos naturais (o que tem sido chamado de Antropoceno), não tem sido um bom caminho. A natureza está nos cobrando seu preço, pandemia e as urgências climáticas estão acontecendo, fenômenos de clima extremo em vários pontos do planeta – tudo ligado ao desmatamento e ao consequente aquecimento global. Tudo isso nos assombra, embora os ambientalistas viessem nos avisando há tempos…

Urgência climática e urgência sanitária: ares de fim de mundo! A emergência sanitária nos trouxe a necessidade de refletirmos sobre o conceito de liberdade. Quando o corpo de qualquer um de nós pode ser o portador de um vírus muito contagioso, até onde vai nossa liberdade de tomarmos decisões sobre ele, decisões sobre ir e vir, de usar ou não máscara e etc? Era hora, sem dúvida, de priorizar o coletivo, de cuidar dos mais velhos, dos mais vulneráveis. Inclusive porque, quando atingidos em sua saúde, isso atingiria a todos, pois o sistema de saúde se sobrecarregaria e as chances de todos, de receberem tratamento, diminuiriam. Nunca nos ficou tão clara nossa dependência do outro, dos muitos outros e de dispositivos de amparo fortes como sistemas públicos de saúde e campanhas de vacinação.

Mas após alguns meses de pandemia, os países do Norte (com seus casos mais controlados) começaram a retomar suas rotinas e nós, abaixo do Equador, com números altíssimos de casos e mortes, também iniciamos a volta à “normalidade”. Parecíamos ávidos por circular e voltar à vida frenética. Mas e aquela transformação da humanidade? E a vida mais calma que levaríamos? Que nada: logo vimos filas em shoppings, pessoas enlouquecidas para comprar e comprar, para se divertir em bares e baladas e nas praias novamente lotadas.
Hélio Pellegrino, psicanalista e pensador do Brasil, escreveu um texto seminal em 1990: “Pacto edípico e pacto Social”), onde coloca que as renúncias que todos realizamos em favor da civilização pressupõem ganhos em troca: a inserção na ordem social. Em outras palavras, perdemos, mas ganhamos, pois ingressamos na ordem simbólica e ganhamos as ferramentas para nos construirmos como sujeitos. O que será que vem acontecendo com esta ordem simbólica, que parece não garantir a todos os indivíduos que encontrem seu lugar no mundo? Muitos chamam nossos tempos de “tempos de ódio”: as interações parecem se constituir de forma a aprofundarem as exclusões e a lógica de que “Eu existo porque sou melhor que você. Eu sou e você não é!” Freud (1930), no texto citado, fala sobre o narcisismo das pequenas diferenças, como um elemento que se faz sempre presente.

As más notícias não param em nosso país: no momento, passamos pela maior crise hídrica de nossa história, o Brasil voltou ao mapa da fome, o desemprego é enorme. Mas esses problemas nos incomodam? Nos afetam verdadeiramente, provocando turbulências e tomadas de atitude? Artigo recente do UOL (COLUCCI, 2021) parece bem sugestivo: “Efeito Zoom faz pessoas acharem nariz feio e gera onda de rinoplastias”. O aumento de videoconferências gerou uma preocupação e desconforto com os próprios corpos e os próprios narizes. Com os próprios umbigos??  Christopher Lasch, em livro de 1983, A Cultura do Narcisismo, expõe uma tese de que a ameaça nuclear advinda da guerra fria teria exposto a humanidade a tal vulnerabilidade, que, juntamente a outros fatores, teria provocado uma verdadeira cultura narcísica (indivíduos superficiais, consumistas e auto voltados) – entendo que por desespero e necessidade de sobrevivência. Será que vivemos algo parecido neste momento? Então, ao mesmo tempo em que situações de calamidade despertam a solidariedade e o senso de coletividade, podem provocar, por outro lado e inconscientemente, o efeito “contrário”: um movimento das pessoas se voltarem mais ainda a si mesmas, querendo se proteger e proteger aos “seus”. Em nossas clínicas, observamos que o narcisismo recrudesce em situações de desamparo e vulnerabilidade.

Há alguns anos, comentei um filme inglês chamado “Um Grande Garoto”. Nesse filme, o protagonista começa debochando do belíssimo poema de John Donne (2007) que diz: “Nenhum homem é uma ilha” dizendo “Que nada! Esta é a hora das ilhas!” Ele diz que, com tantas coisas legais às quais ele tem acesso e pode comprar, não depende de ninguém para ficar bem e ser feliz. Este personagem, raso e cínico, é emblemático: consumir é muito mais importante que formar vínculos afetivos.

Vivemos um paradoxo: momento de redescobrir que “nenhum homem é uma ilha”, momento em que vemos as pessoas precisarem, como nunca, se afirmarem como ilhas auto suficientes e autocentrad
as. E agora?

 
Nenhum homem é uma ilha, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”, John Donne (excerto meditação XVII, 1630).
 

Referências:
DOMINGUES (2015) https://ensinarhistoria.com.br/ubuntu-o-que-a-africa-tem-a-nos-ensinar/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues.
FREUD, S. (1930). O Mal-estar na Cultura, in Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
KRENAK, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo, Cia das Letras, 2019.
KRENAK, A. (2019). A vida não é útil, Cia das Letras, 2020.
PELLEGRINO, H. (1983). Pacto Edípico e Pacto Social.  Folhetim da Folha de São Paulo, setembro de 1983.
COLUCCI, C. (2021). Efeito Zoom faz pessoas acharem nariz feio. https:// www1.folhauol.com.br
LASH, C. A. (1983). Cultura do Narcisismo, Rio de Janeiro: Imago Editora.
DONNE, J. (2007). Meditações (edição bilíngue). São Paulo: Editora Landamark.

 
Por:

Josimara Magro Fenandez de Souza é Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Coordenadora da V Bienal de Psicanálise e Cultura (2020-2021) da SBPRP. Coordenadora do grupo Múltiplas Manifestações da Sexualidade e do Núcleo de Reflexão sobre psicanálise e mal-estar na cultura, da Diretoria de Cultura e Comunidade.