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Golconda (Rene Magritte)

Ao ouvir os noticiários pela TV, acompanhar notícias em redes sociais, ou ler as manchetes dos principais jornais, a temática do negacionismo e do fanatismo tem sido presença garantida. A atualidade do tema, todavia, não faz com que surjam explicações para o fenômeno, fazendo-se necessário aprofundar o conhecimento das possíveis causas que têm nos levado a um crescente aumento do fanatismo entre nós.

A presença de visões unilaterais, que simplificam a visão sobre determinadas situações, se evidenciaram em fenômenos sociais de ordens fanáticas, racistas, xenofóbicas e manifestações agressivas de intolerância, que começaram a se aproximar cada vez mais do nosso cotidiano, trazendo consigo nuances de um processo de desumanização. 

Mais recentemente, a polarização política em nosso país vem expondo uma forma importante de fanatismo: grupos  negacionistas, defensores da terra plana e criadores de teorias conspiratórias, idolatrias a líderes políticos oriundos de qualquer posicionamento, que se mostram impenetráveis a confrontações racionais, proibindo o exercício da dúvida. 

Outra questão importante que observo se detém em comportamentos de algumas pessoas frente à pandemia causada pelo novo coronavírus. Pessoas de nosso convívio aceitando e esperando a vacinação e outras se negando a vacinarem-se, ou até mesmo, alguns líderes minimizando a gravidade da doença, e desestimulando a prática do distanciamento social e o uso de máscaras. Tais comportamentos, sob meu olhar, podem gerar na população, dúvidas sobre a necessidade de se imunizar de um vírus potencialmente fatal, e apoia  comportamentos desfavoráveis ao controle da pandemia. 

 À primeira vista, parecem ser fenômenos absolutamente irracionais e ilógicos, afinal, esbarram na questão da própria sobrevivência, o que em qualquer espécie é um chamado imperativo. Afinal, o que explica então pôr a própria vida em risco ou até mesmo desejar consciente ou, inconscientemente, a própria morte através da defesa de uma ideia? Poderíamos, numa tentativa de reflexão aberta, como a psicanálise nos permite e nos propõe, que olhássemos para estes comportamentos como manifestações de fanatismo? 

Considero que as contribuições da psicanálise possam nos auxiliar a compreender alguns aspectos de tal complexidade.  Em O Mal estar da civilização de 1930, Freud (2010) abordou a questão do eterno conflito entre as pulsões de vida e de morte, e o esforço constante para manter o pacto civilizatório à custa da repressão instintual. Concluiu que esse é um problema sem solução, no sentido de que, de tempos em tempos, algum tipo de mal-estar sempre estará presente, pois na medida em que um tipo de mal-estar é solucionado, outro entrará em seu lugar, pois essa briga – entre as pulsões e as repressões vindas da civilização – é eterna.

Podemos pensar, portanto, que ao longo do tempo há apenas uma renovação da roupagem sob a qual se apresentam os conflitos que ameaçam a civilização. Neste momento, o fenômeno do fanatismo – e sua apresentação sob a ótica do extremismo e da polarização – parece estar sendo uma dessas manifestações. 

De acordo com alguns autores, alguns acontecimentos contribuíram para o aumento do fanatismo na atualidade, tais como: a queda dos ideais iluministas a perda da importância da razão científica em função do fato desta ter sido idealizada como portadora de todas as respostas (ATLAN, apud MONDRZAK, 2020), a queda da “imunidade” adquirida pela humanidade após os horrores do nazismo e o desamparo suscitado pelo estilo de vida contemporâneo, onde a segurança em relação ao futuro é ameaçada, conduzindo a uma sensação de desemparo existencial que contribuiu para a busca rápida por certezas, em busca de sentir alguma segurança (OZ, 2016). 

Cassorla (2020) nos auxilia nesta compreensão, ao afirmar que “[…] em tempos mundiais de ‘nós contra eles’, o lado fanático de todos nós é facilmente estimulado. Para o autor, o fanático é um indivíduo que apresenta dificuldade em lidar com o diferente e possui uma rígida configuração narcísica, cujas defesas impedem um legítimo contato com o outro. Ele ressalta que “na mente fanática não há espaço para a alteridade, para o outro, para lutos, culpa ou reparação”. Coloca também que o fenômeno do fanatismo pode ocorrer tanto em mentes psicóticas como em não psicóticas, mas diferencia dizendo que “O fanático procura adeptos, o psicótico não” (CASSORLA, 2020). 

Outra distinção interessante colocada pelo autor, se dá entre o fanático e o mentiroso: “O fanático acredita na sua ‘verdade’, uma vez que deformam a realidade por conta de seu funcionamento mental, enquanto o mentiroso tem consciência de que o que disse é uma mentira”. (CASSORLA, 2020).

Já Ferrari-Filho (2020), define o fanatismo como “uma paixão excessiva que transforma o pensamento do indivíduo” e que, a depender da maneira como o aparelho psíquico irá lidar com a pulsão de morte, o fanatismo poderá estar mais ou menos presente.

O fanatismo também apresenta ligações com o narcisismo, pois pessoas que tiveram falhas na estrutura primária, caracterizando um narcisismo pouco nutrido na infância primitiva, apresentam um predomínio do chamado narcisismo de morte, onde há desesperança e desconfiança básica (FERRARI-FILHO, 2017).  Lidar com a diferença, com o que é ameaçador, aciona defesas muito primitivas, gerando insegurança e incertezas ligadas a núcleos primitivos e à sensação de desamparo  que, quando surgem imersas a um caldo cultural de extremismos e polarizações, compõem uma fórmula muito favorável para a adesão a ideias fanáticas (MONDZARK, 2020; FERRARI-FILHO, 2020; SOR e SENET, 1992, apud MONDRZAK 2020). 

O senso de pertencimento proporcionado por aderir a uma causa ou ideal mostra-se como o cerne da questão, funcionando como uma poderosa defesa frente ao desamparo. Todos nós, em busca de identificação e pertencimento, podemos nos inserir em grupos e caracterizar o que é denominado fanatismo benigno, como por exemplo,  agremiações esportivas e inúmeros grupos nos quais partilhamos afinidades. Porém, passa a ser um fanatismo marcado p
ela malignidade quando envolve a exclusão, a destruição e a desumanização do outro (MONDRZAK, 2020).
, O que parece se apresentar no movimento negacionista fanático anti-vacina, que cito anteriormente. 

Embora Freud tenha concluído, em O mal-estar  na civilização (2010) que seria sempre necessário algum esforço para a manutenção do pacto civilizatório e de ter reforçado que sempre haveria a presença do mal-estar entre nós, deixou-nos como legado seu profundo conhecimento sobre a natureza humana e a dualidade que nos habita. 

Considero que essa dualidade ilustra o potencial destrutivo tão bem representado pela pulsão de morte, mas que pode ser sobrepujado pela infinitiva força criativa da pulsão de vida, que se manifesta na solidariedade, na arte, na música, na ciência e em tudo que trabalha em prol do desenvolvimento humano. Não por acaso, os governantes autoritários, líderes políticos adeptos a ideais fanáticos tratam logo de impor censura e destruir o que representa a arte, a literatura, a educação e o conhecimento, ou seja,  investem na desumanização. 

Quase cem anos se passaram da referida publicação de Freud, e continuamos sem uma resposta definitiva, afinal a natureza humana e a luta pulsional permanecem iguais. Assim como uma vacina pode nos imunizar sendo criada a partir de seu próprio vírus, podemos conjecturar que a agressividade nascida das relações, pode também encontrar sua “imunidade” através delas próprias. Para tanto, a força de eros, presente através de nossa esperança e do incremento de saídas sublimatórias para as dores e conflitos individuais e coletivos, deve se fazer presente, para que predomine sobre thanatos,  proporcionando que a civilização predomine sobre a barbárie com o compromisso de que toda forma de desumanização deva ser denunciada e combatida.

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REFERÊNCIAS:
CASSORLA, R. Entrevista cedida ao Diário de Pernambuco em  14/03/2016. Disponível em www.diariodepernambuco.com.br Consulta realizada em 20/06/2020
FANATISMO ep.#15. Entrevistado: Dr Carlos Augusto Ferrari Filho. Entrevistadora: Lívia Hartman de Souza. CelgCast. Porto Alegre, Centro de Estudos Luis Guedes, 04/08/2020. Podcast. Disponível em https://open.spotify.com/episode/5dR2lMLVbIFNwJyQPUjT2A?si=B9MGgkKLTVyz9YkRxxoDVw&utm_source=copy-link Acesso em: 10/12/2020
FERRARI FILHO, C.A. Odeio, então existo! Fanatismo, uma linguagem (possível?) ao narcisismo de morte. Revista de Psicanálise da SPPA, Porto Alegre v. 24, n.3, p.571-585, dez 2017
FREUD, S. (1930 [1929]) O Mal estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010
MONDRZAK, V. Quinta Científica: Pensamento fanático. Youtube, 18/08/2020. Disponível em: https://youtu.be/yaujjPBSQzM Acesso em 27/11/2020
OZ, A. Como curar um fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016
OZ, A. Mais de uma luz: Fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017
ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016


Por: Celi de Souza, psicóloga, graduada pela Universidade Estadual de Londrina. CRP 06/50.533-9. Fez especialização em Dependência Química (Unifesp), Transtornos Alimentares e Obesidade (HC/USP) e em Teoria e Técnica Psicanalítica (IEP/RP).