Imagem

Os despejados (Cândido Portinari, 1934)

Como psicóloga escolar, tenho a oportunidade de vivenciar os impactos da Pandemia na Educação e contribuir com o olhar psicanalítico no enfrentamento dos novos desafios.

Presenciei a chegada das crianças no início do ano letivo, algumas de 3 e 4 anos, vindas pela primeira vez, com olhinhos brilhando de excitação, hora de choro, muito natural nesta idade, pois crescer pode ser assustador! Outras maiores, 5 e 6 anos, mas, não menos ansiosas e cheias de receios e expectativas: como é a escola? Como será a professora? E se eu não aprender? E os amigos… Vou conseguir fazer amigos? Vão gostar de mim? Conseguirei me separar de meus pais? E se eles me esquecerem na escola? As fantasias inundam suas cabecinhas e emoções – o mundo interno influencia a percepção do mundo externo e vice versa. Algumas, realmente amedrontadas e inseguras, porém todas vivendo intensamente a passagem de casa para a escola  cheias de curiosidades, sonhos, desejos e expectativas. Suas famílias, carentes do apoio da escola para educar bem os seus filhos, porém, algumas desconfiadas e inseguras se realmente é hora da separação.

Por outro lado, professores e demais membros da equipe escolar – considero todos educadores – preparados e esperançosos por um bom início do ano letivo! E em meio a este “período de adaptação” veio a Pandemia! E todas as crianças regressaram para suas casas, sem qualquer possibilidade de contato presencial entre os pares e com os professores. Se a falta de contato físico impacta todos nós, imaginem as crianças!

Winnicott (1936) estudou profundamente as necessidades das crianças pequenas e, em suas palestras, advertia professores e pais sobre a importância de se acreditar na intensidade dos sentimentos e dificuldades infantis das crianças de até 6 anos, por ser um tempo em que elas passam por um rápido desenvolvimento psicológico necessitando encontrar algo “especial” nas pessoas que cuidam delas. Os efeitos de traumas podem ser nocivos ao seu desenvolvimento. Por isso, muito me preocupa a saúde emocional das crianças, principalmente as menores, nas quais a questão corporal e do movimento é premente.

Segundo Winnicott (1950), o ambiente favorável possibilita os processos de maturação da criança, que inclui a integração da agressividade à personalidade dentro da sua teoria do desenvolvimento emocional. Para o autor, nos primeiros anos de vida, a agressividade é sinônimo de movimento, pois a criança é essencialmente motora, inclusive quando está imaginando. Ela necessita experimentar a espontaneidade do movimento, sendo a escola o espaço ideal pois possibilita esta experimentação, e assim, a criança vai encontrando um contorno através das interações com os pares e adultos.Simultaneamente, o exercício da criatividade e da capacidade de simbolização são favorecidos, enquanto também está lidando com as emoções (WINNICOTT, 1950)

Assim, mostra-se preocupante a criança estar em casa com todo este potencial, pois, muito provavelmente, tenderá a exercer todas essas necessidades naturais do desenvolvimento no ambiente familiar com os pais e irmãos. Como as famílias também, tão fragilizadas pelo isolamento social, estão acolhendo as necessidades dos seus filhos?

Tenho mantido meu trabalho na escola de forma remota, devido à importância de todos – educadores e pais – serem acolhidos, ouvidos, pois sabemos que ter um espaço para acolher e pensar suas vivências e angústias pode reduzir danos psíquicos. Me deparo com lares em que os pais estão explodindo, irritados, ansiosos ou preocupados. Sem dúvida, se os pais ou o meio ambiente amplificam o stress poderão favorecer ainda mais sofrimento as crianças.

As crianças pequenas são muito sensíveis ao estado emocional dos adultos que cuidam delas e, para enfrentar seus monstros internos, precisam de adultos estáveis que as ajudem a enfrentar enfrentem as incertezas e angústias que a Pandemia trouxe. Para as crianças, a redução espacial, o regresso para casa e os cuidados e rituais higiênicos podem significar que exista um “monstro” lá fora que lhe causa medo e insegurança e por causa dele não pode ir para a escola, nem brincar com os amigos, nem ter festa de aniversário, nem abraçar os avós. Que monstro é este?

Segundo Winnicott (1999) a estruturação do sentimento de segurança na criança depende do ambiente facilitador suficientemente bom nos estágios iniciais da vida e este deverá ser constantemente reforçado pelos pais, no convívio com os professores, com os amigos e demais pessoas com os quais quem interage – crianças saudáveis conseguem reter o sentimento de segurança mesmo frente às mudanças na realidade externa. Acredito que esta característica pode favorecer à criança viver o trauma da Pandemia sem maiores alterações de comportamento.
Penso que todos nós estamos vivendo um trauma coletivo que de alguma forma provocou uma interrupção nas nossas vidas, porém, temos a possibilidade de aprender  a lidar com as privações e frustrações que esta nova realidade nos impôs. Sabemos que é um período e que vamos sair disso. E quanto às crianças? 

Na tentativa de uma aproximação com a teoria do amadurecimento emocional de Winnicott (1983), poderíamos entender o Coronavírus como uma “invasão” na medida em que rompeu abruptamente a estabilidade e continuidade das condições de vida suficientemente boas anteriores? Estaria havendo uma interrupção na continuidade do SER da criança? 

Tenho observado perdas com a interrupção na continuidade da vida da criança, que me remete a pensar mais no seu desenvolvimento do que na constituição do SER, embora o SER seja muito enriquecido pela escola. Algumas podem apresentar regressão passageira, porém, se o Ego foi bem constituído e se o ambiente inicial foi suficientemente bom e deu conta de fortalecê-la, as perdas serão recuperadas e ela terá recursos para retomar o seu desenvolvimento, com o amparo, proteção da família e cuidados da escola (Winnicott, 1999).

Percebo que crianças pequenas têm muita dificuldade de aproveitar uma Educação totalmente virtual, pois aprendem e se desenvolvem a partir das interações socialmente estabelecidas nas relações interpsíquicas. Considerando que o  desenvolvimento subjetivo psíquico humano contempla os afetos, emoções, ideias sobre si, ideias sobre os outros, a autoimagem que somente se constituem através da presença do outro e nas inter-relações, nota-se provável prejuízo quando a educação é virtual.

O aprendizado da criança acontece nas trocas e interações que o BRINCAR favorece. Se as famílias estiverem possibilitando o BRINCAR seu desenvolvimento se mantém, apesar de estarem privadas do ambiente escolar (Winnicott, 1942).

Como alternativa, penso que osdesafios da Pandemia devem ser refletidos com as crianças para ganharem significados, pois as questões de humanidade, tão necessárias, devem ser inseridas em sua rotina. Simultaneamente, as famílias e a Escola devem aproveitar para ensinar as crianças a lidar com frustrações, incertezas e espera.

Que o tempo de Pandemia seja um tempo útil de aprendizagens para todos!

Complementando, José Outeiral (2005), psiquiatra e psicanalista, desenvolvia reflexões sobre as questões da Educação nas escolas debatendo temas como: violência, limites, as dificuldades da prática educativa em um mundo mutante e em crise, as questões da
infância, da adolescência e da família contemporânea.

Na concepção do autor a tarefa do professor é extremamente importante na vida das crianças e adolescentes e afirmou ser possível que para muitas delas a escola é a segunda e última chance de encontrarem um ambiente favorável ao seu desenvolvimento, porque a primeira será sempre a família (Outeiral, 2004).

Penso que tal afirmação nos sensibiliza, pois sabemos que muitas crianças podem estar não apenas em privação cultural e socioemocional sem escola, mas em privação alimentar e, provavelmente, expostas a algum tipo de violência. Para muitas delas vir para a escola ao encontro de uma boa professora pode ser o único meio de manter a fé e a esperança na vida.

Assim Winnicott (1936) define a boa professora: “É aquela que tem um profundo entendimento intuitivo da natureza humana, uma experiência de relacionamentos internos e externos, uma capacidade para a felicidade e alegria de viver sem a negação da seriedade e dificuldades em que isto implica”.

A abrangência do tema Educação, repleto de possiblidades, olhares, reflexões e inquietações, torna difícil a conclusão deste texto, devido ao seu caráter.

A escola é VIDA e MOVIMENTO!

O sociólogo suíço Philipe Perrenoud (2001) assim também a descreve em seu livro “Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza”, que contém reflexões e propostas sobre os desafios cotidianos pedagógicos do professor. Vale a pena a leitura!

Neste tempo de Pandemia a ordem do dia é suportar as incertezas e a dúvida de não saber, mantendo confiança em nós mesmos para prosseguir e, como os versos do Antonio Machado, o poeta espanhol: “Caminhante, não há caminho, caminho se faz no caminhar.”.
E, assim, continuemos caminhando sempre!

 
Referências:
WINNICOTT, D. W. Por que as crianças brincam? 1942. In: A criança e o seu mundo. 6 ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos S.A., cap. 22, p.161-165. 1982
_________________ O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983
_________________ Higiene mental da criança pré escolar (1936). In: Pensando Sobre Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, cap. 11. p. 75 – 88. 1997
_________________ A professora, os pais e o médico (1936). In: Pensando Sobre Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, cap. 12, p. 89 – 100. 1997
_________________ Conversando com os Pais. 2 ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1999
_________________Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional (1950). In: Da Pediatria à Psicanálise. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, cap.16, p. 355-374. 1993.
OUTEIRAL, J; CEREZER, C. O mal estar na escola. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter. 2005

______________________________________________________________________
 
Minha gratidão ao Departamento Científico do IEP pelo convite e, em especial, a Marina Delduco Cilino pela oportunidade e incentivos constantes ao meu crescimento profissional e pessoal!


Por: Maria Aparecida Abbs da Fonseca e Castro. Psicóloga Clínica e Escolar. Especialista em teorias e técnicas psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro titular e supervisora do IEP (CRP 06/11126).