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Marina Klink

No ano de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia mundial. O que parecia provisório se estendeu por meses a fio e nos deparamos, mais do que nunca, com a necessidade de viver o momento presente e lidar com as incertezas do futuro. As novas demandas surgidas nesse contexto exigiram de nós muitas adaptações para viver as mudanças que se impuseram.

Lembro-me que há alguns anos, ouvindo uma notícia de um furacão que havia devastado uma região dos Estados Unidos, conversava com meu marido, engenheiro estrutural, e questionei o porquê de não construírem casas mais resistentes àqueles tipos de eventos, já que aconteciam com tanta frequência. Em sua resposta me trouxe a perspectiva de que para lidar com a força da natureza não adiantava se opor a ela, sendo mais vantajoso uma estrutura mais leve que, além de causar menos danos, também poderia ser mais facilmente reconstruída. Ocorreu-me que o coronavírus também nos impôs a sua força, trazendo instabilidade e colocando em xeque hábitos que compartilhávamos até então. Como estariam nossas estruturas? Conseguiríamos resistir a este evento? 

Essa explanação me remeteu a travessia do navegador brasileiro Amir Klink, que após muitos estudos para desenvolver um modelo de barco que permitisse cruzar o oceano da África até o Brasil, chegou à elaboração de um leve barco a remos. A explicação segue a mesma linha das estruturas das casas americanas. Diante de uma forte onda ou uma tempestade em alto mar, um barco pequeno consegue acompanhar os movimentos das ondas e, caso vire, pode facilmente ser desvirado, ao contrário de um barco muito robusto que, sendo derrubado, dificilmente pode se recompor. 

Para ilustrar esse fenômeno, Amir Klink (1995) cita  em seu livro “Cem dias entre o céu e mar”, onde narra essa travessia, a fábula “O carvalho e o junco” de Jean de La Fontaine. Na fábula, um grande carvalho lamenta-se pelo junco que, devido a sua leve haste, tinha que se curvar a tantos eventos externos, como a força do vento e o peso de um pássaro. O junco, por sua vez, argumenta que essa era na verdade uma qualidade que o permitia não se quebrar. Enquanto conversavam, uma forte tempestade surgiu. O junco se curvou, e o carvalho, tentando resistir, teve suas raízes arrancadas. 

Assim, diante de eventos tão turbulentos, acompanhar o caos, sem saber ao certo aonde vai dar pode ser uma forma de resistir, não no sentido de relutar, mas no sentido de tolerar. Essa habilidade de tolerar esses eventos, só é possível se se pode ter capacidade negativa. Capacidade negativa foi um termo que Bion (1977) pegou emprestado do poeta Keats, que dizia que o segredo do sucesso de um homem era a capacidade de seguir e se entregar à vida, mesmo diante de suas incertezas e enigmas, escapando da busca de explicações racionais. Para Bion (1977), a capacidade negativa se refere à condição de tolerar dúvidas e incertezas surgidas na sessão analítica, sem se apressar na busca de um significado pronto. Essa abertura para o desconhecido coloca o analista em contato com a turbulência emocional do encontro analítico, e é diante dessa turbulência que se podem encontrar as pistas para transformar uma situação adversa em uma boa causa (Bion, 1979).  

Dessa forma, em uma pandemia sem precedentes neste século, frente ao desconhecido e sem receitas e direções prontas, tem sido necessário construir, dia-a-dia, caminhos possíveis.  Tolerar a turbulência trazida pela pandemia tem permitido, em alguns casos, que novos significados sejam dados a ela. Tem-se observado novos projetos nascerem, cômodos da casa serem ressignificados, ideias engavetadas saírem do papel, o convívio em família ganhar um novo sentido, ainda que tudo isso só seja possível com uma estrutura externa minimamente organizada, com direitos básicos atendidos, o que, infelizmente, ainda se restringe a uma pequena parcela da população.

Assim sendo, a capacidade de ser flexível e permitir-se ser dobrado, virado, acompanhar os eventos e poder vivê-los sem ser quebrado só é possível se podemos tolerar o caos. Ademais, retornar do caos não significa sair ileso, mas sim, transformado. 

Nesse aspecto, a psicanálise tem muito a contribuir, já que possibilita sermos mais tolerantes e continentes com o nosso caos interno, a partir do desenvolvimento do nosso aparelho para pensar, e da transformação de elementos-beta em elementos-alfa (Bion, 1962), tornando-nos também mais flexíveis para lidar com o caos externo.

 Finalizo com uma frase da personagem Anne, do seriado “Anne with an E” (Moira Walley-Beckett, 2017). Ela diz: “Às vezes a vida esconde presentes nos lugares mais sombrios”. Completo com a ideia de que só se pode achar esses presentes se toleramos estar diante das incertezas, mistérios e meias-verdades da vida (Bion, 1977). 

Que, apesar da série de eventos desastrosos desse ano, possamos nos deixar navegar por essas ondas turbulentas sem perder de vista os presentes do caminho, afinal são eles que também nos permitem a leveza necessária para sermos mais flexíveis, resistentes e fortes. 
 
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Agradeço ao Departamento Científico pelo convite e pelas bonitas floradas proporcionadas pelo projeto IPÊ. 

 
 
Referências:
ANNE with an E. Niki Caro. Canadá/ Estados Unidos da América: Moira Walley-Beckett, 2017.  
BION, W.R. (1962). Estudos Psicanalíticos Revisados. Rio de Janeiro. Imago: 1988. 
BION, W.R. (1977) Capacidade Negatica. In: Capacidade Negativa: um caminho em busca da luz. (Trad. Aile Stümer). São Paulo: Zagodoni, 2019. 
BION. W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v13, n.4, 1979. 
KLYNK, A. Cem dias entre o céu e mar. São Paulo: Companhia das lestras, 1995. 


Por: Francine Belotti, Psicóloga clínica (CRP: 06/109847), formada pela Unesp-Bauru, Mestre em Ciências, com ênfase em Psicologia da Saúde e Desenvolvimento pela USP, Especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), Especialista em Teoria e Técnica Psicanalítica pelo IEP-RP. Membro integrante e diretora do Departamento de Atendimento em Psicoterapia no IEP-RP. Contato: francinebelotti@yahoo.com.br