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“Endless life of people” (A vida sem fim das pessoas) de Yayoi Kusama, 2010

A importância do diálogo, do convívio, da aceitação do outro como ele é não são novidades. Mas aquilo que é estranho sempre nos impacta fazendo emergir um desejo de nos aninhar no conhecido, no próximo, naquilo que é familiar (Freud, 1919). Vencer essa batalha de se permitir se impactar pelo diferente e disso poder brotar um bom negócio é um grande desafio (Bion, 1979).

À primeira vista parece que aquele que chega não tem nada a me oferecer com seu “jeitão de outro planeta”. Estamos habituados à teoria da evolução darwiniana que defende a sobrevivência e reprodução dos mais aptos. Sob tal ótica, o que se ganharia ao lado dos que consideramos “menos aptos”?

Cientistas vêm investigando há algum tempo que a evolução não é apenas produto da seleção natural, mas que algo muito relevante na “transformação das espécies” é a associação simbiótica entre os seres (Carrapiço e Rita, 2009). A grosso modo, uma combinação de seres diferentes, um vírus e uma célula humana por exemplo, passa a gerar uma nova forma de organização que vai além das capacidades individuais de cada um deles e isso pode ser transmitido para os descendentes: “Além de penetrarem no genoma das células somáticas, por vezes também infectam as células sexuais, possibilitando a transmissão do genoma viral na linha germinativa, o que constitui um potencial evolutivo considerável”(Carrapiço e Rita, 2009, p. 192).

Segundo essa teoria denominada simbiogênese, nossa espécie foi sendo “criada” a partir da combinação simbiótica de seres. Nossa mitocôndria, por exemplo, seria originada por uma bactéria que se juntou a um organismo unicelular, deixando de ser possível separarem-se. 

Parece maravilhoso, não é? Como disse Mia Couto (2020), a mitocôndria seria a primeira grande refugiada do planeta. Mas imaginemos esse primeiro encontro:

Célula (C) – Nossa, o que essa daí veio fazer aqui? (…) Tá muito perto… o lugar dela não é aqui.
Mitocôndria (M) – Não sei o que estou fazendo aqui, parece que não me encaixo… talvez devesse ir embora…
C – Vai tirar minha comida… já temos organelas suficientes por aqui. Seria melhor se ela fosse embora… ela é estranha.
M – Ela é muito estranha… mas me sinto cada vez mais perto, inclinada a entrar lá.

Já dentro da célula, tudo apertado e caótico, tudo fora do lugar, não tinha mesmo lugar para todo mundo. Uma desordem, uma bagunça. O complexo de Golgi reclamando, o retículo endoplasmático piando no ouvido do núcleo, os ribossomos cutucando a mitocôndria, que, por sua vez, cutucava de volta, querendo ela mandar no pedaço. Até que a membrana plasmática não aguentou e se rompeu, não o suficiente para vazar com todo mundo de lá, mas foi além de sua capacidade de contenção. Ninguém achava que sobreviveria, houve alguma cooperação e a membrana pôde se cicatrizar, abrigando novamente a todos que, nesse período, puderam notar que a mitocôndria trazia mais energia pra célula: juntos podiam algo novo.

No Museu Judaico de Berlim há uma obra de arte chamada Garden of Exile (Jardim do Exílio), do arquiteto Daniel Libeskind: é uma construção ao ar livre constituída por um chão irregular (que você percebe ao adentrá-la e tropeçar um pouco, ou seja, não é perceptível visualmente, mas através da experiência do caminhar) e blocos de concreto grandes e altos que te limitam a visão, fazendo lembrar um pouco um labirinto. O intuito da obra é provocar no visitante a sensação de confusão sentida pelos judeus exilados: de ser arrancado de sua casa, seu país e começar a vida do zero em outro local, onde a língua é estranha, os costumes são outros e a receptividade era limitada. 


​Lançar-se para o convívio com o diferente é uma tarefa que parece ser bem ilustrada também por essa obra de arte: provoca estranheza, o caminhar não é firme, a gente tropeça, dá vontade de voltar atrás, não conseguimos enxergar um horizonte esperançoso. A sensação é oposta à de intimidade, tranquilidade. No entanto, quando podemos nos demorar sobre o outro, e, principalmente, suportar essas sensações estranhas, algo diferente pode nascer. Não apenas na nossa tolerância, que certamente se amplia após o rasgo da experiência, mas no que aprendemos de novo. O que aquele que parecia tão estranho e até bizarro, pode nos mostrar com sua forma “torta” de ver o mundo que lhe rende outro escopo de observação. 

Costumamos pensar que na inclusão, no acolhimento de refugiados, nas políticas de cotas, ganham os incluídos, acolhidos e cotistas. Que isso deve ser feito, pois somos bonzinhos e podemos oferecer algo aos “excluídos”. Acredito que é importante olharmos para o que ganhamos, o que aprendemos e o novo que pode surgir dessa combinação. 

Nas palavras de um teórico da evolução, Scwartz (apud Carrapiço e Rita, 2009): “(…) a seleção (natural) não produziu nada de novo, mas apenas mais de um determinado tipo de indivíduos. (…) evolução significa produzir mais coisas novas e não, mais do que já existe”.
             

Referências Bibliográficas:

BION, W. R. (1979). Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista de Psicanálise, Vol. VII, N. 3, Dezembro de 2000, p. 491-501.
CARRAPIÇO, F. & RITA, O. (2009). “Simbiogénese e Evolução”. In “Evolução. Conceitos e Debates”, Levy, A., Carrapiço, F., Abreu, H. & Pina, M. (eds). Esfera do Caos, Lisboa, p.175-198.
Couto, M. (2020). Apresentação oral em evento online Fronteiras do Pensamento, no dia 16/09/2020. 
FREUD, S. (1919). O estranho. In: Obras completas de Sigmund Freud. Volume XVII. Rio de Janeiro, Imago, p. 233-269. 


Por: Leticia Costa Godinho Pergher. Psicóloga pela USP de Ribeirão Preto (CRP 06/89895) especialista em Psicologia Cínica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), membro titular e supervisora do IEP.