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Domicílio do Vazio (Daniela Reis, 2017)

Quando me convidaram para escrever este texto, fiquei sem saber o que falar. Sobre o que falar? Por que as palavras me faltam? Como é difícil estar diante desse desconhecido, desse vazio…Surge, então, a ideia de falar sobre a fala, pois eu estava mergulhada em estudos sobre a linguagem a partir de um olhar psicanalítico lacaniano. Assim, escrevo sobre como a linguagem se constitui, como ela nos constitui e como se mostra.

Em seus Escritos de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure (2004), considerado o pai da Linguística, aponta para algumas propriedades da linguagem, frisando que a palavra é constituída de dois domínios: a ideia (conceito) e a forma (imagem sonora), sendo que ambos são construções sociais e culturais. O autor se debruçou sobre o estudo da língua, e mais do que isso, deu indícios de sua percepção de uma ‘fragilidade’ da língua, que envolve a intuição, a poética, o vazio, a evolução e mutabilidade, as lacunas e o incontrolável.

No mesmo período histórico, Sigmund Freud também pesquisava questões relacionadas à linguagem e suas perturbações, porém a partir do olhar clínico psicanalítico. No texto Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud analisa algumas situações como o esquecimento de nomes próprios, os lapsos de leitura e de escrita, introduzindo as questões do inconsciente nos processos linguísticos. 

Assim, através de suas observações da clínica e da sua vida pessoal, Freud (1901) percebe que os processos da linguagem (a fala, leitura e escrita) e o esquecimento e/ou lapsos podem estar conectados, através do mecanismo do recalque. Freud, então, assume que o pensamento pode ser perturbado pelas ideias contraditórias do desejo que ficou recalcado, e que os lapsos não são falta de atenção: são perturbações da atenção causadas por pensamentos que se impõem e desejam consideração.

Freud, com seus estudos, mudou a lógica do ideal de indivíduo, no qual este é o dono de si, que passa a sofrer interferências do desconhecido, que é o inconsciente. A partir disso, podemos discorrer sobre a interdependência entre linguagem e inconsciente para a constituição do sujeito, baseada na teoria psicanalítica.

No texto “Além do Princípio do Prazer (1921-1922), Freud apresenta a brincadeira do carretel de seu neto, na qual o carretel desaparece e o neto faz o objeto retornar à sua posse, acompanhado de uma fala, interpretada como uma renúncia instintual do bebê, pela sua introdução à cultura, ao deixar sua mãe ir embora. O brincar (que inclui o brinquedo e a fala da criança) representaria a transformação de um estado de falta de controle sobre o objeto amado (mãe) para uma sensação de controle. A brincadeira, dessa forma, torna-se um meio de elaboração mental, em que a criança passa da passividade para a atividade.

Na ausência da figura materna, cria-se na criança uma expectativa e um desejo de retorno/presença. O nascimento da linguagem se dá no momento em que esse desejo de retorno se materializa, como forma de suportar o movimento presença/ausência, no desenvolvimento da simbolização, que é também a fala. Esse é um momento de luto importante na vida da criança (DIDI-HUBERMAN, 2010).

No início da vida, o bebê vive um grande desamparo, pela dependência psíquica em relação aos adultos. Assim, a comunicação (tanto do bebê quanto de seu cuidador) se dá como instrumento de suporte para tal desamparo inicial. O bebê precisa desse cuidado do outro para sobreviver, pois a tradução das emoções do bebê realizada pelo adulto permite que o bebê se torne cada vez mais independente. No entanto, quando o bebê chora e o adulto tenta decodificar essa comunicação, não é possível acontecer uma correspondência exata das comunicações, ou seja, existe uma falta, um buraco entre o ‘falado’ e o ouvido; um desencontro que permanece com o sujeito em todos os encontros seguintes. Tal completude é perseguida por toda a vida desse sujeito (HARARI, 2001).

A mãe tem uma fala particular, que é o ‘manhês’, que é fundamental para que a criança entre na linguagem, pois é a partir desse endereçamento afetuoso que a criança passa a se reconhecer como sujeito de desejo. A musicalidade das emoções da mãe transmitida ao bebê é estruturante e impele no bebê o desejo de troca, do encontro, do diálogo, da comunicação (QUEIROZ, 2003).

A partir dessa apresentação do sistema simbólico que o outro faz para o bebê, iniciará o processo de sua constituição psíquica (BRUDER & BRAUER, 2007).

Faz-se, assim: a importância da fala da mãe, que traduz para seu bebê o que este ainda não sabe, e que ainda falta ser. A importância da fala, do grito, do choro, do protesto, ou dessa escrita, para se conhecer e ser reconhecido, também na falta. A importância da fala do analista, que coloca em palavras o que ainda só pode ser sentido pelo paciente; também na sua falta de sentido. A importância da fala do analisando, que conta histórias tentando encaixar seus quebra-cabeças, e que podem faltar peças. A importância da fala dos contistas que constroem pontos e pontes imaginárias para o mundo submerso dos leitores, e que ainda falta elaboração para ambos….

De uma forma mais livre e não mais teórica e estruturada, é possível considerar, então, os momentos de constituição e (re)construção de uma personalidade através da linguagem do inconsciente, que se mostra faltante. Surge, assim, um lado mais poético, inconstante, que não se estrutura perfeitamente, mas que, como o outro lado da mesma moeda, mostra-se: a fala demonstra e deixa escapar a nossa falta. A fala é a tentativa de encontro, mas ao se concretizar, escancara o desencontro e o desencanto.

A fala se faz como tentativa de aproximação…
A fala se faz como tentativa…
A fala se faz como…
 
Falei, assim, sobre a fala que estava me faltando.

 

REFERÊNCIAS

BRUDER, M. C. R.; BRAUER, J. F. A constituição do sujeito na Psicanálise Lacaniana – impasses na separação. Psicologia em Estudo, Maringá, Vol. 12(3), 513-521, set/dez. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pe/v12n3/v12n3a08.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2020.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
FREUD, S. Além do Princípio de Prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos (1921-1922). Vol. XVIII. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
FREUD, S. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). Vol. VI. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
HARARI, R. Da eficácia da ação ao esquecimento do nome próprio. In: O que acontece no ato analítico? A experiência da Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
QUEIROZ, T. C. N. Entrando na Linguagem. Estilos da Clínica. Vol. 8(15), 12-33, 2003. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v8n15/v8n15a02.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2020.
SAUSSURE, F. Sobre a essência dupla da linguagem. In: Escritos de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2004.


Por: Lia Brioschi Soares. Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (CRP: 06/104899). Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Enfermagem em Saúde Pública da EERP-USP. Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro titular do IEP-RP. Psicóloga Clínica e Psicóloga da Prefeitura Municipal de Orlândia.