“O essencial é invisível aos olhos.” 
(SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 73)

Neste ano, meus olhos voltaram-se de modo diferente para os ipês. Tenho o privilégio de ter alguns ipês próximos a mim, os quais posso observar e visitar com frequência. Um deles é aquele para o qual eu escrevo. Devo a ele um convite a um novo olhar.

Ipê é árvore capaz de se transformar de esquelética madeira desfolhada em pujante e colorido buquê, que se desfaz para dar espaço ao verde recheio das folhas. Tal qual a árvore que lhe nomeia, podemos considerar que o presente programa de publicações também precisou suportar perda de suas folhas. Compromissos adiados, alguns desfeitos ou refeitos. A energia se voltou para outra demanda, talvez menos visível para um transeunte desavisado que o contemplasse. E tal como a árvore, talvez tenhamos assim nos apresentado por um período: com perdas visíveis e com um porvir que ainda não podia ser vislumbrado. Sim, de tempos em tempos, faz-se inverno para nós. Intermitente e inevitável. Inexorável. A cada translação. Assim como ocorre na vida, assim como ocorre na sessão de análise.

 Na sessão, analista e paciente podem, temendo a angústia catastrófica atrelada a O, experiência de mudança e crescimento, recorrerem a fugas para o passado (memória), o futuro (desejo) ou presente (compreensão intelectiva), de modo que Bion propõe uma atitude “sem memória e sem desejo”, obtida por meio de uma “clivagem não patológica do ego” (ZIMERMAN, 1995). Lembro, então, que Bion (1973 a) sugere ao analista a abstenção da memória e do desejo a partir da “fé” na existência de um “infinito informe”, um “O”. Difere o “ato de fé” do “pensamento”, uma vez que este tem como base uma não coisa, enquanto aquele tem como fundo algo inconsciente, desconhecido e não acontecido (BION, 1973 a). Quanta fé foi solicitada ao nosso Ipê! 

Os ipês resistem às perdas da estação e mantém-se vivos: sem vislumbrarmos grandes manifestações, vão fazendo suas transformações e ainda no inverno desabrocham flores. Na análise os fatos são transformados e formulados e o objeto analítico se torna O quando sua evolução contemplou o suficiente para ir de encontro à capacidade K do analista (BION, 1973 a). É quando as flores presentes se fazem: com rica variedade de estilos e reflexões, pelas contribuições/floradas de seus autores, as flores presentearam nosso Ipê!

Quantas translações vivenciadas! Lembro que o objetivo da análise sendo em primazia a busca por O (a verdade absoluta, a realidade última, o incognoscível), a sensibilidade intuitiva não deve ser obscurecida pela sensorialidade (ZIMERMAN, 1995). Vale ressaltar que, para Bion (1973 a), a verdade última não é apreensível ao ser humano, 

“O não cai no domínio do conhecimento ou da aprendizagem, salvo incidentalmente; ele pode ‘vir a ser’, mas não será ‘conhecido’. Apesar de obscuro e informe, entra no domínio de K quando tiver evoluído até o ponto de ser elucidado através de conhecimento adquirido pela experiência, e formulado em termos derivados da experiência sensorial; sua existência é conjecturada fenomenologicamente.” (p. 29) 

Ao considerar a sensorialidade neste contexto, Bion (1973a) postulou que a memória guarda aproximações com a relação continente contido e pode ser sentida como conteúdo a ser possuído ou conteúdo a ser evacuado. Mais especificamente afirma que a memória necessariamente está subordinada aos sentidos e, consequentemente, ao princípio prazer-dor, assim como os desejos: memórias e desejos têm por objetivo barrar transformações K – O (BION, 1973 a). Recomenda a abstenção de memória e desejo, num deslocamento do domínio do princípio prazer-desprazer e aparente despojamento do princípio da realidade (BION, 1973 b). Não se trata de uma negação da realidade: o analista deveria buscar algo que difere da realidade normalmente conhecida (BION, 1973 b). 

E nosso Ipê segue vivo, em determinados momentos despojado de verde e de flores, em outros com sua copa exuberante. “É preciso que eu suporte uma, duas ou três larvas se eu quiser conhecer as borboletas. Parece que são muito bonitas. Se não forem elas, quem então virá me visitar?” (SAINT-EXUPÉRY, A., 2015, p. 36).  
 

Referências Bibliográficas:

BION, W.R. Realidade Sensorial e Psíquica. In: Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1973, p. 29 – 45.
_____. Opacidade de Memória e Desejo. In: Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1973, p. 46 – 60.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. São Paulo: Caminho Suave, 2015, 93p.


Por: Mariana S. B. Formighieri. Graduação em Psicologia (CRP: 06/73712) e Mestrado pela FFCL/RP-USP, Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP/RP, membro integrante e diretora suplente do Departamento Científico deste.

Co-Autoria: Marina Delduca Cilino (1), Ana Lucia Ferreira de Albuquerque (2) e Luís Gustavo Faria Aguiar (3)
1) Psicóloga clínica, com graduação pela USP, mestre em psicologia da saúde e desenvolvimento (USP), especialista em teorias e técnicas psicanalíticas (IEP-RP),  professora/orientadora do curso de especialização em teorias e técnicas psicanalíticas (IEP-RP), diretora do departamento científico (IEP-RP).
2) Psicóloga clínica com especialização em Psicoterapia Psicanalítica pela Universidade de Uberaba (Uniube)/Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em parceria. Membro titular e supervisora do Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP). Membro integrante do Departamento Científico Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP). (CRP 06/58835).
3) Psicólogo, formado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Pós-Graduado em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP). Atua na área clínica, oferecendo psicoterapia psicanalítica presencial para crianças, adolescentes e adultos, bem como psicoterapia online para adolescentes e adultos, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. É Diretor suplente do departamento científico e membro integrante do IEP-RP.