Imagem

The Brooks Range, from the series Genesis (Sebastião Salgado, 2009)


​É bastante comum deparar-se com alguma particularidade humana que assusta e causa (muito) desconforto. É possível que isso aconteça na observação do outro ou na de si mesmo; e como é penosa a percepção da verdade de tudo aquilo que nos compreende enquanto humanos. Às vezes, a atitude alheia é observada e, defensivamente, imagina-se que nunca se assumiria determinada conduta e que alguns estados mentais estão muito distantes da própria experiência e natureza. Ainda, é possível captar de forma intuitiva alguma verdade dolorosa a respeito da própria mente, quase impossível de ser acolhida internamente em um primeiro momento. De acordo com Chesterton (1908), se pode ser real a felicidade requintada de um homem em esfolar um gato, uma das soluções humanas para lidar com tal desafeto pode ser negar o gato esfolado. Seria também uma saída ficar longe de tudo e de todos que mencionem ou lembrem da palavra “gato”? Ou quem sabe, dizer que não há nada de amoral em esfolar um animal? Dessa forma, diante da dificuldade em suportar a percepção de uma dimensão primitiva, violenta e secular pertencente a nossa existência, corre-se o risco de sufocar, negar, perverter ou banalizar tais conteúdos.

De fato, o preço a ser pago para acolher e tolerar tudo o que existe dentro de nós é alto; mas o preço por desconhecer que uma dimensão mental turbulenta existe, sufocando-a, pode empobrecer ou danificar a si mesmo e as relações; ou seja, perde-se muito. Neste caso, é possível que a dificuldade em reconhecer e tolerar a verdade conduza à evasão da realidade psíquica, instaurando-se, por exemplo, os estados de arrogância (BION, 1958).

A precariedade, o vazio, a violência e a confusão constituem a nossa existência. Ao mesmo tempo que tal percepção pode ser (bastante) desagradável, o contato com as assustadoras emoções (inerentes ao humano) e o acolhimento das mesmas, possibilita que elas sejam assimiladas, integradas em nossa personalidade, e, assim, civilizadas e passíveis de negociação, diferentemente de serem enquadradas ou aniquiladas (CASTELO FILHO, 2017/2018), o que forçaria uma homogeinização mental insana.

Dessa forma, a psicanálise é um “espaço” no qual a verdade sobre nós mesmos pode ser revelada, uma vez que ela permite que uma pessoa seja apresentada para ela mesma (CASTELO FILHO, 2017/2018). Sendo assim, a psicanálise seria também um espaço em que, a partir da disponibilidade e tolerância em ser observado e analisado por outra pessoa, a virtude da humildade poderia se desenvolver? Humildade no sentido de reconhecimento da nossa condição ontológica, que é a de ser precário, vulnerável e permeado por paixões. Nesse sentido, a possibilidade do florescimento desta virtude encontra-se no conflito (CHESTERTON, 1908), na “colisão” entre coisas aparentemente opostas; para ser “humilde”, é necessário encontrar-se com a própria onipotência e com o impulso de existir conforme os próprios desejos e conhecê-los.

Segundo Bion (1958) ao passo que a turbulência em conhecer a verdade pode ser tolerada, o orgulho pode converter-se em respeito por si mesmo. Assim, a possibilidade de investigar e conhecer quem se é, por mais desafiador que seja em alguns momentos, viabiliza que se desenvolva certa reverência pela própria existência e por tudo que a compõe. No entanto, o destino desse percurso é desconhecido, sempre existindo a ameaça de ruptura frente à perturbação característica da experiência de se conhecer. Para isso é preciso coragem. Virtude que novamente se desenvolve no conflito, sendo quase uma contradição nos seus termos (CHESTERTON, 1908): Significa um forte desejo de viver, que toma a forma de uma absoluta prontidão para morrer.
_______________________________ 
Agradeço ao Departamento Científico do IEP pelo generoso convite, e àqueles que me acompanham e me ajudam a (tentar) desenvolver virtudes em tempos difíceis. 
 
Referências:

BION, W.R. (1958). Sobre a arrogância. In: Estudos psicanalíticos revisados. RJ: Imago, 1974. Cap. 7, pp 101-109. 
CASTELO FILHO, C. (2017/2018). Estados primordiais da mente. Revista de Estudos Psicanalíticos, 35 (1), pp 39-59.
CHESTERTON, G. K. (1908). Ortodoxia. SP: Ecclesiae, 2013. 


Por: Ana Beatriz Paschoalato Di Nardo. Psicóloga graduada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – FFCLRP-USP (CRP 06/124978).  Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas (IEP-RP). Membro titular e integrante da Secretaria do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão-Preto (IEP-RP).