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L’heureux donateur (O doador feliz) – René Magritte (1966)

​“Não é a casa que nos abriga. Nós é que abrigamos a casa,
pois é a ternura que sustenta o teto.” (Mia Couto)
​E não é do que estamos todos precisados: sustentar o próprio abrigo, oferecendo-nos, quem sabe, um refúgio? Acolhe-dor. Por meio do cuidado. E do afeto. Conosco e com as pessoas com quem nos relacionamos. Ou mesmo inventar/sonhar terras onde pisarmos, ainda que insuspeitas… Talvez mais dentro do que fora de nós. Sim, ainda é arriscado lá fora. Mas também não é perigoso dentro? Quando construímos áreas remotas, ermas, inabitadas… Que, não visitadas, permanecem inóspitas, áridas, desérticas. Isoladas! Desabitadas mesmo por seu mais eminente morador… Que resta evadido e segregado. De si. Retornando áreas desconhecidas, ainda que tão familiares. Posto que a nós pertencentes! Talvez mesmo por isso que inquietante, pois que, após interditadas, vetadas, retornam, assim como nos lembra Freud (2010) em um texto originalmente escrito em 1919.

O estranho familiar. Do alemão, das unheimliche. Expressão literalmente intraduzível, posto não haver correspondente no português. A qual se propõe uma infinidade de traduções – incompletas, insuficientes -, cujas palavras parecem não carregar e expressar a complexidade de sua significação. Em um contínuo (não) traduzir. Estranho, inquietante, desconhecido, estrangeiro, sinistro, sombrio, infamiliar? São múltiplas as ressonâncias e reverberações. Escolha, pois, você. Só sei que um conceito perturba-dor. Angustiante. E inquietante, sem dúvida.

Interessado em desbravar essa seara, embrenhando-se pela vereda das analogias semânticas, Freud (2010) resgatou a compreensão de que heimlich diz daquilo que é pertencente a casa, familiar, íntimo, aconchegado. Em uma de suas acepções, inclusive abrange o seu contrário, o que deve permanecer oculto, escondido. Revelando uma ambiguidade, em que, paradoxalmente, heimlich também se aproximaria de unheimlich, seu antônimo, expressando um par de opostos. Abrigar seria o termo, pois compreende a ambivalência residente em uma mesma palavra, coincidindo com o seu sentido antitético. Assim, mesmo o conhecido/familiar comporta o que se oculta, o infamiliar. Ao que o autor acrescenta se tratar de um alheamento entre ambas as ideias, não opostas. O familiar que se torna estranho. Aquele habitante do familiar, esse estranho… Que desperta um sentimento de desencaixe, desorientação, de inquietante estranheza.

Olhando através da fresta aberta por Freud, proponho uma aproximação em relação aos nossos tempos, tecendo, imaginativamente, a partir de uma leitura criativa, um espaço de experimentação de significados/sonhos possíveis. Pois não é interessante – e mesmo inquietante? – que nossas casas, tão nossas familiares – afinal, não são os nossos lares? -, neste momento, quando necessitados de nos refugiarmos e recolhermos nelas, parecem-nos… estranhas? E não nos abraçam ou acalmam. Mas, antes, inquietam-nos, angustiam-nos. Levam-nos, do contrário, à sensação de não estarmos nela ou não pertencentes a ela. Ou aconchegados. Que dirá íntimos. Restando desarvorados. Desterrados. Evadidos da própria casa – externa e interna. Exilados, a quem não se providencia asilo. Habitante sem terra-casa-teto-mente onde se alojar. Refugiados sem-lugar… Em um não-lugar. Ainda que na própria casa!

Não ir para fora, mas ficar dentro. Como que trancafiados no interior de nós. Fora do mundo. Externo, frisa-se. Sem escapes. E dentro lá é coisa que acalma, aconchega? Posto que o interno, tão nosso, também provoca temor e pode assustar. E o que dizer, então, da força para manter algo não conhecido, evitando-se que possa aparecer, apesar do esforço por vir à luz, em um conflito vivido na interioridade? Logo agora, em que não podemos nos distrair daquilo que desejávamos nos esconder com aquilo que habitualmente fazíamos, e que hoje está, esbugalhado, a olhar para nós. Aquilo que não sabíamos que conhecíamos, infamiliarizados que somos conosco mesmos. Que sempre esteve ali, à espera por ser redescoberto e reconhecido, aquele estranho que não se suspeitava conhecido. Mas talvez não nos conhecermos, dos perigos, o maior…

O que será que nos aflige tanto ficarmos em nossa casa interna? O que tememos? Que casa é essa? Que nos inquieta, cujo interior se mostra tão difícil habitar. Estar em casa, mas não se sentir aconchegado. Antes, banido das próprias terras ou assombrado. – Ou seríamos desertores? – Que diz de algo tão íntimo… (O que não pode ser admitido?). Somos, pois, confrontados com uma estranheza inquietante. Em um momento em que as fronteiras dentro/fora, público/privado, real/irreal ficam borradas, predomina, então, a sensação do infamiliar. Posto que não estamos vivendo algo que consideraríamos fictício/fantástico, mas que se mostra real? Mais estranho até mesmo que a ficção. Apesar das periclitantes negações também existentes.

Daí que nos ajuda pensar que, mesmo em casa, a inquietação ainda assim habita, tem sua morada. Pois que uma desconhecida casa nos habita, até em meio aos nossos íntimos (?) lares. Mesmo o familiar tem em si a obscuridade. Emergente, que vem à luz, em dadas situações, mesmo devendo ter permanecido secreta, latente, oculta (FREUD, 2010). Se encontraremos guarida já é um dos percursos internos a se atravessar. Uma estrada a se desbravar e revitalizar. E uma morada a se construir.

Pois que casa é essa que me habita é, a mim, uma estranha. Não mais a mesma. Não é pequena. Nem grande. Não se dimensiona. Nem se conta por seus cômodos. Nem por seu mobiliário, arquitetura ou localização. Às vezes parece perder o teto, mas quem sabe assim se pode olhar as estrelas? Há que se ter olhos para vê-las. Às vezes perde o solo firme e parecemos atolar ou afundar… Naufragar no liquefazer de turbulentas águas e emoções. A partir do que podemos, então, aprender a nadar. Ou surfar. Alarga-se para acomodar hóspedes, versões de nós… “É uma casa muito engraçada”, que muda para acomodar. Ou desacomodar. Terá paredes? E essas serão, então, muros? E esses amuralham-nos. E nos protegem de quê: de fora? Ou das forças de dentro? Ou, então, confinam-nos? Intramuros erigidos internamente, interditando áreas que, assim, desconectam-nos daquilo que é mais vivo… Restaremos, então, inanimados, não discriminados em mortos ou vivos?

Temos intimidade com a nossa casa interior? Será confiável? Ou estaremos em relação a ela alheios? Em um momento de mudanças, até mesmo a casa pede reformulações e materializações. E ampliar uma casa terá a ver apenas com a sua metragem? Ou se relacionaria também com uma área de flexibilidade com que se permite se conhecer? Recriar-se. Reinventar-se. Ventilando, oxigenando. Podendo reformar-se. O que não precisa significar destruição total. Mas readaptações. Aproveitando o que já a constitui, transformando-a. Em um trabalho restaurativo, que preserva a sua essência, mas que também acrescenta o inusitado, o insuspeitado. Para que caiba quem, então, somos. Construindo-se pilares que amparem. E sustentem. Constituindo a fundação, base de uma casa que se deseja edificada.

“Onde, em nós, a casa mora.” (COUTO, 2019, p. 53), uma reflexão que propõe para além de um espaço exterior. Que aponta para um lugar desde dentro. Posto que uma casa reflete quem
a habita. “O homem é como a casa: deve ser visto por dentro.” (COUTO, 2007, p. 88). Fazer morada dentro de nós. Cabendo, inclusive, o que nos constitui e nos faz ser quem somos. O que inclui o familiar. E o que também não é. Pois o desconhecido não está só fora. Também está na casa. Esta estranha que nos habita. Que nos inquieta. Conhecida e infamiliar. Pois que existe um deslizamento. Do familiar ao estranho. A um ponto até mesmo de indeterminação. Que também obscurece. Como pontua Canetti (2005, p. 13), “Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido […] Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho… Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si foram ditadas por esse temor ao contato.”. Não apenas em relação ao outro. Mas fundamentalmente o contato conosco. Esse estranho que nos habita. Tendo uma casa a amparar. Cujo acolhimento a nós mesmos abriga e sustenta, quem sabe, uma casa inteira.

Ser a casa onde se funda um lar. E este se associa à lareira. Abrigar-se perto do fogo. Aceso. Em torno do que se pode se proteger. Claro, há o risco de queimar. Mas pode, enfim, aquecer. Aconchegar. E também desassossegar…
 
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Grata novamente aos Departamentos Científico e de Relações Institucionais por me ofertarem, da sua casa, uma porta aberta, aonde os pensamentos podem transitar. 

 
 
Referências:

CANETTI, E. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
 
COUTO, M. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
 
COUTO, M. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Editora Schwarcz S. A., 2019.
 
FREUD, S. O inquietante (1919). In: FREUD, S. Histórias de uma neurose infantil [“O homem dos lobos”], Além do princípio do prazer e outros textos [1917-1920]. São Paulo: Editora Schwarcz S. A., 2010.


Por: Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP – CRP 06/90086, Mestre em Ciências – Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto – IEPRP.