Diante disso, pensei em como essa pandemia vem exigindo uma exposição nova de nós mesmos. Para você, leitor, é fácil escrever, participar de lives, fazer vídeos em redes sociais ou até mesmo participar de reuniões online? Acredito que esse novo formato de estar com o outro veio para ficar e agregar, mas, ainda assim, é algo com o qual a maioria de nós não está acostumado. A grande novidade dessa exposição online, penso eu, é que não sabemos quem ou quantos estão do outro lado. Não temos a dimensão da nossa exposição. Precisamos criar um espaço em nossas casas para trabalhar e com isso acabamos compartilhando novos cenários. Assim, nossa intimidade está mais à mostra, não só a da casa concreta, dos novos quadros e sons, mas da casa-mente e, daí abrem-se portas infinitas para fantasias.
Não estamos somente enfrentando as emoções que já estão tão à flor da pele por todas as privações que se fazem necessárias em um momento como este, mas, ao enfrentar o novo, temos a oportunidade de descobrir nossos recursos desconhecidos. Para Ferro (2011), todas as mentes agem de modo a evitar as emoções, pois o despertar delas pode conter uma experiência parecida com sofrer uma violência. Acredito que ao evitar emoções evitamos também, muitas vezes, nosso desenvolvimento pessoal e este me parece um momento bastante favorável para caminharmos nesse sentido. Como na obra de Rembrandt (1632), o filósofo encontra-se em meditação, ou seja, olhando para dentro, ao mesmo tempo em que, no seu mundo externo, a luz que vem de fora e do fogo ilumina a penumbra ali antes existente.
Tenho ouvido muito que o ano está perdido, e é disso que esse texto se trata, sobre encontrar e não sobre perder. Claro que não podemos deixar de sentir as perdas das pessoas, mas falo aqui do que seriam as perdas de rotina, dos antigos hábitos. O encontro com nós mesmos é trabalhoso e exige coragem, pois é com muita frequência que vemos em análise: o quanto dói reconhecer nossas grandiosidades, nossas qualidades. O ano que nos fez sair, forçadamente, da zona de conforto, do nosso setting há tanto tempo estruturado e com pouca possibilidade de mudança. Mudou-se além do divã. Mudou o analista, o analisando e todo o resto da sociedade.
Em um belíssimo texto, Freud fala sobre o estrago da primeira guerra, mas em uma visão bastante esperançosa, diz: “Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes” (Freud, 1915, p.319). Quando vamos escrever algo, temos ideias em mente e escolhemos uma para tratar, mas dificilmente sabemos onde o texto realmente irá dar. Ao passo que fui escrevendo, me vi agradecida por todas as novas oportunidades de crescimento, e com esperança que você, que está lendo essas palavras tão íntimas, também esteja podendo abraçar cada nova vivência, crescendo para que o seu terreno interno esteja mais firme quando um outro novo chegar.
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Agradeço ao Departamento Científico do IEP por esse convite suscitando emoções tão deliciosamente inquietantes.
Referências:
FREUD, S. (1915). Sobre a transitoriedade. In: _______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição Standard Brasileira).
Ferro, A. Evitar as emoções, viver as emoções. Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. São Paulo: Artmed, 2011.
Rembrandt. Filósofo em meditação. 1632. Pintura, óleo em tela, 34x28cm.