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Marie Therese e Maya (Picasso, 1938)

“Se a disposição para a guerra for um produto da pulsão de destruição, o mais fácil será apelar para o antagonista desta pulsão, para o Eros. Tudo o que estabelecer laços afetivos entre os homens deve atuar contra a guerra”. (Freud, 1915).

 Muita gente me pergunta como foi estar grávida e ter um bebê em meio à pandemia. Tem um lado difícil. Muito difícil. São muitos medos, muitas angústias. Mais dúvidas e incertezas. Que riscos corremos? Como estariam os hospitais, o restante das pessoas e o mundo (interno e externo)? Como receber um novo bebê em meio a tantas perspectivas ruins de futuro?  Sem tanta ajuda externa? Sem visitas das pessoas próximas e queridas? Como ficará a vida com mais esta mudança? Já são tantas… Muita atenção e muito cuidado, com tudo, com todos. Cansaço. 
  
Por outro lado, sinto que é um privilégio. Um alívio. Poder desejar e comemorar a vida em um momento como esse é acalentador. Um oásis no deserto. Um ato revolucionário de amor em meio à guerra. Neste período em quarentena, tivemos tempo e espaço para preparar o “ninho”: para o novo filho que estava por vir, para experimentar novas formas de estarmos juntos em família, para continuar trabalhando na segurança do meu lar e ver surgir novidades em vínculos antes estabelecidos. Pude ser recebida e receber meus pacientes em nossos locais mais íntimos: nossas casas e nossas mentes. Senti-me acompanhada, pelos que estão próximos e pelos que estão distantes, de diversas maneiras.
  
Muitas vezes me vi perdida, enfurecida, entristecida com a realidade e com o mundo. Foram desencontros e despedidas. Turbulências. Mas também me encantei com minha casa se transformando em um consultório produtivo, em salas de reunião e bate-papo, em ateliês, campos de guerra de almofadas, em florestas de aventuras, parques aquáticos, em mundos de princesas, dinossauros e cowboys. Em um útero aconchegante e protegido. Assim como Picasso transformava sua realidade em formas e as formas em arte, vimo-nos com o desafio de enfrentar perigos com água, sabão e muita criatividade. Enfim, meu “ninho” se tornou o mundo inteiro, com todo paradoxo e complexidade que isso implica. 
 
Winnicott (1971) quando nos presenteia com o conceito de espaço transicional, diz que esta área tem sua origem nas idas e vindas da mãe, num interjogo entre presença e ausência, ilusão e desilusão, entre a capacidade crescente do bebê de esperar e a confiança de que a mãe voltará. Isto possibilita ao bebê experimentar sua criatividade e criar pontes entre seu mundo interno e a realidade externa. 
 
Esta experiência descrita por Winnicott entre a mãe e seu bebê pode nos servir como modelo para pensarmos  a gestação, a relação analítica, o viver. Neste interjogo entre o medo e o desejo, entre o familiar e o desconhecido, entre as dores e as delícias, é que os encontros acontecem e as surpresas se revelam. Nesta oscilação entre guiar e deixar ser guiado, arriscar sem garantias e o esperar confiante é que a vida ressurge com esperança de que tudo nasce e renasce, de diferentes formas, nas mais adversas circunstâncias (WINNICOTT, 1971). 
 
Desta maneira, percebo que estamos todos navegando o mesmo mar turbulento, apesar de cada um ter seu barco, dadas as individualidades e intensidades de cada experiência. Nossos caminhos se cruzam no desafio de conseguir suportar o terror, sem negá-lo ou menosprezá-lo, e ainda assim manter nossa capacidade de gestar e construir “ninhos”, nutrindo novas ideias, esperanças e possibilidades. Como diz Guimarães Rosa (2015), em Grande Sertão: Veredas, “quando nasce um menino, o mundo torna a começar” e o jagunço torna-se parteira pela força irrefreável da vida. Apesar de tudo, com tudo e por tudo que estamos vivendo. 

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Minha gratidão ao Departamento Científico e ao IEP pela construção deste “ninho” tão acolhedor e afetuoso de trocas de experiências!

Referências:

FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e morte (1915). In: ___Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas Volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ROSA, J. G. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
WINNICOTT, D. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1971). In: ___ O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.


Por: Ana Cláudia de Barros Fioravante. Psicóloga clínica formada pela FFCLRP-USP (CRP 06/84638). Membro titular e integrante do Departamento de Ensino do Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP).