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Le Sourire d’une larme / La sonrisa de una lágrima (Joan Miró)


​“O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.”
(Guimarães Rosa)
Me sentindo representada pelas palavras de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, inicio este escrito… Poder aceitar as incertezas e as angústias que a pandemia me desperta e encontrar em mim coragem para me abrir ao novo e desconhecido, que o momento me apresenta, me faz pensar… Penso na maneira em que me surpreendi, corajosamente, abraçando esse novo e desconhecido. Acredito que quando me senti ameaçada pela ideia de não poder manter meus vínculos e trocas, abandonei meus pré-conceitos e certezas absolutas e me permiti experimentar uma nova maneira de viver esses vínculos e trocas. Ainda me percebo vivendo um misto de assombro e medo permeados por momentos de criatividade, descobrimentos e esperança. 
 
Acho que foi inspirada por essa sensação de paradoxos, que escolhi a imagem que acompanha este texto. A primeira vez que me encontrei com a obra O Sorriso de uma lágrima (Joan Miró, acrílico sobre tela, 1973) exposta na Fundació Joan Miró em Barcelona, fiquei de alguma forma tocada por ela. Na descrição que fica ao lado da obra consta a seguinte apresentação: “Miró fala de ‘procurar o barulho escondido no silêncio, o movimento na imobilidade, a vida no inanimado, o infinito no finito, as formas no vazio e o eu no anonimato’. Tudo contém, de alguma maneira, o seu oposto. A contradição do título é reforçada pelo contraste entre a metade superior e inferior da pintura”.  Já no site da Fundació Joan Miró encontramos o seguinte comentário sobre a obra: “Existe uma incompatibilidade aparente no título O sorriso de uma lágrima. Os dois conceitos principais expressam sentimentos conflitantes que o elo gramatical suaviza poeticamente. Também na pintura há um contraste entre a metade superior, que mostra a textura original do tecido, e a metade inferior, dominada por forte cromatismo; ou entre o tratamento mais livre acima, que apresenta um emaranhado de linhas brancas e salpicos, e a distribuição organizada de cores abaixo, como se evocasse as divisões artificiais das culturas. O elo entre as duas áreas é uma lágrima negra que se encontra no horizonte”.
 
Parto desse contraste de sentimentos para contar a vocês um pouco do que tenho vivido nas minhas atividades relacionadas ao “ofício psi”. Eu me deparei, de uma hora para outra, repentinamente, precisando me recriar. Recriando meu cuidado comigo e com o outro, recriando meu convívio com os colegas, recriando a maneira de encontrar pacientes e supervisionandos, recriando meu setting
 
E foi importante estar acompanhada por minha analista nesse momento e nesse movimento. Estar acompanhada por meus colegas que dividiam comigo suas experiências e descobertas. E estar acompanhada por meus pacientes, contribuindo para me manter com coragem de contornar os inevitáveis obstáculos que iam surgindo nos primeiros encontros online. Sem desistir, juntos buscávamos novos caminhos para manter nosso encontro! Percebi, com muita satisfação, o valor que meus pacientes e os pais dos pequenos pacientes davam ao nosso trabalho. Muitos inicialmente demonstraram profundo incômodo com essa imposição trazida pela pandemia, mas a grande maioria pôde conversar sobre isso e, juntos, percebemos que apesar do nosso desagrado por perder a chance de nos encontrarmos em meu consultório, como sempre fazíamos, decidimos aceitar viver essa experiência, pois a outra alternativa, que seria suspender nossos encontros, não foi aceita como razoável por mim nem pelos meus pacientes.
 
Penso que ainda seja muito cedo para qualquer avaliação sobre o que estamos vivendo junto aos nossos pacientes. No texto de Assis (2011) Voilà mon couer: o gesto amoroso do analista, a autora citando uma frase de Ogden nos lembra que “é responsabilidade do analista reinventar a psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá- la durante o curso da análise”. Isso me trouxe a lembrança de outro trabalho do Ogden: Do que eu não abriria mão, no qual, ele nos propõe que é importante que o analista tenha valores dos quais ele não abriria mão para ajudá-lo a dar sustentação ao trabalho analítico. Se refere “aos modos de ser e modos de ver que caracterizam a maneira específica na qual cada um de nós pratica a psicanálise” (OGDEN, 2010, p.39). Nos conta, então, do que ele não abriria mão em seu exercício da psicanálise e nos lembra que cada um terá seus próprios valores analíticos. Com todas essas mudanças que a pandemia trouxe para meu trabalho clínico, descobri que eu não abriria mão de estar com o outro, de encontrá-lo seja dividindo um mesmo espaço físico na minha sala de atendimento, seja dividindo um link pelo hangoutsgoogle meet ou zoom, por uma chamada de vídeo ou voz pelo whatsapp… 

Tudo isso é algo novo e desafiador de nossa capacidade de adaptação. E desejo que a gente possa passar por esse momento tão delicado com criatividade, aprendizado e esperança, podendo entrar em contato com o cenário atual pra nos informar e proteger, mas alimentando nossa alma do que há de bom e belo. Alimentando nossa mente pelas trocas, independentemente de como elas possam acontecer. O que importa, e é muito bom, é perceber que elas podem sim acontecer!
 
Sei que alguns poderão se identificar com as vivências e sentimentos que descrevo aqui, outros nem tanto. Finalizo, então, com um trecho de uma carta de Hunter S. Thompson para Hume Logan: “Tenha sempre em mente que essa é MINHA MANEIRA de ver as coisas. Acho que é uma maneira bastante razoável, mas você talvez não ache. Cada um de nós tem que criar seu próprio credo – esse é o meu” (USHER, 2018).

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Agradeço ao Departamento Científico pela acolhida e companhia. E ao IPÊ pelas bonitas floradas em tempos tão áridos. 

 
Referências:
 
ASSIS, M. B. A. C. (2011). Voilà mon couer: o gesto amoroso do analista. In: Ide (São Paulo) (v.34, n 52). 
OGDEN, T. H. (2010). Essa arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Porto Alegre: Artmed
USHER, S. (2018). Cartas Extraordinárias: a correspondência inesquecível de pessoas notáveis. São Paulo: Companhia das Letras 
 
Fundació Juan Miró: https://www.fmirobcn.org/es/coleccion/catalogo-obras/19873/p-la-sonrisa-de-una-lagrima-p(recuperado em 03/08/2020).


Por: Ana Lucia Ferreira de Albuquerque. Psicóloga clínica com especialização em Psicoterapia Psicanalítica pela Universidade de Uberaba (Uniube)/Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em parceria. Membro titular e supervisora do Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP). Membro integrante do Departamento Científico Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP).
(CRP 06/58835).