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Foto: Sebastião Salgado

Aceitei muito agradecida o convite do Departamento Científico de escrever para o IPÊ, um projeto delicado originário de mentes criativas em tempos difíceis, cuidado pelos Departamentos Científico (Marina Delduca Cilino, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, Luís Gustavo Faria Aguiar e Mariana Siqueira Bastos Formighieri) e de Relações Institucionais (Rhianne Yukana Ishihara Souza, Lucas dos Santos Lotério e Nádia Marina Bonardi Trebi). 
Conto a história dessa minha experiência de sentir, apesar do medo. O perigo da contaminação pelo coronavírus e a forma diversa com a qual ataca cada corpo, passando despercebido ou devastando a capacidade de reagir do organismo, coloca-nos diante da ameaça constante da morte. Escrevo a partir das minhas inquietações nesse momento de uma pandemia que teve por consequência o isolamento social a fim de evitar a propagação maior do vírus. Szymborska (2011, p. 36) com seu poema é oportuna:
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A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal
Escrever para não (deixar) morrer a fim de ajudar a entender o que está se passando. A turbulência vivida não paralisou nem os infortúnios nem a disponibilidade para a descoberta e construção de tesouros. Medos simultâneos da pandemia, da política, da economia. O isolamento foi temporariamente rompido pelo manifesto de uma multidão na ocasião da morte de George Floyd. Deitou-se no chão solidária à dor não escutada do homem sufocado, apesar de sua súplica. Inúmeras vezes ecoou “I can’t breathe!”. Sua filha traz uma lição “meu pai está mudando o mundo”. Ainda morre-se de racismo, de corrupção, de impotência. Miguel, o menino brasileiro pobre e assustado, cai do edifício. A desigualdade fica evidente, é muito diferente enfrentar o mar revolto quando se está em um grande navio ou quando se segura em um galho de árvore. A vitrine brasileira expõe a lúgubre desvalorização da educação e da ciência, a subserviência política, a submissão. Um homem revoltado arranca as cruzes plantadas na areia do Rio de Janeiro para homenagear os mortos pela Covid-19. Outro homem replanta, com a força e o sofrimento de quem perdeu um filho para o vírus, uma daquelas cruzes representava sua dor. Arrancar as cruzes é negar a própria mente. 

Tempos tristes… de silêncio, de alguns sons. Descobri a música minimalista de Arvo Pärt para acalentar o coração, música doce com sinos, na “técnica tintinabular” (VOTTA JUNIOR, 2009, p. 10) criada pelo compositor após anos de silêncio composicional de sua crise artística e espiritual. Também é tempo de criar oportunidades, ficar mais perto de situações caseiras. Os dentinhos não pararam de cair, as aulas são online, as lições de casa continuaram, mesmo que às vezes aos protestos! A solidariedade aparece, os amiguinhos gravam seus vídeos de parabéns. Além dos jogos online para se encontrar, tem o Tik Tok, um jeito de mostrar as novidades dançantes, olhar e ser olhado. “Mãe, bugou!”. O que será isso? Outro vocabulário! Entre uma conversa e outra, despropositada, surge a pergunta “mas porque tem que ter esse coronavírus?”. Não sabemos quando estamos sendo infectados nem como estamos afetados, muito menos como está o infantil dependente que habita nosso psiquismo, o infantil na criança, no adolescente, no adulto. É preciso tempo para compreender essa experiência emocional vivida. 

Preocupações com a saúde, com a família, com as economias, medos intensos. Os moinhos de ventos não pararam de soprar. Desmatamento para “passar a boiada”, nuvem de gafanhotos, terremotos, ciclones. País desmatado esse nosso, podia ser gigante pela própria natureza. Paradoxalmente, a natureza constantemente violentada respirou um pouco, mostrou-se. Bonitas paisagens, águas límpidas. Em seu livro Gênesis, publicado em 2013, o fotógrafo Sebastião Salgado fez uma homenagem fotográfica ao nosso planeta em seu estado natural. Trata-se de um hino visual ao esplendor, à fartura e à fragilidade da Terra, que só pude olhar com atenção nesse momento, na troca pelo tempo do trânsito. Dentre muitas, encontrei uma foto que me chamou a atenção pensando no que estamos vivendo. Era uma casa no alto de uma árvore (p. 148-149), não como o brinquedo para as crianças, mas como morada, um lugar de habitação. A foto foi tirada entre fevereiro e março de 2010. O lugar foi encontrado pelo fotógrafo na pesquisa de santuários “ilhas isoladas que oferecem as condições ideais para o desenvolvimento e a sobrevivência de flora e fauna endêmicas” (SALGADO, 2013,  p. 117), refúgios inevitavelmente ameaçados de extinção. Na Papua Ocidental (Indonésia), os korowai, uma tribo tradicional que esteve em total isolamento até 1970, vivem em pequenos grupos familiares em casas nas árvores, construídas entre 6 a 25 metros acima do chão. Essas casas podem chegar até os 40 metros de altura, se houver uma disputa com vizinhos ou comunidade próxima, por segurança. É a luta da espécie humana pela vida. Pela segurança precisamos ficar distantes dos nossos vizinhos por aqui, cuidado conosco e com o outro, escolhemos ficar em casa. Estamos impedidos de sair, de encontrar as pessoas, de conviver com a família, amigos, de abraçar, conversar. Como vamos pertencer se não podemos estar junto? Como explorar e habitar novos territórios de convivência, de trabalho, de lazer? 

Uma mudança abrupta se impôs, nunca mais seremos os mesmos. É preciso aceitar a pressão da realidade. Se não dá para movimentar para fora, o movimento é para dentro, e esse pode ser mais ameaçador. Pode ser também oportunidade para observar mente e corpo com atenção, com a chance de refletir, repensar, reparar. Um estranhamento inicial deu lugar à urgência. O isolamento precisou ser rápido assim como as decisões sobre como realizar um trabalho terapêutico orientado pela psicanálise de modo virtual. Novas linguagens tecnológicas, novos códigos, plataformas. Da trágica mudança me lembrei do humor do samba “Pelo telefone”: 
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O chefe da polícia
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
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Foi concebido em um terreiro de candomblé, numa criação conjunta e cheia de improvisações, provavelmente o primeiro samba gravado no Brasil, em 1916 (SILVA, sem data). Pelo telefone começava-se a fazer um monte de coisas, como avisar a um desavisado de que alguma coisa aconteceria. Oitenta anos depois, Gilberto Gil canta “Pela internet”:
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Eu quero entrar na rede para contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze
Tem um videopôquer para se jogar.
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Trabalho remoto, palavras, sons e silêncio agora atravessando o fio condutor do computador ou celular, telefone, via Skype, Whatsapp e outros. Fio para nutrir e ser nutrido. Certa simetria com o paciente, vivemos um acontecimento em comum. Fiquei surpresa com a disponibilidade das pessoas de ocupar esse novo território. No começo, era mais cansativo pela privação dos elementos sensoriais, mas sobretudo pelo distanciamento, pelo não presencial. Primeiro veio a exploração, depois a ocupação. Passando da fase aguda à crônica, as coisas pareceram acomodar-se, mesmo que com o incômodo da incerteza, com a perda da condição de certo conforto. Mas, como disse Júlia Kristeva (2020) “quando tivemos conforto?”. O trabalho com o inconsciente é desconfortante. Ainda assim, é surpreendente poder fazer um bom trabalho através de um aplicativo. Kristeva (2020) contou que procura pensar no telefone não como um artifício tecnológico, num gesto protetivo, mas como uma membrana que nos permite entrar através da nossa voz na vida do paciente, escutar seu trauma potencial e entendê-lo. Pacientes com imensas angústias de desintegração aceitaram conversar conosco dessa maneira. Embora se tenha mudado a maneira formal de atender, mantemos nossa posição. As pessoas estão evoluindo, é possível fazer um trabalho relevante pelo aplicativo. Diante desse desafio, é preciso aprender a escutar pelo telefone, ver o paciente através de uma tela, conhecer outras dimensões de presença, mesmo que aquela que estamos acostumados continue sendo o nosso desejo e esperança ao sairmos dessa situação. 
 
Referências bibliográficas
 
DONGA; ALMEIDA, M. Pelo telefone. 1916. 
GIL, G. Pela internet. 1997. 
KRISTEVA, J. La situation virale et ses résonances psychanalaytiques. Videoconferência realizada no dia 14 de junho de 2020 pela International Psychoanalytical Association – IPA.  
SALGADO, S. Gênesis. Colônia, Alemanha: Editora Taschen, 2013. 
SILVA, F. Pelo telefone e a história do samba. Disponível em https://musicabrasilis.org.br/temas/pelo-telefone-e-historia-do-samba. Acessado em 03 de julho de 2020. 
SZYMBORSKA. W. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
VOTTA JUNIOR, A. A técnica tintinanbular de Arvo Pärt. Dissertação (Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2009. 

Por: Maria Ângela Favero-Nunes. Psicóloga Clínica, Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, com estágio de doutorado na Université René Descartes – Paris 5. Professora Titular e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Saúde Mental nos Contextos Institucionais da Universidade Paulista – Unip. Membro integrante da Diretoria de Ensino e docente do curso de Especialização em Teorias e Técnicas Psicoterápicas do IEP-RP. Membro Efetivo da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família – ABPCF.