Conto a história dessa minha experiência de sentir, apesar do medo. O perigo da contaminação pelo coronavírus e a forma diversa com a qual ataca cada corpo, passando despercebido ou devastando a capacidade de reagir do organismo, coloca-nos diante da ameaça constante da morte. Escrevo a partir das minhas inquietações nesse momento de uma pandemia que teve por consequência o isolamento social a fim de evitar a propagação maior do vírus. Szymborska (2011, p. 36) com seu poema é oportuna:
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal
Tempos tristes… de silêncio, de alguns sons. Descobri a música minimalista de Arvo Pärt para acalentar o coração, música doce com sinos, na “técnica tintinabular” (VOTTA JUNIOR, 2009, p. 10) criada pelo compositor após anos de silêncio composicional de sua crise artística e espiritual. Também é tempo de criar oportunidades, ficar mais perto de situações caseiras. Os dentinhos não pararam de cair, as aulas são online, as lições de casa continuaram, mesmo que às vezes aos protestos! A solidariedade aparece, os amiguinhos gravam seus vídeos de parabéns. Além dos jogos online para se encontrar, tem o Tik Tok, um jeito de mostrar as novidades dançantes, olhar e ser olhado. “Mãe, bugou!”. O que será isso? Outro vocabulário! Entre uma conversa e outra, despropositada, surge a pergunta “mas porque tem que ter esse coronavírus?”. Não sabemos quando estamos sendo infectados nem como estamos afetados, muito menos como está o infantil dependente que habita nosso psiquismo, o infantil na criança, no adolescente, no adulto. É preciso tempo para compreender essa experiência emocional vivida.
Preocupações com a saúde, com a família, com as economias, medos intensos. Os moinhos de ventos não pararam de soprar. Desmatamento para “passar a boiada”, nuvem de gafanhotos, terremotos, ciclones. País desmatado esse nosso, podia ser gigante pela própria natureza. Paradoxalmente, a natureza constantemente violentada respirou um pouco, mostrou-se. Bonitas paisagens, águas límpidas. Em seu livro Gênesis, publicado em 2013, o fotógrafo Sebastião Salgado fez uma homenagem fotográfica ao nosso planeta em seu estado natural. Trata-se de um hino visual ao esplendor, à fartura e à fragilidade da Terra, que só pude olhar com atenção nesse momento, na troca pelo tempo do trânsito. Dentre muitas, encontrei uma foto que me chamou a atenção pensando no que estamos vivendo. Era uma casa no alto de uma árvore (p. 148-149), não como o brinquedo para as crianças, mas como morada, um lugar de habitação. A foto foi tirada entre fevereiro e março de 2010. O lugar foi encontrado pelo fotógrafo na pesquisa de santuários “ilhas isoladas que oferecem as condições ideais para o desenvolvimento e a sobrevivência de flora e fauna endêmicas” (SALGADO, 2013, p. 117), refúgios inevitavelmente ameaçados de extinção. Na Papua Ocidental (Indonésia), os korowai, uma tribo tradicional que esteve em total isolamento até 1970, vivem em pequenos grupos familiares em casas nas árvores, construídas entre 6 a 25 metros acima do chão. Essas casas podem chegar até os 40 metros de altura, se houver uma disputa com vizinhos ou comunidade próxima, por segurança. É a luta da espécie humana pela vida. Pela segurança precisamos ficar distantes dos nossos vizinhos por aqui, cuidado conosco e com o outro, escolhemos ficar em casa. Estamos impedidos de sair, de encontrar as pessoas, de conviver com a família, amigos, de abraçar, conversar. Como vamos pertencer se não podemos estar junto? Como explorar e habitar novos territórios de convivência, de trabalho, de lazer?
Uma mudança abrupta se impôs, nunca mais seremos os mesmos. É preciso aceitar a pressão da realidade. Se não dá para movimentar para fora, o movimento é para dentro, e esse pode ser mais ameaçador. Pode ser também oportunidade para observar mente e corpo com atenção, com a chance de refletir, repensar, reparar. Um estranhamento inicial deu lugar à urgência. O isolamento precisou ser rápido assim como as decisões sobre como realizar um trabalho terapêutico orientado pela psicanálise de modo virtual. Novas linguagens tecnológicas, novos códigos, plataformas. Da trágica mudança me lembrei do humor do samba “Pelo telefone”:
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze
Tem um videopôquer para se jogar.
Referências bibliográficas
DONGA; ALMEIDA, M. Pelo telefone. 1916.
GIL, G. Pela internet. 1997.
KRISTEVA, J. La situation virale et ses résonances psychanalaytiques. Videoconferência realizada no dia 14 de junho de 2020 pela International Psychoanalytical Association – IPA.
SALGADO, S. Gênesis. Colônia, Alemanha: Editora Taschen, 2013.
SILVA, F. Pelo telefone e a história do samba. Disponível em https://musicabrasilis.org.br/temas/pelo-telefone-e-historia-do-samba. Acessado em 03 de julho de 2020.
SZYMBORSKA. W. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
VOTTA JUNIOR, A. A técnica tintinanbular de Arvo Pärt. Dissertação (Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2009.