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Ilustração: Charles Bailey

Começo esse texto pensando onde será que ele vai dar. Será que vou conseguir pensar ou meu receio e alegria com esse convite inibirão meu processo criativo? Será possível escrever aqui tudo que penso? Será possível pensar tudo que escrevo? Ou, indo um pouco além, será possível pensar tudo que me ocorre neste instante? A alegria, com que inicio esse texto, vai logo abrindo espaço e rapidamente certa frustração toma seu lugar. Acho que é porque vou me aproximando do que, paradoxalmente, quero tentar falar: nossa capacidade de pensar é sempre limitada! Não há jeito mais gentil de dizer isso, essa é a realidade e precisamos enfrentá-la em algum momento da vida. 

Neste sentido, há alguns dias (ou meses talvez), venho tentando pensar sobre uma frase que li sobre a pandemia e a necessária quarentena que estamos tentando fazer. A frase era a seguinte: quanto mais a quarentena funcionar, mais ela parecerá desnecessária. Assim que a ouvi, o primeiro pensamento que me ocorreu foi que no processo analítico isso também acontece. Inventei uma nova frase que foi o pontapé inicial para essa reflexão: quanto mais um processo de psicoterapia funciona, mais ele parece desnecessário. Não sei vocês, mas falando em primeira pessoa, já vivi muito isso em minha análise e também com os generosos pacientes que me fazem companhia.

Normalmente inventamos um jeito de chegar até à análise ou psicoterapia e, independentemente do jeito que cada um arruma para iniciar essa difícil missão, geralmente vem junto um pedido de ajuda, conserto ou salvação. E, nós, tendo real clareza ou não desse pedido, o firmamos, sentados em nossas poltronas confortáveis e o selamos com o contrato verbal. Miguel Marques (2018) disse, certa vez, que ao recebermos um paciente estamos fazendo algo muito sério, estamos abrindo nossas portas, que estão longe de serem apenas as concretas, e estas vão muito além das fronteiras do consultório. Penso que não há momento mais propício para entendermos essa afirmação. E, se nos abrimos para os que nos chegam, eles também podem (ou não) se abrir para nós. Mas abertura para quê? Acho que aí mora a questão, pois não há de antemão como saber. E quando não há garantias que nos deixem seguros, o que inclusive é a nossa lida diária, corremos risco. Pode ser de vida ou de morte, mas não deixa de ser risco.  

Pode-se instalar, assim, o medo de sentir medo. Chico Buarque (2019), já dizia, no seu livro Chapeuzinho Amarelo, do medo do medo que temos do lobo que sequer existe concretamente, mas sim do lobo que criamos internamente, e esse com certeza existe e é tão grande que às vezes nos engole por inteiro. Assim, não há mesmo como pensar. Um processo terapêutico, para deixar de ser conserto de peças e passar a ser uma análise, requer muita paciência e tolerância, de ambas as partes, senão o trabalho sequer será uma boa oficina. Se não há uma boa peça funcionando, isto é, um bom aparelho para pensar os pensamentos, não há como atravessar essa cesura da análise como oficina e, muito menos, se aventurar a ir (devagar e sempre) além. No lugar, instala-se algo com grafia muito semelhante, mas sentido totalmente oposto, a censura.

Formular isso me ajuda a digerir, ainda que com azia, o que temos vivenciado. Uma junção terrível de dificuldade de pensar e falta de continência, sendo esta última a capacidade de conter, decodificar, transformar e devolver, em doses apropriadas, as identificações projetivas do bebê (ZIMERMAN, 2008). Sinto que as tentativas de silenciamento da ciência, negação da realidade e criação de delírios coletivos a fim de evitar colapsos financeiros tem gerado uma espécie de terror sem nome, termo criado por Bion para explicar o que acontece quando não há continência e acolhimento por parte do outro com quem nos relacionamos. Estes podem ser representados pelo par mãe-bebê, paciente-analista e, acredito, que até mesmo a relação população-presidente. Sendo assim, a ameaça aumenta, pois sentimos que não temos que nos proteger apenas de algo invisível. Além de lavar as mãos, faz-se necessário desinfetarmos o que ouvimos e, que, trancados ou não em casa, inevitavelmente chega até nós (ALMEIDA, 2020).

A psicanálise, para Freud, tem a importante função de capacitar o indivíduo a estar apto a trabalhar e amar. Penso, a partir disso, que há real legitimidade na preocupação com a volta ao trabalho e com os recursos financeiros do país, mas com a impossibilidade desse retorno imediato, há também (ou pode haver) a capacidade de amar, que também nos ajuda a pensar e a nos relacionar, primeiro com nós mesmos e, depois, com o outro. Desta forma, novos jeitos podem ser dados e estão, em diferentes esferas, sendo colocados em prática. Mas, afinal, o que significa se amar?

Freud (1969) criou o conceito de narcisismo primário, que diz respeito a um momento inicial e fundamental na vida de todos nós, mas que também precisa ser ultrapassado para que possamos investir nossa libido em outras pessoas e objetivos. Se essa fase da vida não ocorre ou não é bem vivida, instala-se o narcisismo como defesa. E que defesa maciça e rígida! Assim, fica realmente impossibilitado sair da superfície e ousar mergulhar em águas mais profundas.

Valter Hugo Mãe (2016) dá pistas de algo que pode acontecer caso essa defesa seja arrancada de uma vez, quando escreve que Crisóstomo “via-se metade ao espelho, porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía”(p.19). Como, então, se levar a sério? Como apostar no autocuidado, seja fazendo análise ou quarentena, se há no lugar do corpo e da mente, um abismo sem fim?

Finalizo compartilhando uma experiência que vivi pouco antes dessa escrita, que sem saber já era parte integrante do texto. Estava pesquisando sobre orquídeas na tentativa de encontrar qual era a espécie que eu ganhei de uma paciente muito querida há seis anos, quando lhe fazia visitas domiciliares. Esta é uma espécie que a flor nasce e morre no mesmo dia e, quando ela dá indícios de que irá florir é uma alegria só, bem parecido com a alegria que a raposa sente à espera do pequeno príncipe (SAINT-EXUPÉRY, 2015). É tão bela, que sempre esqueço de seu aspecto abjeto que dura quase todo o ano até que renasce, enfim.

No momento ela se encontra com folhas tão secas que é como se ela já não mais vivesse. Me preocupei e fui procurar algo que pudesse fazê-la reviver. Surpreendi-me ao saber que existem diversas espécies que eu sequer imaginava e, descobri que a que tenho é adaptada para longas temporadas secas em seu ambiente nativo e, durante este período, suas folhas se assemelham a galhos mortos. Que alívio, eu senti. O que me parecia morte era na verdade adaptação. Lendo um pouco mais descobri que para elas florirem, elas gastam muita energia e, por isso, precisam dormir por muito tempo depois de uma florada a fim de que um novo florescer venha a acontecer. 

Pensando sobre esse lindo processo, senti tamanha esperança que rapidinho vim escrever, como se tivesse medo de, no caminho, encontrar um rato como o da Clarice Lispector (1998) no texto Perdoando Deus, em que se sentindo nua e entregue à vida, dá de cara com um rato, também nu, mas escancaradamente morto. Pensei, então, algo que antes não havia adubo suficiente para formular. É engraçado, porque quando finalmente conseguimos pensar um pensamento,
ele parece já ser tão óbvio. Contudo, como Bion (1979) afirma, o óbvio às vezes não é observado. 

Percebi que a paciente daquela época, sábia e sensível senhora, não me deu essa orquídea por acaso. Ainda que nem ela soubesse, hoje, eu penso, que assim ela me dizia com muita delicadeza o que ela sentia em relação às visitas que aconteciam a cada mês. Pouco, não é? Mas parece que suficiente para a dupla que formamos. As visitas, embora espaçadas devido às particularidades dos atendimentos em atenção primária, traziam-lhe tamanha vida, o que lindamente mostrava por meio de poemas que escrevia nos períodos de seca (apenas de encontros presenciais e não mentais) e, que, juntas, tomando um cafezinho, para mim, ela declamava! 
 
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Agradecimento: Agradeço imensamente o Departamento Científico do IEP-RP pelo convite. Que alegria e prazer poder, por aqui, florescer junto a tantas pessoas que tenho como referência!
 
Referências:
 
ALMEIDA, R.R. E agora quem poderá nos defender? No divã da vida. Publicação eletrônia. Disponível em: https://www.revide.com.br/blog/roberta-rodrigues-de-almeida/e-agora-quem-podera-nos-defender/ Revide, 2020.
BION, W.R. Seminários Italianos. São Paulo: Blucher, 2017. 
BION. W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v13, n.4, 1979.
BUARQUE, C. Chapeuzinho Amarelo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
FREUD, S. Introdução ao Narcisismo. In: Freud, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
LISPECTOR. C. Perdoando Deus. In: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MÃE, V.H. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
MARQUES, M. Conversas boas sobre Bion. Ribeirão Preto, 2018.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. 51ed. Rio de Janeiro: Agir, 2015.
ZIMERMAN, D. E. A Função de “Continente” do Analista e os “Subcontinentes”. In: Bion: da teoria á prática -uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed, 2ª ed. 2008. 


Por: Roberta Rodrigues de Almeida, Psicóloga Clínica (CRP: 06/120562) formada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Especialista em Atenção Integral à Saúde pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP e Especialista em Psicologia Clínica pelo CFP. Atualmente, membro integrante e membro da Diretoria do IEP-RP, escritora do Blog No Divã da Vida da revista Revide, aprendiz de escritora de contos e poesias e co-criadora do Podcast Desculpa o Áudio Longo.