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Quadro Persistência da Memória. Salvador Dali (1931)

Estava mergulhada neste quadro, quando recebi o convite para escrever um trabalho para o IPÊ. Não tive dúvida quanto a aceitar o convite, pois o que me proponho a fazer aqui, já estava tomando alguma forma dentro de mim quando me deparei com a imagem. Já ecoava meu mundo interno alguns pensamentos sobre a mesma e aqui está minha tentativa de dar um contorno para a experiência que estamos vivendo. 

Em tempos tão sombrios, a arte se faz necessária. Penso que a proximidade com ela nos enriquece, nos tira do nosso lugar comum, nos faz sonhar. Em busca de sentidos às vivências atuais, ela nunca foi tão enriquecedora. Tenho buscado, tanto dentro como fora de mim, memórias, imagens, pensamentos e sentimentos que caminhassem ao meu lado nesse percurso tão nebuloso que atravessamos. Sim, uma companhia viva, companhia que ajuda no caminhar deste deserto, como na pintura acima.

Encontro nessa obra de arte, um acalento. Ou um desespero. Podem ser as duas coisas. Penso na temporalidade e a memória. O tempo nunca foi tão subjetivo para nós. Assim como na pintura, estamos em um deserto, um espaço sem vida, cores e plantas. O relógio, também esboçado no quadro, representando um tempo distorcido. E com isso, quantas dúvidas. Quanto tempo ficaremos longe das pessoas que amamos? O que sobrará deste tempo? Quanto tempo as crianças ficarão sem brincar com os amigos? E seus processos criativos, que também se dão, em pares? Ah, o tempo!  O tempo indefinido. Sim, perdemos a noção do tempo e dos dias. Quantas vezes nos pegamos sem saber qual o dia da semana? Para os que não estão desconectados da realidade, não é a mesma sensação de estarmos de férias. Falo de tempo distorcido, sem forma, que se esvai, tempo líquido.  Quais os sonhos possíveis?  O futuro existe, por força da expectativa de que as coisas ocorrerão, no presente. Assim, em consonância com as vivências atuais, como estabelecer planos futuros?

Neste percurso de acontecimentos, o tempo vai nos deixando memórias, nosso arsenal psíquico de lembranças continua em constante formação. As memórias nesse caminho tortuoso, sem vida e brilho, como um deserto no quadro. Os sonhos que acessamos, quais os pesadelos que temos. Memórias de dias difíceis, cheios de dores e ansiedades. Memórias de esforços para mantermos nossas mentes vivas. Criativas. Pensantes. Memórias de pessoas esgotadas, outras tantas, sem perspectivas. Mortes reais e subjetivas. Perdas de ícones, referências, afetos. Um tempo real distorcido que nos traz tantas perdas, mas também ganhos. Ganhos de novos encontros, dentro de nossas próprias realidades, aprendizados até então não acessíveis. Tantas memórias de dias aterrorizantes, mas também de dias criativos. 

Já nos dizia Winnicott (1999) que, para ser criativa, uma pessoa deve existir e possuir o sentimento de existir, é então algo que brota do ser. Isso indica que quem é, está vivo. Só podemos ser criativos se tivemos uma boa experiência com o outro (ABRAM, 2000). Observam-se muitas novidades com esse novo momento que estamos vivendo. Quantos movimentos criativos notamos em nossos dias, novos modos de trabalhos e de viver, até então, nunca imagináveis e possíveis. Novas brincadeiras com os filhos, novos modos de interação no campo de trabalho.

No fundo no quadro, há um esboço de esperança. Uma imensidão de água e céu, que também me faz pensar em um infinito. Infinitas possibilidades. De reconstruções, necessárias, de caminhos possíveis.

Diante de tantas perdas nesse novo tempo, distorcido, memórias difíceis que não poupam em emergir e esforços para nos mantermos saudáveis, há um universo infinito, como o encontro do mar e do céu. Em contato com o mar, por onde você olha, sempre tem céu e mar, esse encontro nunca acaba. O que vem da imensidão deste encontro? Eu não sei, acredito que nem você. Trago muitas dúvidas, mas algum ponto para pensar e sentir algumas coisas. Penso em caminhos, bons, ruins, novos, também encontros e possibilidades. Que este ponto de criação possa ser um início para vocês também, leitores. Que a partir dele, vocês possam criar. Coisas, pensamentos, ideias, e sentimentos. Sigamos. Acompanhando e sendo acompanhados pelo tempo e por nossas memórias! As de hoje e as que virão, juntas, nessa imensidão. 

Trago para finalizar este trabalho, um trecho de Winnicott (1999, p. 28) que me inspira “No viver criativo, tanto você como eu descobrimos que tudo aquilo que fazemos fortalece o sentimento de que estamos vivos, de que somos nós mesmos.”
 
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Agradeço a Diretoria de Ensino pela oportunidade e acolhimento. Agradeço a toda família IEP que me acompanha e me oferece a oportunidade de tanto desenvolvimento, vínculos, e trocas. Minha eterna gratidão!

Referências:

ABRAM, J. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
WINNICOTT, D. W. Vivendo de modo criativo. In: Tudo começa em casa.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.