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Morte e Vida (Gustav Klimt)

Foi com muita alegria que recebi o convite para participar deste novo espaço, o IPÊ. Impossível não lembrar o motivo pelo qual fora criado, graças à criatividade do departamento de eventos científicos, devido à suspensão de todos os eventos presenciais enquanto durar a pandemia da COVID-19. Esse convite foi um grande estímulo para pensar de forma um pouco mais organizada, diante de tanta novidade que as orientações de restrição nos causaram. Fique em casa – quantos desdobramentos vieram a partir destas três palavras! Para nós, os “trabalhadores psis”, citando Di Loreto (2004), ficar em casa equivale a não ir ao consultório, não ter os encontros com os pacientes, muitos deles já há anos, outros, recém-chegados. Seja qual for a situação, esse foi o primeiro susto que suscita questão desde sempre pensada e discutida, que é sobre quando é possível interromper um processo de psicoterapia baseada na abordagem psicanalítica ou o processo de análise em si. Enfim, constata-se que não há fase para ser considerada tranquila para interromper um processo psicanalítico. Vamos, então, aceitar e experimentar o que, até então, era pouco utilizado pela maioria dos psicólogos, o atendimento online, já que quão precioso é estar junto, pessoalmente, como o método mais conhecido para o encontro além do físico, o encontro psíquico para o desenvolvimento do nosso trabalho. Flexíveis, aprendizes, em constante construção como é a nossa formação, disponibilizando nossas mentes e reorganizar o setting para as experiências neste espaço virtual. 

Algo de fora nos fez reagir assim, uma pandemia, que afetou de maneira importante, dentre vários, dois conceitos: espaço e tempo. Kaës (2012) trouxe uma compreensão de que o mal estar surge a partir de transtornos de nossa relação com tempo e espaço e que esses são transformados sob efeito da ação humana. O conceito de espaço entendido como acessibilidade quase universal dos territórios além do planeta, aceleração das velocidades de deslocamento, as realocações econômicas, a virtualização do espaço da internet, a extensão do espaço conhecível, o espaço hiperurbano, a diversidade dos meios de transporte e os equipamentos transformaram radicalmente nossa geometria mental, nossas marcas de identificação, o sentimento da nossa identidade. O espaço psíquico também se transformou, na difração de vários espaços, o espaço psíquico íntimo, virtual, espaço dos vínculos e dos grupos, entre outros. O tempo – a velocidade acompanhou todas as modernidades. A hipermodernidade é o tempo do excesso de velocidade e essa velocidade alterou nossa concepção de tempo e nossas temporalidades psíquicas, sociais e culturais. Acrescenta dizendo que, em todas as sociedades e culturas, momentos de sincronização são necessários para a continuidade da vida psíquica, ajustes nos vínculos intersubjetivos e para a coesão social. As religiões e as festas, a escola e a família, eventos laicos ou religiosos são os momentos de sincronização. Eles exigem um imediatismo que reforça a necessidade imperiosa de estar no presente, e não no passado, sem memória, ou no futuro, sem projeto. A ruptura da normalidade que estamos vivendo pode ser compreendida como um momento de sincronização, pensada como um ajuste do “corpo social”, devido à mudança de ritmo do cotidiano que foi imposta. Por outra perspectiva, pela necessidade imperiosa de estar no presente, podemos compreender, também, assim como acontece nas sessões de análise, nos encontros psíquicos, a sessão sendo essa possibilidade de sincronização do sujeito ao próprio psiquismo, tanto para o paciente quanto a importância do analista estar sincronizado consigo mesmo para poder estar com o outro no seu máximo de inteireza possível. 

Essa pandemia nos colocou em uma batalha, uma guerra contra um vírus que podemos acompanhar diariamente através de números, os que sobreviveram, conseguiram se recuperar e os que não conseguiram, infelizmente, resistir. Quanta angústia causa a todos serem lembrados a todo instante da existência da morte. Morte essa real, concreta, do corpo. No entanto, essa batalha é travada também dentro de cada um, de maneira permanente. Lembremos de Freud, em seu artigo de 1911, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, com a complementariedade dos princípios de prazer e de realidade, trabalho no qual insere a ideia de que existe o conflito fundamental entre os instintos de vida e de morte habitando nos psiquismos dos sujeitos. Lidamos com os sentimentos para os quais também não existem vacinas e que só conhecemos os estragos quando dentro da experiência, de maneira única para cada ser. Como também é esse vírus, desde assintomático para alguns, mas mortal para outros. Devemos levar em consideração qual corpo é esse que fora infectado, assim como considerar qual é o funcionamento desta mente que também é parte constituinte deste todo quando em contato com as experiências.  Como essa experiência concreta, esse duelo entre a vida e a morte, repercute em cada um nesses movimentos mentais? Lembro Bion (1957), em Sobre arrogância, com a “hipótese de que, na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogância”. 

Muito tem sido falado sobre imunidade. Imunidade do corpo. E da mente? Já vimos ser impossível, já que não existe maneira de se preparar para algo antes de ser vivido. Kaës (2012), contribuiu com o conceito de plasticidade do aparelho psíquico, definido como sendo a propriedade do conteúdo psíquico, de seus processos e suas formações, de se transformar diante do contato de imperativos internos e externos. A plasticidade diz respeito também à flexibilidade das organizações pulsionais que as  realizações de desejo, os conteúdos e as formas de pensamento a vincula com os outros processos mentais. Ela é um processo vital, que se opõe à rigidez, à fixação e aos automatismos, vistos como manifestações das pulsões de morte. A qualidade plástica do psiquismo é particularmente solicitada nas situações de perigo, de ameaça, cada vez que a capacidade de recompor os dispositivos e as formas são exigidos para superar essas situações. Esta qualidade permitiu à espécie humana de se desenvolver, superando as crises que ameaçam sua sobrevivência, assim como ela também tornou possível que cada sujeito, em seu crescimento, de não se fixar a um estado de inércia. 

As restrições estão interferindo em nossa percepção subjetiva de tempo e espaço. O tempo está limitado para o agora, sem possibilidades de planejamento, já que estamos lidando com um desconhecido. O espaço está restrito para o aqui, pois quanto menor a movimentação, melhor a contribuição para o todo. A realidade se mostra o oposto do que Kaës (2012) nos descreveu, exigindo plasticidade psíquica e criatividade, diante de uma realidade que amedronta e coloca a vida em risco. Situação também rica, que nos humaniza diante da igualdade, por meio da vulnerabilidade lembrada pelo surgimento de um vírus que não discrimina. 

As urgências emocionais com as quais nos deparamos também nos coloca na linha de frente, mesmo na aparente calmaria do consultório, recebendo em nossas mentes os conteúdos projetados e que nos impactam, impactos impossíveis de quantificar e mensurar, diante das constantes epidemias de depressão, ansiedade, obsessões, compulsões, automutilações, entre outras. 

Agradeço o co
nvite do departamento cientifico para participar deste espaço, criado a fim de podermos continuar estando juntos, sempre tão fundamental para nossas trocas, que nos alimentam e contribuem para o constante desenvolvimento da nossa capacidade de pensar.

                                   

Referências:
BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. – 3ª ed. Revisada – Rio de Janeiro: Imago, DI LORETO, O. Origem e modo de construção das moléstias da mente (psicopatogênese): a psicopatogênese que pode estar contida nas relações familiares. – São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2004.
1994.
FREUD, S. (1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XII, p. 237-244). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KAËS, R. Le malêtre. Malakoff: Dunod, 2012.


Por: Lívia Maria Saadi Ezinatto Dassie – Psicóloga Especialista Clínica (CFP)(CRP: 06/83329), membro titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP), membro efetivo da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família, docente da Pós-Graduação em Psicoterapia de Casal e Família de Orientação Psicanalítica da Universidade Paulista, campus Ribeirão Preto – SP.