Imagem

Fonte: João Tzanno (2018). The three wise monkeys. Disponível em: https://unsplash.com/photos/1NacmxqfPZA

Quando fui convidado a escrever para o projeto Ipê me senti bastante honrado e agradecido pelo convite, e logo comecei a pensar sobre o que poderia abordar. Depois de esfregar os neurônios uns nos outros para ver se saía alguma faísca, dei um tempo e fui realizar uma pesquisa de campo sobre interações humanas através de uma interface digital (termo erudito para “procrastinar na internet”) e me deparei com uma enxurrada de notícias sobre o COVID-19. Corri para dentro de minha casa mental e tentei fechar a porta, mas como em toda enchente, acabei me molhando e um pouco de água entrou pelas frestas da porta também.

Uma das coisas que vi nas notícias e que mais me gerou perplexidade na atual situação é a forma como tantas pessoas têm ignorado a gravidade do que vivemos, insistindo em participar de aglomerações, minimizando os danos causados pelo vírus e agindo como se nada estivesse acontecendo, com comportamentos que, em alguns casos, se aproximam muito do ato de tapar os ouvidos e gritar “lá-lá-lá-lá-lá” para não escutar os fatos.

E então surgiu a faísca: por que tanta gente insiste em ignorar a ameaça desta pandemia?

Fui procurar uma resposta possível para esta pergunta, e penso ter encontrado uma parte substancial dela no pensamento kleiniano.
Klein (1935) aponta que o funcionamento mental possui dois importantes pontos: a posição esquizoparanóide e a depressiva, sendo a primeira considerada mais primitiva. Quando nos deparamos com situações traumáticas, difíceis de serem processadas, desagradáveis, etc, não é incomum que nosso funcionamento mental se aproxime mais da posição esquizoparanóide e busque formas características desta posição de lidar com tais situações.

Dentre estas formas, gostaria de ressaltar duas que são abordadas por Klein: o sentimento de onipotência e a negação. A negação refuta a importância que os objetos bons têm para o sujeito, de forma que a perda destes é colocada como algo sem importância, colocando o sujeito em uma posição de superioridade a estes. Além disso, é feita a negação do perigo ao qual os objetos bons se encontram expostos frente aos objetos maus. Juntamente à negação, costuma-se encontrar o sentimento de superioridade que visa controlar e dominar os objetos.

Mas afinal, o que isso tem a ver com a pandemia?

Milhares de pessoas- seres humanos como eu e você- têm morrido em decorrência do contágio avassalador do COVID-19. Nossos modos de vida, rotinas e hábitos acabaram sendo despedaçados. Um abraço ou um beijo no rosto, cumprimentos tão comuns entre amigos (e no Brasil até mesmo entre estranhos) passaram de demonstrações de afeto a um risco para a vida da noite para o dia.
Tudo isso é ameaçador e desestruturante, e é aí que a onipotência e a negação entram em cena.

A negação e a onipotência buscam proteger nossos objetos internos e, consequentemente, uma parte importante de nossa existência, negando a importância, a gravidade e a dor de algo, como uma situação em que outros seres humanos- tão mortais quanto nós- têm perdido suas vidas aos milhares. Elas nos permitem que nos sintamos superiores ao que é negado, de forma que possamos sentir um maior controle da situação- e quem não gostaria de ter o controle sobre a pandemia?

Em outras palavras, nos coloca em posição de superioridade à coisa da qual estamos tentando nos proteger, ao mesmo tempo em que faz com que as perdas que viemos tendo- vidas, hábitos, rotinas e etc- sejam sentidos como menos importantes do que são. Ambos os fatores se somam, e o resultado é o que vemos: ações que têm colocado a vida das pessoas em risco, tanto as que negam quanto as que não negam, observáveis nas ruas e nas notícias: pessoas participando de aglomerações, festas e eventos públicos, a subestimação dos cuidados de higiene para a prevenção da doença, a crença de que o vírus é uma farsa (criada por outro país, pelos Iluminatti, pelos marcianos, etc) para enfraquecer a economia, e por aí vai.

Guardadas as devidas proporções, as defesas possuem uma importância para o funcionamento mental, porém suas formas mais extremas e rígidas, como parece ser o caso da negação neste momento, fazem com que ignorar o que está acontecendo seja perigoso. Portanto faz-se necessário o trabalho mental para lidarmos com os fatos e com a fragilidade da condição de ser humano, bem como para encontrarmos os recursos internos (e mesmo externos) para enfrentarmos os desafios que nos esperam e, dessa forma, encontrar um modo mais saudável de lidar com a vida e a verdade.

Referência:

KLEIN, M. (1935). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M. Amor, culpa e reparação. Imago: Rio de Janeiro, 1996, p. 301-329 (cap. 17)


Por: ​Luís Gustavo Faria Aguiar, psicólogo, formado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Pós-Graduado em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP). Atua na área clínica, oferecendo psicoterapia psicanalítica presencial para crianças, adolescentes e adultos, bem como psicoterapia online para adolescentes e adultos, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. É Diretor suplente do departamento científico e membro integrante do IEP-RP.