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Imagem: mapa medieval, com monstros marinhos. (Crédito: National Library of Sweden, shelfmark KoB 1 ab)

Como parte do Projeto IPÊ, agradeço o convite para escrever sobre os desafios deste momento de mudança de setting no atendimento clínico. Podemos dizer que começar um atendimento online foi nossa “primeira onda” de contágio, guardadas as proporções, em um trocadilho com o complicado momento que vivemos. Mas agora, a novidade cedeu espaço, a euforia inicial também (sim, ela existiu frente às novas possibilidades de trabalho), o prazo para passar não se confirmou e o que era uma possibilidade provisória tem se tornado mais permanente. Manter o atendimento e conectar-se ao que é psicanalítico tem se transformado, assim, na nossa “segunda onda” de desafio. Como é que se faz agora?
 
Em alguns casos, isso se mantém ali, quase inabalável. Os afetos, os sonhos e a via de acesso ao psíquico permanecem fortes e emocionantes, como sabemos que acontece quando há um encontro psíquico. É quase comovente ver a potência de uma relação se manter assim. E também é surpreendente ver relações novas nascendo diretamente online. Encontros reais.
Tudo isso tão parecido com a psicanálise, que continua sempre obstinada, apoiada na convicção de que haverá uma alternativa, com base no conceito já bem estabelecido de que temos um aparelho para pensar (Bion,1967) que é capaz de ser ativado e profícuo, tanto em situações aparentemente triviais, como de instabilidade e crise. 

E meu ponto de interesse está justamente aí. Se há muito relato de êxito, até no anteriormente impensável atendimento online de crianças, por outro lado, há também sinais de ruptura, bloqueio e o risco de descontinuidade. Se aproximar do que é psíquico é quase como buscar por um mundo. E, portanto, uma via de acesso precisa ser construída – e mantida – buscando essa área constituída de “espaço e tempo”, que faz com que cada um de nós seja peculiar e único.
 
Isso porque, em tempos de pandemia, em que o mundo “de fora” para, em que o contato com externo diminui muitíssimo, algumas pessoas sentem que não há nada para dizer, pois não há nada acontecendo em suas vidas. Estrada interrompida. Outras pessoas se dão conta de que há um turbilhão de coisas, mas também não podem acessar o tormento, porque ele atrapalha a capacidade de pensar. Acesso negado. E, dessa maneira, só podem lamentar ou se desesperar. Mais pontes caindo.
 
Considero que este tem sido o desafio mais marcante do atendimento online. Nossa tarefa, de “criação da realidade psíquica” e curiosidade sobre o que é construído a partir  do registro dos fatos (Ogden, 2017, p.125) ficou ainda mais evidente. Sempre estivemos nessa função, mas o mapa, em alguns casos, agora, parece ter sido danificado, abandonado ou rasgado, impedindo o acesso, dificultando o contato.

Em nossos encontros com colegas, supervisões e em nossa própria análise, estamos em busca, então, de uma nova cartografia. Por onde já navegaram? Como enfrentaram os monstros marinhos? Uma espécie de “faísca de entusiasmo” para continuar em busca do que sempre nos foi tão fascinante e valioso. Ao mesmo tempo, sabemos que cada um passará a pavimentar a própria pista e a desbravar uma área nova. Somos, portanto, pioneiros, precursores.

Dito de outra forma, queremos saber como acessar esse lugar em que mora o invisível, o subjetivo, o que não se sabe nem se conhece, a matéria prima do nosso trabalho.  Estamos em busca do outro. Mas precisamos de nossa própria originalidade para seguir. Tarefa enorme, prejudicada pelo risco a que ficamos também expostos, de perder o contato com o próprio simbolismo e subjetividade, diante desta ruptura, que certamente é coletiva. Enfim, que rumo as coisas que estamos vivendo tomam dentro de nós? A intimidade com nossa própria mente é essencial para reconstruir caminhos e ousar desenhar novos mapas.  Ganho alívio e confiança na psicanálise ao perceber que as imagens não param de ser formadas, buscando dar algum tipo de significado a cada uma das tantas novas loucuras em nossos dias.

E então precisamos sentar, fechar os olhos e diminuir a luz, permitindo que o aparelho para pensar os pensamentos seja ativado primeiro em nós, como as máscaras de emergências nos voos. Que a gente tenha segurança, tranquilidade e competência para respirar e, em seguida, oferecer segurança e oxigênio para quem estiver ao nosso lado na turbulência. Ou na frente da nossa tela. 
E que seja imperativo se revigorar com o movimento, mantendo o entusiasmo de transitar em terrenos instáveis, procurando frestas e construindo elos.  Não vejo outro caminho, além da persistência e criatividade. Mistura de trabalho e jogo. Combinação necessária pra que algo novo aconteça e (re)aproxime o inconsciente de um ao inconsciente do outro, encontro mais bonito que pode haver. É esse o mapa de sempre. E já sabemos, continua sendo válido por um único encontro, mais do que nunca.

Referências: 

OGDEN, T. H. A matriz da mente: relações objetais e o diálogo psicanalítico. Blucher, SP, 2017. 
BION, WR. Estudos psicanalíticos revisados. Imago, RJ, 1967.


Por: Simone Hurtado Bianchi Sanches – Membro filiado da SBPRP. Membro titular do IEP. Mestre em Psicologia (FFCLRP-USP). Doutora em Saúde Mental (FMRP –USP).