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Fotografia: Images d’autrefois – Evgen Bavčar

* Fotografia da janela de sua casa de infância iluminada por um facho de luz. Fotógrafo cego, utiliza-se do contraste luz-escuridão para criar seu próprio registro a partir do olhar e das palavras narradas pelo outro, os quais une ao seu acervo pessoal, a sua memória. Acredita que o mais importante é o que pode imaginar, o que se passa, pois, em sua casa interior – a casa como uma condição interna – de cujo encontro com o outro emerge a sua arte. Na fotografia, iluminadas, aparecem as invariantes de uma casa, demonstrando, pela experiência, que aquilo que se pode enxergar está além do que se pode ver com os olhos.
A pessoa pode ir para a África, pode ir para a China, mas não precisa sair da sua casa.
A casa de uma pessoa é a mente dela. Somos como o caramujo, a tartaruga;
para onde vamos levamos o nosso mundo mental – estamos sempre dentro da nossa casa interna.
A não ser que a pessoa sinta que não tem uma casa interna. Aí, é claro vai ter pânico.
Porque se não tem uma casa interna, vai precisar de alguém que a acolha. (KIRSCHBAUM, 2017, p. 125).
Inaugurar um espaço é das tarefas impossíveis, daquelas da maior responsabilidade, de cuja empreitada, em meio a turbulentas situações e emoções, fui encarregada por meio de um convite. Que significados tal exploração abriga? Que abertura encerra, guarda, contém em si? Permanecem em aberto, ao menos por enquanto. Mas necessitava de um princípio. 

Refugiando-me em algo conhecido, recorri à experiência de ter internalizado, vivendo a Psicanálise, que seu ofício e fazer são impraticáveis enquanto um evento meramente exterior a mim, diante do qual me colocaria como mera espectadora, passiva, imparcial, impermeável e imperturbável. Assim, a partir de um chamado aparentemente inofensivo, mas intensamente instigante e provocador, assumi tal expedição desde a perspectiva de dentro, observando as reverberações e ressonâncias em mim.

Primeiro que a proposta nasceu “em tempos de guerra”: uma situação de pandemia em âmbito mundial por disseminação do coronavírus (SARS-CoV-2), para a qual, dadas sua amplitude, velocidade e conjuntura, não temos registro vivencial já conhecido ou familiar, permanecendo como algo estranho. Aliás, que palavra poderia apropriadamente nomear a experiência que vivemos?

Apelei, então, à figura paterna, justificável quando o medo e a angústia nos assolam, deixando exposta a nossa parte infantil, primitiva e desamparada a que o novo, o desconhecido e o ameaçador nos lançam. Disse Freud (2010, p. 171-174) a respeito do impacto da guerra e de nossa atitude diante da morte: “[…] nos sentimos estrangeiros neste mundo outrora belo e familiar [experimentando] o desnorteio e a paralisia da capacidade, dos quais sofremos […].”.

Estaria eu lendo Freud ou ele, arguto que era, estaria lendo a mim? Escrito ainda em 1915, mas que poderia, muito bem, ilustrar nosso momento atual, sem dúvida, um período de guerra. Afinal, quem, neste momento, poderia negar a experiência emocional de se sentir bombardeado, em um campo minado, refletindo sobremaneira em nossa capacidade de pensar? Diante de algo desconhecido, que nem pode ser visto, mas cujos efeitos podem ser dolorosamente reconhecidos, buscamos, sob a égide da realidade, adentrar o obscuro, à espera de que algo possa emergir, desenvolvendo e fazendo nascer recursos mentais potentes ao seu enfrentamento.  

Da mesma forma, o contato com o convite também não me foi sem impacto, sem que se deflagrasse uma guerra interna – aceitar ou não, impunha-me a questão, eis a minha declarada inconfidência. Aliás, qual encontro, seja com o outro ou conosco, é inócuo? 

Lembrei-me de Bion (1987) que discute a perturbação decorrente da experiência do encontro, gerando turbulência emocional. Refleti: logo eu que, portadora dos convites ao outro, sempre contei com a generosidade e hospitalidade de meus pares, a quem sou especialmente grata, com seus consentimentos a inusitadas e desconhecidas ideias – teriam sido elas perturbadoras também? Em busca de algo sob o qual pudesse me abrigar, acrescentei: dizer sim ao que chega, ao novo, ao convite não seria algo conhecido, vivenciado inclusive ao se receber um paciente, por exemplo? E, mais ainda, uma forma insuspeitada de nos darmos as mãos? Aceitei, pois, a mão estendida, ainda que à distância, assim, ninguém soltaria a mão de ninguém.    

Tão logo restabelecido o apaziguamento inicial, senti-me atingida por outra lufada do insondável desconhecido: vou escrever sobre o quê? Por mais que forçasse, nenhuma resposta decisiva e final surgia – não teria sido melhor ter declinado da “convocação”? Afinal, não se tratava de um alistamento… De novo no escuro, sozinha em minha casa-mente – aliás, teria eu casa-mente própria? Lembrei-me da companhia viva de Clarice: “Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que eu não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. […] me fechavam o mundo.” (LISPECTOR, 2014, p. 15).

Sentindo-me como se à deriva, enfim me rendi às contrações naturais próprias de um parto que, ainda que dolorosas, indicam um processo vital em movimento, deixando-me ser habitada pelo desconhecido. Foi quando, sob o intenso impacto do encontro com um convite inesperado e, portanto, com o outro, em meio a incertezas, medos e inseguranças que desapercebidamente uma ideia começou a tomar forma, insurgindo em minha mente, filha legítima da experiência emocional, quem contestaria? Florescia aí uma capacidade negativa sobre a qual falaria o Dr. Arnaldo Chuster não fosse essa mesma pandemia? Uma forma poética me ocorreu, lembrando-me de Nietzsche (2008, p. 83): “[…] é preciso ter ainda o caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante.”. Mergulhei, não sem medo de submergir. Estaria sob os efeitos de um processo interno desencadeado por algo a que Bion (1981) nomeara e tratara em seu texto sobre a cesura? 

Bion (1981) retomou a ideia de Freud sobre a cesura do nascimento e a continuidade entre a vida pré e pós-uterina. Em uma linguagem poética, ocorreu-me uma imagem mental equivalente ao narrado por Mia Couto (2013, p. 35): 

Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez. […] Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?

Mantendo-se a ideia da ce
sura do nascimento na mente, pode-se, como um modelo, iluminar os sentidos em diferentes outras situações da vida que remeteriam a rupturas e crises, quando uma pessoa seria desafiada a transitar entre e penetrar diferentes estados mentais, diante, por exemplo, “[…] de algum aparentemente desastroso estado de coisas […].” (BION, 1981, 130). Estaríamos, assim, frente a um ponto de mudança e desenvolvimento, do qual se poderia tirar “bom proveito”, ou então de parada e colapso. O que se conhece e o desconhecido fariam, pois, fronteira, cujo contato implicaria entrada em uma zona franca de turbulentos conflitos, necessitando-se, diante de uma mesma situação, de um esforço para se transpor a passagem de uma condição mental para outra.

A mente, por mais que impossibilitada de alterar o externo, pode, por seu turno, deixar-se penetrar pelo reconhecidamente perturbador a partir do qual pode resultar uma gestação do novo. Para Bion (1981, p. 135), comportar o que não se sabe “[…] tem que servir ao humano naqueles momentos críticos em que o conhecimento não está lá para ser usado.”. Períodos de mudança implicariam impermanência e ideias em trânsito, em busca de desenvolvimento mental e, quem sabe, de um pensador, demandando o enfrentamento de uma desorganização psíquica a qual uma mudança, catastrófica por definição, estaria sujeita. Assim, todo um trabalho de parto, embora extremamente necessário, seria ainda insuficiente; diante da cesura, fissura, fenda, fresta, abertura, é preciso também se fazer nascer, e é desse tipo de processo que a dor mental é fruto. Trata-se não de um nascimento biológico, mas psicológico, considerando que não apenas nasce uma mente, mas também funções antes inexistentes, permitindo mobilidade psíquica.

Ainda que, diante do atual contexto pandêmico que vivemos, “ficar em casa”, portanto, sem transitar geograficamente, seja a tônica, há que se considerar que pode não ser possível seguir o imperativo “fique” no caso de não se ter onde morar e, mais especificamente, quando não se tem abrigo mental – vértice o qual foi elegido para esta reflexão, como explorado por Kirschbaum (2017) na citação da epígrafe. Sob pressões internas, o espaço mental pode ser invadido por terrores sem nome  – uma catástrofe? -, que romperiam barreiras tamanha a intensidade da angústia “sem-teto”, cuja possibilidade de abrigo só poderia vir pela hospitalidade de uma casa alheia. É pelo encontro entre mentes que se pode ofertar e encontrar refúgio, uma área de sobrevivência partilhada, de mobilidade mental, a partir do que se pode identificar o material necessário para a construção da fundação de uma casa interna. Em se construindo o seu alicerce, constitui-se também a sustentação necessária, um aspecto estrutural e essencial de si e, por isso mesmo, fundante, sem o que não se é possível erguer-se. O difícil trabalho de parto não ocorre sem o reconhecimento da parentalidade, dependente, pois, de um encontro gerativo, criativo e turbulento. Através de uma experiência emocional compartilhada propiciada pelo encontro mental, ao trabalhar as e nas fendas e feridas abertas, pode-se acolher e abrigar, constituindo-se um refúgio-lar psíquico, uma casa-mente passível de ser habitada. 

A frase “A criatividade é filha da tristeza”, atribuída à Pablo Picasso, a cuja parentalidade alguns autores acrescentam sabiamente a dor, aludiria, então, à potência daquilo que pode nascer a partir da ruptura e do sofrimento. Assim como, em meio à pandemia, ao desconhecido, ao espanto, ao medo, à angústia pôde, então, nascer, florescer e fundar um IPÊ, do qual a proposta aceita é fruto. Em um lampejo criativo, uma nova identidade foi vislumbrada, entre sombras e formas, no emaranhar e entrelaçar das letras do nome de um grupo sempre solidário e muito criativo: IEP. Inaugurar, pois, é parir, à luz dar, iluminar, originar, o que tem a ver com uma função materna de gerar um espaço – mental – continente. A fenda, assim, funda, como verbo, inaugurando uma casa interna.

Em tempos de incertezas, é, pois, subversivo ousar imaginar, sonhar e pensar em meio a um estado de guerra – a cujo ponto a mente pode ou não se ancorar. Seria esta a característica do “imprudentemente poético” que o escritor Valter Hugo MÃE tão sensivelmente descreveu ao narrar a lenda de que um homem, do fundo de um poço, “[…] apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho.” (MÃE, 2016, p. 141), abrigando-se? Afinal, até o medo se mostrou uma companhia viva capaz de conter, abraçar a dor, a angústia, a ameaça e o desconhecido. Um “facho de intensa escuridão” é, muitas vezes, o que se precisa para que “[…] algo que até então tenha estado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa brilhar ainda mais na escuridão.” (GROTSTEIN, 2007, p. 15). E, em meio à penumbra, poder, então, ver. Sustentar a perturbação e a turbulência geradas a partir do impacto da experiência de encontro – seja com o convite, com a pandemia ou com o outro -, sem dela nos evadirmos, a partir de um olhar para dentro e com atitude de disponibilidade para o que vem, também pode ser um jeito de atravessá-las, levando-nos, insuspeitadamente, além. 

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Agradecida ao Departamento Científico (IEP-RP) que, ao me convidarem, confiando em mim e também a mim a abertura deste novo projeto, ofertaram-me, em um jogo de luz e sombra, companhia e abrigo em meio à escuridão desses dias, permanecendo em aberto, por um princípio genuíno de indecibilidade, o que ou quem nasceu nesse processo.
 

Referências
 
BION, W. R. Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 123-136, 1981.
BION, W. R. Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 21, n. 1, 121-123, 1987.
COUTO, M. A menina sem palavras. Histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013.
FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e morte (1915). In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas Volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GROTSTEIN, J. S. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Artmed. 2007.
KIRSCHBAUM, I. Breve introdução a algumas ideias de Bion. São Paulo: Blucher, 2017.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H.. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MÃE, V. H. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca azul, 2016.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.


Por: Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP – CRP 06/90086, Mestre em Ciências – Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto – IEPRP.