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Texto IPÊ 25: O tecer de rendas na senzala: o uso da experiência emocional no atendimento institucional

3/13/2021

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Escravos recém-libertados. Referência: Arquivo do projeto Monumenta

​“E o céu se abre de manhã
Me abrigo em colo, em chão
Todo homem precisa de uma mãe (...)”

Zeca Veloso (2018). Álbum: Ofertório


O Brasil enfrenta altos índices de criminalidade e violência entre adolescentes (UNICEF, 2019). Pensando neste contexto, considero que as experiências emocionais que configuram a forma de cada indivíduo desenvolver seu aparelho para pensar, sentir e formar vínculos (BION, 1991) se mostram intrínsecas às ações que provocam no meio em que vivem.

Pensando nas condições primevas e tardias que os bebês, em pobreza, nascem e crescem, utilizei-me da experiência vivida em atendimento institucional a adolescentes em conflito com a lei, para analisar brevemente o conceito de experiência emocional tanto como norteadora de suas ações, quanto como ferramenta técnica útil no atendimento psicanalítico. Os adolescentes custodiados na referida instituição, em sua grande maioria, eram membros de famílias numerosas, que viviam em situação de pobreza. Casos socialmente mais graves incluíam experiências de pobreza extrema, que vinham dramaticamente imbricados em situações de violências psíquica e física, além de abandono, os quais em casos específicos, passavam pelo abandono concreto, como de um deles que, quando bebê, foi deixado em lata de lixo.

Nesta instituição, os atendimentos se davam em condições ambientais pouco favoráveis ao estabelecimento do setting tradicional, porém, eu percebia que, em alguns deles, a relação analítica podia ser estabelecida. Analisando, de maneira geral, foi possível notar que a experiência emocional de alguns adolescentes, nos primórdios da vida intrauterina, permeada por uma existência nem desejada e nem acolhida, de alguma forma, possa ter inviabilizado a condição da construção de um aparelho adequado para pensar pensamentos, pela falta de criação de vínculos, e de experiência afetiva satisfatória e prazerosa.

Em tais situações, parece ter ficado registrado na memória afetiva a percepção de uma necessidade corporal/psíquica não satisfeita. Sob o olhar das contribuições de Melanie Klein (2006a), não sentindo o seio bom, o indivíduo sente a insatisfação como seio mau, passando a necessitar de realizar evacuações desse último. Sob o domínio do seio mau, o recebimento de leite, quando houver, pode ser sido sentido como algo indiscriminável da evacuação do seio mau (BION, 1991). Entretanto, para o autor, o início da condição para pensar se dá porque, em algum momento, a ausência de sensações prazerosas e satisfatórias são sentidas como a ausência de um seio desejado, e não como um seio mau presente. Assim, o seio mau (desejado, porém ausente) é mais passível de se tornar uma ideia, do que o seio bom, que é associado com a coisa em si (o leite de fato), que não é um pensamento (BION, 1991). 

Sob tal vértice, parece possível refletir sobre as dificuldades que quem vive situações de privações iniciais, como os adolescentes, aqui enfocados, que viveram as experiências primevas de abandono e violência, encontram para poderem se manter conscientes, sensíveis, pensantes diante da dor do outro. Era comum que tais adolescentes passassem a infância e a adolescência realizando ataques a vínculos e tendo pouco acesso às percepções dos danos que causavam nos outros e no ambiente.

Com a experiência de pouca satisfação corporal e psíquica, a falha nos processos de estruturação do aparelho para pensar e formar pensamentos pareceu se mostrar ainda mais precoce, sendo anterior aos processos de sentir a presença concreta do seio bom, estando, assim, muito aquém de poder experienciar a ausência do seio mau como desejado, porém ausente. O que viabilizaria a construção do aparelho para pensar, caso ocorresse.

Em contrapartida, quando, em atendimento, a experiência emocional podia ser considerada, vivida na dupla comigo, e comunicada a eles novamente, os adolescentes passavam, em algumas vezes, a se sentirem respeitados, podendo existir, se constituindo como algo além de um objeto que deveria ser descartado no lixo, por exemplo. 

A abertura da analista para o receptáculo das identificações projetivas e emanação de comunicações inconscientes da experiência emocional do analisando, em algumas ocasiões, tornava possível alguma transformação na sua condição em se vincular. Tal observação era possível quando, por exemplo, algum adolescente iniciava o processo de atendimento psicológico buscando intimidar a mim, sendo truculento, mas despertando nela sentimentos de maternagem, e não de medo. Suas falas e manifestação corporais diziam algo, e suas emanações inconscientes, diziam outra. 

As experiências iniciais de abandono e violência pareciam clamar que eles reagissem com brutalidade a qualquer aproximação, porém, além disso, comunicavam sua fragilidade e, num esforço grande para me manter fiel à experiência emocional do atendimento, me via munida de ferramentas para trabalhar com eles o que se dava no aqui e agora da relação. 

Como que numa via de mãos múltiplas, o material que alguns adolescentes traziam como registro de sua existência, através da transferência, viabilizava que a minha rèverie pudesse acontecer, proporcionada também pela busca esperançosa de alguns deles, em encontrar sentido, simbolismo e refinamento, quase que químico para o bruto das emoções que viviam.  

As identificações projetivas também comunicavam tentativas de controle, através da coerção e ameaça de perigo físico. Penso que neste contexto, a psicanálise se mostrou valiosa ferramenta de compreensão e atuação, pois permitiu a percepção da necessidade de inverter a direção do medo que o próprio adolescente atendido poderia estar sentindo, além dos seus ódios de origem invejosa, característicos da relação onde se estabelece a percepção de dependência afetiva (Klein, 2006b). 

 A cesura, vivida na transferência, parecia em alguns momentos, permitir o aparecimento do novo (CHUSTER, 2003), pois os adolescentes se mostravam acostumados a serem tratados com desprezo e, repetidamente, se colocavam em situações que perpetuassem tal condição. A experiência emocional do atendimento psicológico lhes surpreendia: ao invés de serem novamente jogados no lixo, eram acolhidos, tendo algum esforço que fosse, de seu interlocutor, para a elaboração de seus elementos impensáveis.

A experiência emocional vivida pela dupla, contendo a experiência emocional registrada na história das relações do analisando, gera o novo, terceiro elemento, capaz de alterar experiências. Tendo tal experiência sendo processada pela analista, o analisando pode, quando da formação de vínculos, aprender com a experiência (BION, 1991). 

Em algumas situações, parecia que com os adolescentes isso também era possível de acontecer, pois essa nova configuração de relação lhes parecia ser a abertura para que eles pudessem falar de suas verdades. Quando eu lhes podia falar a verdade do que captava nas entrelinhas de suas comunicações, uma rua para a suas verdades se abria também. Com o decorrer de atendimentos, observava-se alguns adolescentes capazes de formar vínculos, menos defensivos, colocando suas percepções sobre algo e até construindo hipóteses sobre seus mundos internos.

A verdade que pode ser dita e vivida na relação analítica, inexoravelmente passa pela dor. A ampliação da capacidade para sentir a dor pode, por sua vez, ampliar o acesso às realidades externas e internas, pois somente com alguma tolerância à frustração é possível lidar com as ameaças do real (BION, 2004). Cabe ao analista manter a atenção às dores que são advindas das experiências do paciente, às dores vividas na relação e às dores advindas do processo de desenvolvimento, causado pela própria análise.

Vale ressaltar que, em outras situações, muitos entraves se estabeleciam para que fosse possível que a experiência emocional fosse utilizada como ferramenta de transformação, como o caso dos atendimentos a personalidades psicopáticas, ou em momentos em que minha disponibilidade afetiva também se mostrava limitada. 

Tal como tecer rendas delicadas em ambiente rústico e desvalido como uma senzala, a técnica psicanalítica se mostrou valiosa no atendimento a pessoas com experiências psíquicas e corporais tão perturbadoras, realidade de muitos no Brasil.
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*este trabalho foi originalmente publicado no Livro Virtual do Congresso FEPAL Montevidéo 2020, sofrendo aqui, pequenas adaptações para o formato do IPÊ. 


​
REFERÊNCIAS
BION, W. R. (1991). O aprender com a experiência (P. D. Correa, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)  
BION, W. R. (2004). Elementos de Psicanálise (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em 1963)
CHUSTER, A. (2003). Transferência ou cesura. Em: CHUSTER, A. et al. W. R. Bion, novas leituras: a psicanálise, dos princípios ético-estéticos à clínica, v. II. p. 137-150. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
KLEIN, M. (2006a). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides . Em: Obras completas de Melanie Klein”. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1946)    
KLEIN, M. (2006b) Inveja e gratidão. Em: Obras completas de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1957)
UNICEF (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil / Fundo das Nações Unidas para a Infância; [coordenação editorial Elisa Meirelles Reis...[et al.]]. São Paulo: UNICEF.Recuperado de: https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/201911/br_30anos_cdc_relatorio.pdf

Por: Marina Delduca Cilino é psicóloga (CRP 06/88908), Mestre em Psicologia (FFCLRP-USP), Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas (IEP-RP). 
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Texto IPÊ 24: Psicanálise e Educação das crianças pequenas em tempos de Pandemia

1/30/2021

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Os despejados (Cândido Portinari, 1934)
Como psicóloga escolar, tenho a oportunidade de vivenciar os impactos da Pandemia na Educação e contribuir com o olhar psicanalítico no enfrentamento dos novos desafios.

Presenciei a chegada das crianças no início do ano letivo, algumas de 3 e 4 anos, vindas pela primeira vez, com olhinhos brilhando de excitação, hora de choro, muito natural nesta idade, pois crescer pode ser assustador! Outras maiores, 5 e 6 anos, mas, não menos ansiosas e cheias de receios e expectativas: como é a escola? Como será a professora? E se eu não aprender? E os amigos... Vou conseguir fazer amigos? Vão gostar de mim? Conseguirei me separar de meus pais? E se eles me esquecerem na escola? As fantasias inundam suas cabecinhas e emoções - o mundo interno influencia a percepção do mundo externo e vice versa. Algumas, realmente amedrontadas e inseguras, porém todas vivendo intensamente a passagem de casa para a escola – cheias de curiosidades, sonhos, desejos e expectativas. Suas famílias, carentes do apoio da escola para educar bem os seus filhos, porém, algumas desconfiadas e inseguras se realmente é hora da separação.

Por outro lado, professores e demais membros da equipe escolar - considero todos educadores - preparados e esperançosos por um bom início do ano letivo! E em meio a este “período de adaptação” veio a Pandemia! E todas as crianças regressaram para suas casas, sem qualquer possibilidade de contato presencial entre os pares e com os professores. Se a falta de contato físico impacta todos nós, imaginem as crianças!

Winnicott (1936) estudou profundamente as necessidades das crianças pequenas e, em suas palestras, advertia professores e pais sobre a importância de se acreditar na intensidade dos sentimentos e dificuldades infantis das crianças de até 6 anos, por ser um tempo em que elas passam por um rápido desenvolvimento psicológico necessitando encontrar algo “especial” nas pessoas que cuidam delas. Os efeitos de traumas podem ser nocivos ao seu desenvolvimento. Por isso, muito me preocupa a saúde emocional das crianças, principalmente as menores, nas quais a questão corporal e do movimento é premente.

Segundo Winnicott (1950), o ambiente favorável possibilita os processos de maturação da criança, que inclui a integração da agressividade à personalidade dentro da sua teoria do desenvolvimento emocional. Para o autor, nos primeiros anos de vida, a agressividade é sinônimo de movimento, pois a criança é essencialmente motora, inclusive quando está imaginando. Ela necessita experimentar a espontaneidade do movimento, sendo a escola o espaço ideal pois possibilita esta experimentação, e assim, a criança vai encontrando um contorno através das interações com os pares e adultos.Simultaneamente, o exercício da criatividade e da capacidade de simbolização são favorecidos, enquanto também está lidando com as emoções (WINNICOTT, 1950)

Assim, mostra-se preocupante a criança estar em casa com todo este potencial, pois, muito provavelmente, tenderá a exercer todas essas necessidades naturais do desenvolvimento no ambiente familiar com os pais e irmãos. Como as famílias também, tão fragilizadas pelo isolamento social, estão acolhendo as necessidades dos seus filhos?

Tenho mantido meu trabalho na escola de forma remota, devido à importância de todos - educadores e pais - serem acolhidos, ouvidos, pois sabemos que ter um espaço para acolher e pensar suas vivências e angústias pode reduzir danos psíquicos. Me deparo com lares em que os pais estão explodindo, irritados, ansiosos ou preocupados. Sem dúvida, se os pais ou o meio ambiente amplificam o stress poderão favorecer ainda mais sofrimento as crianças.

As crianças pequenas são muito sensíveis ao estado emocional dos adultos que cuidam delas e, para enfrentar seus monstros internos, precisam de adultos estáveis que as ajudem a enfrentar enfrentem as incertezas e angústias que a Pandemia trouxe. Para as crianças, a redução espacial, o regresso para casa e os cuidados e rituais higiênicos podem significar que exista um “monstro” lá fora que lhe causa medo e insegurança e por causa dele não pode ir para a escola, nem brincar com os amigos, nem ter festa de aniversário, nem abraçar os avós. Que monstro é este?

Segundo Winnicott (1999) a estruturação do sentimento de segurança na criança depende do ambiente facilitador suficientemente bom nos estágios iniciais da vida e este deverá ser constantemente reforçado pelos pais, no convívio com os professores, com os amigos e demais pessoas com os quais quem interage – crianças saudáveis conseguem reter o sentimento de segurança mesmo frente às mudanças na realidade externa. Acredito que esta característica pode favorecer à criança viver o trauma da Pandemia sem maiores alterações de comportamento.
Penso que todos nós estamos vivendo um trauma coletivo que de alguma forma provocou uma interrupção nas nossas vidas, porém, temos a possibilidade de aprender  a lidar com as privações e frustrações que esta nova realidade nos impôs. Sabemos que é um período e que vamos sair disso. E quanto às crianças? 

Na tentativa de uma aproximação com a teoria do amadurecimento emocional de Winnicott (1983), poderíamos entender o Coronavírus como uma “invasão” na medida em que rompeu abruptamente a estabilidade e continuidade das condições de vida suficientemente boas anteriores? Estaria havendo uma interrupção na continuidade do SER da criança? 

Tenho observado perdas com a interrupção na continuidade da vida da criança, que me remete a pensar mais no seu desenvolvimento do que na constituição do SER, embora o SER seja muito enriquecido pela escola. Algumas podem apresentar regressão passageira, porém, se o Ego foi bem constituído e se o ambiente inicial foi suficientemente bom e deu conta de fortalecê-la, as perdas serão recuperadas e ela terá recursos para retomar o seu desenvolvimento, com o amparo, proteção da família e cuidados da escola (Winnicott, 1999).

Percebo que crianças pequenas têm muita dificuldade de aproveitar uma Educação totalmente virtual, pois aprendem e se desenvolvem a partir das interações socialmente estabelecidas nas relações interpsíquicas. Considerando que o  desenvolvimento subjetivo psíquico humano contempla os afetos, emoções, ideias sobre si, ideias sobre os outros, a autoimagem que somente se constituem através da presença do outro e nas inter-relações, nota-se provável prejuízo quando a educação é virtual.

O aprendizado da criança acontece nas trocas e interações que o BRINCAR favorece. Se as famílias estiverem possibilitando o BRINCAR seu desenvolvimento se mantém, apesar de estarem privadas do ambiente escolar (Winnicott, 1942).

Como alternativa, penso que osdesafios da Pandemia devem ser refletidos com as crianças para ganharem significados, pois as questões de humanidade, tão necessárias, devem ser inseridas em sua rotina. Simultaneamente, as famílias e a Escola devem aproveitar para ensinar as crianças a lidar com frustrações, incertezas e espera.

Que o tempo de Pandemia seja um tempo útil de aprendizagens para todos!

Complementando, José Outeiral (2005), psiquiatra e psicanalista, desenvolvia reflexões sobre as questões da Educação nas escolas debatendo temas como: violência, limites, as dificuldades da prática educativa em um mundo mutante e em crise, as questões da infância, da adolescência e da família contemporânea.

Na concepção do autor a tarefa do professor é extremamente importante na vida das crianças e adolescentes e afirmou ser possível que para muitas delas a escola é a segunda e última chance de encontrarem um ambiente favorável ao seu desenvolvimento, porque a primeira será sempre a família (Outeiral, 2004).

Penso que tal afirmação nos sensibiliza, pois sabemos que muitas crianças podem estar não apenas em privação cultural e socioemocional sem escola, mas em privação alimentar e, provavelmente, expostas a algum tipo de violência. Para muitas delas vir para a escola ao encontro de uma boa professora pode ser o único meio de manter a fé e a esperança na vida.

Assim Winnicott (1936) define a boa professora: “É aquela que tem um profundo entendimento intuitivo da natureza humana, uma experiência de relacionamentos internos e externos, uma capacidade para a felicidade e alegria de viver sem a negação da seriedade e dificuldades em que isto implica”.

A abrangência do tema Educação, repleto de possiblidades, olhares, reflexões e inquietações, torna difícil a conclusão deste texto, devido ao seu caráter.

A escola é VIDA e MOVIMENTO!

O sociólogo suíço Philipe Perrenoud (2001) assim também a descreve em seu livro “Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza”, que contém reflexões e propostas sobre os desafios cotidianos pedagógicos do professor. Vale a pena a leitura!
​
Neste tempo de Pandemia a ordem do dia é suportar as incertezas e a dúvida de não saber, mantendo confiança em nós mesmos para prosseguir e, como os versos do Antonio Machado, o poeta espanhol: “Caminhante, não há caminho, caminho se faz no caminhar.”.
E, assim, continuemos caminhando sempre!

 
Referências:
WINNICOTT, D. W. Por que as crianças brincam? 1942. In: A criança e o seu mundo. 6 ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos S.A., cap. 22, p.161-165. 1982
_________________ O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983
_________________ Higiene mental da criança pré escolar (1936). In: Pensando Sobre Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, cap. 11. p. 75 – 88. 1997
_________________ A professora, os pais e o médico (1936). In: Pensando Sobre Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, cap. 12, p. 89 – 100. 1997
_________________ Conversando com os Pais. 2 ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1999
_________________Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional (1950). In: Da Pediatria à Psicanálise. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, cap.16, p. 355-374. 1993.
OUTEIRAL, J; CEREZER, C. O mal estar na escola. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter. 2005

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Minha gratidão ao Departamento Científico do IEP pelo convite e, em especial, a Marina Delduco Cilino pela oportunidade e incentivos constantes ao meu crescimento profissional e pessoal!

Por: Maria Aparecida Abbs da Fonseca e Castro. Psicóloga Clínica e Escolar. Especialista em teorias e técnicas psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro titular e supervisora do IEP (CRP 06/11126).
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Texto IPÊ 23: A força da leveza

12/19/2020

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Marina Klink
No ano de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia mundial. O que parecia provisório se estendeu por meses a fio e nos deparamos, mais do que nunca, com a necessidade de viver o momento presente e lidar com as incertezas do futuro. As novas demandas surgidas nesse contexto exigiram de nós muitas adaptações para viver as mudanças que se impuseram.

Lembro-me que há alguns anos, ouvindo uma notícia de um furacão que havia devastado uma região dos Estados Unidos, conversava com meu marido, engenheiro estrutural, e questionei o porquê de não construírem casas mais resistentes àqueles tipos de eventos, já que aconteciam com tanta frequência. Em sua resposta me trouxe a perspectiva de que para lidar com a força da natureza não adiantava se opor a ela, sendo mais vantajoso uma estrutura mais leve que, além de causar menos danos, também poderia ser mais facilmente reconstruída. Ocorreu-me que o coronavírus também nos impôs a sua força, trazendo instabilidade e colocando em xeque hábitos que compartilhávamos até então. Como estariam nossas estruturas? Conseguiríamos resistir a este evento? 

Essa explanação me remeteu a travessia do navegador brasileiro Amir Klink, que após muitos estudos para desenvolver um modelo de barco que permitisse cruzar o oceano da África até o Brasil, chegou à elaboração de um leve barco a remos. A explicação segue a mesma linha das estruturas das casas americanas. Diante de uma forte onda ou uma tempestade em alto mar, um barco pequeno consegue acompanhar os movimentos das ondas e, caso vire, pode facilmente ser desvirado, ao contrário de um barco muito robusto que, sendo derrubado, dificilmente pode se recompor. 

Para ilustrar esse fenômeno, Amir Klink (1995) cita  em seu livro “Cem dias entre o céu e mar”, onde narra essa travessia, a fábula “O carvalho e o junco” de Jean de La Fontaine. Na fábula, um grande carvalho lamenta-se pelo junco que, devido a sua leve haste, tinha que se curvar a tantos eventos externos, como a força do vento e o peso de um pássaro. O junco, por sua vez, argumenta que essa era na verdade uma qualidade que o permitia não se quebrar. Enquanto conversavam, uma forte tempestade surgiu. O junco se curvou, e o carvalho, tentando resistir, teve suas raízes arrancadas. 

Assim, diante de eventos tão turbulentos, acompanhar o caos, sem saber ao certo aonde vai dar pode ser uma forma de resistir, não no sentido de relutar, mas no sentido de tolerar. Essa habilidade de tolerar esses eventos, só é possível se se pode ter capacidade negativa. Capacidade negativa foi um termo que Bion (1977) pegou emprestado do poeta Keats, que dizia que o segredo do sucesso de um homem era a capacidade de seguir e se entregar à vida, mesmo diante de suas incertezas e enigmas, escapando da busca de explicações racionais. Para Bion (1977), a capacidade negativa se refere à condição de tolerar dúvidas e incertezas surgidas na sessão analítica, sem se apressar na busca de um significado pronto. Essa abertura para o desconhecido coloca o analista em contato com a turbulência emocional do encontro analítico, e é diante dessa turbulência que se podem encontrar as pistas para transformar uma situação adversa em uma boa causa (Bion, 1979).  

Dessa forma, em uma pandemia sem precedentes neste século, frente ao desconhecido e sem receitas e direções prontas, tem sido necessário construir, dia-a-dia, caminhos possíveis.  Tolerar a turbulência trazida pela pandemia tem permitido, em alguns casos, que novos significados sejam dados a ela. Tem-se observado novos projetos nascerem, cômodos da casa serem ressignificados, ideias engavetadas saírem do papel, o convívio em família ganhar um novo sentido, ainda que tudo isso só seja possível com uma estrutura externa minimamente organizada, com direitos básicos atendidos, o que, infelizmente, ainda se restringe a uma pequena parcela da população.

Assim sendo, a capacidade de ser flexível e permitir-se ser dobrado, virado, acompanhar os eventos e poder vivê-los sem ser quebrado só é possível se podemos tolerar o caos. Ademais, retornar do caos não significa sair ileso, mas sim, transformado. 

Nesse aspecto, a psicanálise tem muito a contribuir, já que possibilita sermos mais tolerantes e continentes com o nosso caos interno, a partir do desenvolvimento do nosso aparelho para pensar, e da transformação de elementos-beta em elementos-alfa (Bion, 1962), tornando-nos também mais flexíveis para lidar com o caos externo.

 Finalizo com uma frase da personagem Anne, do seriado “Anne with an E” (Moira Walley-Beckett, 2017). Ela diz: “Às vezes a vida esconde presentes nos lugares mais sombrios”. Completo com a ideia de que só se pode achar esses presentes se toleramos estar diante das incertezas, mistérios e meias-verdades da vida (Bion, 1977). 

Que, apesar da série de eventos desastrosos desse ano, possamos nos deixar navegar por essas ondas turbulentas sem perder de vista os presentes do caminho, afinal são eles que também nos permitem a leveza necessária para sermos mais flexíveis, resistentes e fortes. 
 
_______________________________
Agradeço ao Departamento Científico pelo convite e pelas bonitas floradas proporcionadas pelo projeto IPÊ. 

 
 
Referências:
ANNE with an E. Niki Caro. Canadá/ Estados Unidos da América: Moira Walley-Beckett, 2017.  
BION, W.R. (1962). Estudos Psicanalíticos Revisados. Rio de Janeiro. Imago: 1988. 
BION, W.R. (1977) Capacidade Negatica. In: Capacidade Negativa: um caminho em busca da luz. (Trad. Aile Stümer). São Paulo: Zagodoni, 2019. 
BION. W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v13, n.4, 1979. 
KLYNK, A. Cem dias entre o céu e mar. São Paulo: Companhia das lestras, 1995. 


Por: Francine Belotti, Psicóloga clínica (CRP: 06/109847), formada pela Unesp-Bauru, Mestre em Ciências, com ênfase em Psicologia da Saúde e Desenvolvimento pela USP, Especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), Especialista em Teoria e Técnica Psicanalítica pelo IEP-RP. Membro integrante e diretora do Departamento de Atendimento em Psicoterapia no IEP-RP. Contato: francinebelotti@yahoo.com.br
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Texto IPÊ 22: Diversidade

12/5/2020

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“Endless life of people” (A vida sem fim das pessoas) de Yayoi Kusama, 2010
A importância do diálogo, do convívio, da aceitação do outro como ele é não são novidades. Mas aquilo que é estranho sempre nos impacta fazendo emergir um desejo de nos aninhar no conhecido, no próximo, naquilo que é familiar (Freud, 1919). Vencer essa batalha de se permitir se impactar pelo diferente e disso poder brotar um bom negócio é um grande desafio (Bion, 1979).

À primeira vista parece que aquele que chega não tem nada a me oferecer com seu “jeitão de outro planeta”. Estamos habituados à teoria da evolução darwiniana que defende a sobrevivência e reprodução dos mais aptos. Sob tal ótica, o que se ganharia ao lado dos que consideramos “menos aptos”?

Cientistas vêm investigando há algum tempo que a evolução não é apenas produto da seleção natural, mas que algo muito relevante na “transformação das espécies” é a associação simbiótica entre os seres (Carrapiço e Rita, 2009). A grosso modo, uma combinação de seres diferentes, um vírus e uma célula humana por exemplo, passa a gerar uma nova forma de organização que vai além das capacidades individuais de cada um deles e isso pode ser transmitido para os descendentes: “Além de penetrarem no genoma das células somáticas, por vezes também infectam as células sexuais, possibilitando a transmissão do genoma viral na linha germinativa, o que constitui um potencial evolutivo considerável”(Carrapiço e Rita, 2009, p. 192).

Segundo essa teoria denominada simbiogênese, nossa espécie foi sendo “criada” a partir da combinação simbiótica de seres. Nossa mitocôndria, por exemplo, seria originada por uma bactéria que se juntou a um organismo unicelular, deixando de ser possível separarem-se. 

Parece maravilhoso, não é? Como disse Mia Couto (2020), a mitocôndria seria a primeira grande refugiada do planeta. Mas imaginemos esse primeiro encontro:

Célula (C) – Nossa, o que essa daí veio fazer aqui? (...) Tá muito perto... o lugar dela não é aqui.
Mitocôndria (M) – Não sei o que estou fazendo aqui, parece que não me encaixo... talvez devesse ir embora...
C – Vai tirar minha comida... já temos organelas suficientes por aqui. Seria melhor se ela fosse embora... ela é estranha.
M – Ela é muito estranha... mas me sinto cada vez mais perto, inclinada a entrar lá.

Já dentro da célula, tudo apertado e caótico, tudo fora do lugar, não tinha mesmo lugar para todo mundo. Uma desordem, uma bagunça. O complexo de Golgi reclamando, o retículo endoplasmático piando no ouvido do núcleo, os ribossomos cutucando a mitocôndria, que, por sua vez, cutucava de volta, querendo ela mandar no pedaço. Até que a membrana plasmática não aguentou e se rompeu, não o suficiente para vazar com todo mundo de lá, mas foi além de sua capacidade de contenção. Ninguém achava que sobreviveria, houve alguma cooperação e a membrana pôde se cicatrizar, abrigando novamente a todos que, nesse período, puderam notar que a mitocôndria trazia mais energia pra célula: juntos podiam algo novo.
​
No Museu Judaico de Berlim há uma obra de arte chamada Garden of Exile (Jardim do Exílio), do arquiteto Daniel Libeskind: é uma construção ao ar livre constituída por um chão irregular (que você percebe ao adentrá-la e tropeçar um pouco, ou seja, não é perceptível visualmente, mas através da experiência do caminhar) e blocos de concreto grandes e altos que te limitam a visão, fazendo lembrar um pouco um labirinto. O intuito da obra é provocar no visitante a sensação de confusão sentida pelos judeus exilados: de ser arrancado de sua casa, seu país e começar a vida do zero em outro local, onde a língua é estranha, os costumes são outros e a receptividade era limitada. 



​Lançar-se para o convívio com o diferente é uma tarefa que parece ser bem ilustrada também por essa obra de arte: provoca estranheza, o caminhar não é firme, a gente tropeça, dá vontade de voltar atrás, não conseguimos enxergar um horizonte esperançoso. A sensação é oposta à de intimidade, tranquilidade. No entanto, quando podemos nos demorar sobre o outro, e, principalmente, suportar essas sensações estranhas, algo diferente pode nascer. Não apenas na nossa tolerância, que certamente se amplia após o rasgo da experiência, mas no que aprendemos de novo. O que aquele que parecia tão estranho e até bizarro, pode nos mostrar com sua forma “torta” de ver o mundo que lhe rende outro escopo de observação. 


Costumamos pensar que na inclusão, no acolhimento de refugiados, nas políticas de cotas, ganham os incluídos, acolhidos e cotistas. Que isso deve ser feito, pois somos bonzinhos e podemos oferecer algo aos “excluídos”. Acredito que é importante olharmos para o que ganhamos, o que aprendemos e o novo que pode surgir dessa combinação. 

Nas palavras de um teórico da evolução, Scwartz (apud Carrapiço e Rita, 2009): “(...) a seleção (natural) não produziu nada de novo, mas apenas mais de um determinado tipo de indivíduos. (...) evolução significa produzir mais coisas novas e não, mais do que já existe”.
             

Referências Bibliográficas:
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BION, W. R. (1979). Como tornar proveitoso um mau negócio. In: Revista de Psicanálise, Vol. VII, N. 3, Dezembro de 2000, p. 491-501.
CARRAPIÇO, F. & RITA, O. (2009). “Simbiogénese e Evolução”. In “Evolução. Conceitos e Debates”, Levy, A., Carrapiço, F., Abreu, H. & Pina, M. (eds). Esfera do Caos, Lisboa, p.175-198.
Couto, M. (2020). Apresentação oral em evento online Fronteiras do Pensamento, no dia 16/09/2020. 
FREUD, S. (1919). O estranho. In: Obras completas de Sigmund Freud. Volume XVII. Rio de Janeiro, Imago, p. 233-269. 

Por: Leticia Costa Godinho Pergher. Psicóloga pela USP de Ribeirão Preto (CRP 06/89895) especialista em Psicologia Cínica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), membro titular e supervisora do IEP.
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Texto 21 IPÊ: A falta da fala

11/21/2020

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Domicílio do Vazio (Daniela Reis, 2017)
Quando me convidaram para escrever este texto, fiquei sem saber o que falar. Sobre o que falar? Por que as palavras me faltam? Como é difícil estar diante desse desconhecido, desse vazio...Surge, então, a ideia de falar sobre a fala, pois eu estava mergulhada em estudos sobre a linguagem a partir de um olhar psicanalítico lacaniano. Assim, escrevo sobre como a linguagem se constitui, como ela nos constitui e como se mostra.

Em seus Escritos de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure (2004), considerado o pai da Linguística, aponta para algumas propriedades da linguagem, frisando que a palavra é constituída de dois domínios: a ideia (conceito) e a forma (imagem sonora), sendo que ambos são construções sociais e culturais. O autor se debruçou sobre o estudo da língua, e mais do que isso, deu indícios de sua percepção de uma ‘fragilidade’ da língua, que envolve a intuição, a poética, o vazio, a evolução e mutabilidade, as lacunas e o incontrolável.

No mesmo período histórico, Sigmund Freud também pesquisava questões relacionadas à linguagem e suas perturbações, porém a partir do olhar clínico psicanalítico. No texto Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud analisa algumas situações como o esquecimento de nomes próprios, os lapsos de leitura e de escrita, introduzindo as questões do inconsciente nos processos linguísticos. 

Assim, através de suas observações da clínica e da sua vida pessoal, Freud (1901) percebe que os processos da linguagem (a fala, leitura e escrita) e o esquecimento e/ou lapsos podem estar conectados, através do mecanismo do recalque. Freud, então, assume que o pensamento pode ser perturbado pelas ideias contraditórias do desejo que ficou recalcado, e que os lapsos não são falta de atenção: são perturbações da atenção causadas por pensamentos que se impõem e desejam consideração.

Freud, com seus estudos, mudou a lógica do ideal de indivíduo, no qual este é o dono de si, que passa a sofrer interferências do desconhecido, que é o inconsciente. A partir disso, podemos discorrer sobre a interdependência entre linguagem e inconsciente para a constituição do sujeito, baseada na teoria psicanalítica.

No texto “Além do Princípio do Prazer (1921-1922), Freud apresenta a brincadeira do carretel de seu neto, na qual o carretel desaparece e o neto faz o objeto retornar à sua posse, acompanhado de uma fala, interpretada como uma renúncia instintual do bebê, pela sua introdução à cultura, ao deixar sua mãe ir embora. O brincar (que inclui o brinquedo e a fala da criança) representaria a transformação de um estado de falta de controle sobre o objeto amado (mãe) para uma sensação de controle. A brincadeira, dessa forma, torna-se um meio de elaboração mental, em que a criança passa da passividade para a atividade.

Na ausência da figura materna, cria-se na criança uma expectativa e um desejo de retorno/presença. O nascimento da linguagem se dá no momento em que esse desejo de retorno se materializa, como forma de suportar o movimento presença/ausência, no desenvolvimento da simbolização, que é também a fala. Esse é um momento de luto importante na vida da criança (DIDI-HUBERMAN, 2010).

No início da vida, o bebê vive um grande desamparo, pela dependência psíquica em relação aos adultos. Assim, a comunicação (tanto do bebê quanto de seu cuidador) se dá como instrumento de suporte para tal desamparo inicial. O bebê precisa desse cuidado do outro para sobreviver, pois a tradução das emoções do bebê realizada pelo adulto permite que o bebê se torne cada vez mais independente. No entanto, quando o bebê chora e o adulto tenta decodificar essa comunicação, não é possível acontecer uma correspondência exata das comunicações, ou seja, existe uma falta, um buraco entre o ‘falado’ e o ouvido; um desencontro que permanece com o sujeito em todos os encontros seguintes. Tal completude é perseguida por toda a vida desse sujeito (HARARI, 2001).

A mãe tem uma fala particular, que é o ‘manhês’, que é fundamental para que a criança entre na linguagem, pois é a partir desse endereçamento afetuoso que a criança passa a se reconhecer como sujeito de desejo. A musicalidade das emoções da mãe transmitida ao bebê é estruturante e impele no bebê o desejo de troca, do encontro, do diálogo, da comunicação (QUEIROZ, 2003).

A partir dessa apresentação do sistema simbólico que o outro faz para o bebê, iniciará o processo de sua constituição psíquica (BRUDER & BRAUER, 2007).

Faz-se, assim: a importância da fala da mãe, que traduz para seu bebê o que este ainda não sabe, e que ainda falta ser. A importância da fala, do grito, do choro, do protesto, ou dessa escrita, para se conhecer e ser reconhecido, também na falta. A importância da fala do analista, que coloca em palavras o que ainda só pode ser sentido pelo paciente; também na sua falta de sentido. A importância da fala do analisando, que conta histórias tentando encaixar seus quebra-cabeças, e que podem faltar peças. A importância da fala dos contistas que constroem pontos e pontes imaginárias para o mundo submerso dos leitores, e que ainda falta elaboração para ambos....

De uma forma mais livre e não mais teórica e estruturada, é possível considerar, então, os momentos de constituição e (re)construção de uma personalidade através da linguagem do inconsciente, que se mostra faltante. Surge, assim, um lado mais poético, inconstante, que não se estrutura perfeitamente, mas que, como o outro lado da mesma moeda, mostra-se: a fala demonstra e deixa escapar a nossa falta. A fala é a tentativa de encontro, mas ao se concretizar, escancara o desencontro e o desencanto.

A fala se faz como tentativa de aproximação...
A fala se faz como tentativa...
A fala se faz como...
 
Falei, assim, sobre a fala que estava me faltando.

 
​
REFERÊNCIAS

BRUDER, M. C. R.; BRAUER, J. F. A constituição do sujeito na Psicanálise Lacaniana – impasses na separação. Psicologia em Estudo, Maringá, Vol. 12(3), 513-521, set/dez. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pe/v12n3/v12n3a08.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2020.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
FREUD, S. Além do Princípio de Prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos (1921-1922). Vol. XVIII. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
FREUD, S. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). Vol. VI. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
HARARI, R. Da eficácia da ação ao esquecimento do nome próprio. In: O que acontece no ato analítico? A experiência da Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
QUEIROZ, T. C. N. Entrando na Linguagem. Estilos da Clínica. Vol. 8(15), 12-33, 2003. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v8n15/v8n15a02.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2020.
SAUSSURE, F. Sobre a essência dupla da linguagem. In: Escritos de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2004.


Por: Lia Brioschi Soares. Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (CRP: 06/104899). Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Enfermagem em Saúde Pública da EERP-USP. Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro titular do IEP-RP. Psicóloga Clínica e Psicóloga da Prefeitura Municipal de Orlândia.
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Texto 20 IPÊ: Nossos Buquês

11/8/2020

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“O essencial é invisível aos olhos.” 
(SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 73)


Neste ano, meus olhos voltaram-se de modo diferente para os ipês. Tenho o privilégio de ter alguns ipês próximos a mim, os quais posso observar e visitar com frequência. Um deles é aquele para o qual eu escrevo. Devo a ele um convite a um novo olhar.

Ipê é árvore capaz de se transformar de esquelética madeira desfolhada em pujante e colorido buquê, que se desfaz para dar espaço ao verde recheio das folhas. Tal qual a árvore que lhe nomeia, podemos considerar que o presente programa de publicações também precisou suportar perda de suas folhas. Compromissos adiados, alguns desfeitos ou refeitos. A energia se voltou para outra demanda, talvez menos visível para um transeunte desavisado que o contemplasse. E tal como a árvore, talvez tenhamos assim nos apresentado por um período: com perdas visíveis e com um porvir que ainda não podia ser vislumbrado. Sim, de tempos em tempos, faz-se inverno para nós. Intermitente e inevitável. Inexorável. A cada translação. Assim como ocorre na vida, assim como ocorre na sessão de análise.

 Na sessão, analista e paciente podem, temendo a angústia catastrófica atrelada a O, experiência de mudança e crescimento, recorrerem a fugas para o passado (memória), o futuro (desejo) ou presente (compreensão intelectiva), de modo que Bion propõe uma atitude “sem memória e sem desejo”, obtida por meio de uma “clivagem não patológica do ego” (ZIMERMAN, 1995). Lembro, então, que Bion (1973 a) sugere ao analista a abstenção da memória e do desejo a partir da “fé” na existência de um “infinito informe”, um “O”. Difere o “ato de fé” do “pensamento”, uma vez que este tem como base uma não coisa, enquanto aquele tem como fundo algo inconsciente, desconhecido e não acontecido (BION, 1973 a). Quanta fé foi solicitada ao nosso Ipê! 

Os ipês resistem às perdas da estação e mantém-se vivos: sem vislumbrarmos grandes manifestações, vão fazendo suas transformações e ainda no inverno desabrocham flores. Na análise os fatos são transformados e formulados e o objeto analítico se torna O quando sua evolução contemplou o suficiente para ir de encontro à capacidade K do analista (BION, 1973 a). É quando as flores presentes se fazem: com rica variedade de estilos e reflexões, pelas contribuições/floradas de seus autores, as flores presentearam nosso Ipê!

Quantas translações vivenciadas! Lembro que o objetivo da análise sendo em primazia a busca por O (a verdade absoluta, a realidade última, o incognoscível), a sensibilidade intuitiva não deve ser obscurecida pela sensorialidade (ZIMERMAN, 1995). Vale ressaltar que, para Bion (1973 a), a verdade última não é apreensível ao ser humano, 

“O não cai no domínio do conhecimento ou da aprendizagem, salvo incidentalmente; ele pode ‘vir a ser’, mas não será ‘conhecido’. Apesar de obscuro e informe, entra no domínio de K quando tiver evoluído até o ponto de ser elucidado através de conhecimento adquirido pela experiência, e formulado em termos derivados da experiência sensorial; sua existência é conjecturada fenomenologicamente.” (p. 29) 

Ao considerar a sensorialidade neste contexto, Bion (1973a) postulou que a memória guarda aproximações com a relação continente contido e pode ser sentida como conteúdo a ser possuído ou conteúdo a ser evacuado. Mais especificamente afirma que a memória necessariamente está subordinada aos sentidos e, consequentemente, ao princípio prazer-dor, assim como os desejos: memórias e desejos têm por objetivo barrar transformações K – O (BION, 1973 a). Recomenda a abstenção de memória e desejo, num deslocamento do domínio do princípio prazer-desprazer e aparente despojamento do princípio da realidade (BION, 1973 b). Não se trata de uma negação da realidade: o analista deveria buscar algo que difere da realidade normalmente conhecida (BION, 1973 b). 

E nosso Ipê segue vivo, em determinados momentos despojado de verde e de flores, em outros com sua copa exuberante. “É preciso que eu suporte uma, duas ou três larvas se eu quiser conhecer as borboletas. Parece que são muito bonitas. Se não forem elas, quem então virá me visitar?” (SAINT-EXUPÉRY, A., 2015, p. 36).  

 
​
Referências Bibliográficas:

BION, W.R. Realidade Sensorial e Psíquica. In: Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1973, p. 29 - 45.
_____. Opacidade de Memória e Desejo. In: Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1973, p. 46 - 60.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. São Paulo: Caminho Suave, 2015, 93p.


Por: Mariana S. B. Formighieri. Graduação em Psicologia (CRP: 06/73712) e Mestrado pela FFCL/RP-USP, Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP/RP, membro integrante e diretora suplente do Departamento Científico deste.

Co-Autoria: Marina Delduca Cilino (1), Ana Lucia Ferreira de Albuquerque (2) e Luís Gustavo Faria Aguiar (3)
1) Psicóloga clínica, com graduação pela USP, mestre em psicologia da saúde e desenvolvimento (USP), especialista em teorias e técnicas psicanalíticas (IEP-RP),  professora/orientadora do curso de especialização em teorias e técnicas psicanalíticas (IEP-RP), diretora do departamento científico (IEP-RP).
2) Psicóloga clínica com especialização em Psicoterapia Psicanalítica pela Universidade de Uberaba (Uniube)/Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em parceria. Membro titular e supervisora do Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP). Membro integrante do Departamento Científico Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEP-RP). (CRP 06/58835).
3) Psicólogo, formado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Pós-Graduado em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP). Atua na área clínica, oferecendo psicoterapia psicanalítica presencial para crianças, adolescentes e adultos, bem como psicoterapia online para adolescentes e adultos, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. É Diretor suplente do departamento científico e membro integrante do IEP-RP.

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Texto 19 IPÊ: Floradas de Inverno

10/24/2020

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Ipê Amarelo em Beira de Lago (Túlio Dias)
“Não há tempo consumido
Nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
De amor e tempo de amar.
 
O meu tempo e o teu, amada,
Transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
Amar é o sumo da vida.”
​
 
(Carlos Drummond de Andrade)
​
Ao receber o convite para escrever algo para o Ipê – Programa de Publicações do IEP, vindo de uma pessoa tão especial para mim, Ana Lucia Ferreira de Albuquerque, senti uma enorme emoção que motivou o desejo de fertilizar algumas idéias, e foi onde comecei a brincar com o nome do programa: Ipê. 

Lembrei-me de um livro que havia lido na infância, “Quando florescem os Ipês” de Ganymedes José. Trata-se de uma história de quatro adolescentes que viviam em uma cidade pequena e, com a possibilidade de mudarem-se para uma cidade grande, vivenciando as incertezas, medo, sofrimento e esperanças. Um livro classificado como triste; lembro-me sim de ter ficado com a sensação de desconforto quando o li.

No Mato Grosso, há uma crendice de que o Ipê floresce no inverno seco de lá porque ele acredita que vai morrer. Diante do sofrimento, eles abrem as flores para liberar a semente e assim garantir a próxima prole do cerrado.

Há outra lenda sobre os Ipês: quando Deus estava distribuindo para as árvores a época em que gostariam de florescer, nenhuma das árvores queriam o inverno por ser seco, frio e haver muitas queimadas, porém Deus precisava de pelo menos uma. Foi então o Ipê o único a aceitar tal proposta, sendo considerada pelas outras como muito corajosa.

Por este motivo, Deus concedeu aos Ipês que florescessem das mais variadas cores, para colorir uma estação rigorosa com tamanha beleza.

Mesmo sendo por um período relativamente curto, sua floração nos brinda com uma exuberância sem igual, dando-nos o prazer de apreciá-las.

Pensando nesta passagem de cores durante o inverso/inverno, vem à mente o texto Transitoriedade, de Freud (1916) que descreve um de seus passeios por uma rica paisagem num dia de verão em companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem.

Segundo Freud (1916), o poeta admirava a beleza da paisagem, porém não se alegrava com ela, pelo fato de estar condenada a extinção, pois no inverno ela desapareceria.

Freud (1916) fala da Transitoriedade como o valor da raridade do tempo: “A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade” (pág.249). E continua: “...mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta.” (pág. 249).

Na tentativa de uma interface das árvores não quererem florescer no inverno e do amigo poeta de Freud (1916), talvez poderíamos pensar na dificuldade que ambos estavam demonstrando para elaborar suas perdas e lutos, como se pudesse evitar sofrimentos, não estabelecendo vínculos e sentidos para as experiências que a vida oferece ao longo de nossa existência.

Fico com uma questão para pensar: para não desfrutar das experiências emocionais nos encontros que a vida nos oferece, quanto nos enganamos, muitas vezes, pensando em uma eternidade, ou não se apropriando das mesmas? 

Tantas coisas ao decorrer de nossa estrada percorrida vamos deixando para trás,  não ficando em  nossas lembranças diárias: nossa infância, nossa adolescência (como no livro citado acima), a casa dos pais, pessoas importantes de nossas vidas que se vão, outras que simplesmente se afastam da nossa convivência por buscar novos horizontes, e todas as oportunidades outras a partir de uma simples escolha.

Eu gosto de pensar na bravura dos Ipês, que apesar de todas as adversidades do inverno, apostam em seu sofrimento para florescerem e garantirem sua próxima prole, dando-nos um espetáculo de cores e beleza. O sentido disso para mim é um fenômeno chamado Vida.

Tento aprender a cada inverno um pouquinho mais com essa espécie de árvore pela qual desde a minha adolescência me sinto atraída, o que me levou a leitura de um dos meus primeiros livros.

Apreciá-los me remete a pensar em nossa passagem pela vida, desde seu início até seu final, e com as experiências emocionais que vamos nos permitindo sentir, implicando no modo como florescemos, como desabrochamos!

 
Referências:
FREUD, S. A Transitoriedade [1916]. In: FREUD, S. Obras Completas Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos [1914-1916]. 1 reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (p. 247-252).
JOSÉ, G. (1976). Quando florescem os Ipês.  Cidade. Ed. Brasiliense. (p. 125).
LOPEZ, V. 16/10/2020, recuperado em 20/10/2020 de https://www.gazetadigital.com.br/editorias/cidades/ips-florescem-no-sofrimento-do-inverno-seco-de-mato-grosso/626002#
BRAGA, J.H.S,  06/07/2017, recuperado em 20/10/2020 de https://www.agrandeartedeserfeliz.com/a-historia-dos-ipes/

Por: Fabiana Andréia Schiavinato Germano. Psicóloga Clínica (CRP 06/99245), com graduação pela Universidade  Paulista de Ribeirão Preto (UNIP). Especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro Associado do  IEP-RP.  Membro Filiado da SBPRP.
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Convite IPÊ: "A Capacidade Negativa"

9/27/2020

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Hamlet et Horatio au cimetière / Hamlet e Horácio no cemitério (Eugène Delacroix)
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​​“Há mais coisas entre o céu e na terra, 
do que sonha a nossa vã filosofia”

William Shakespeare
​
O Departamento Científico pede licença ao IPÊ para aproveitar esse espaço de solo tão fértil e plantar mais uma semente: 

Gostaríamos de convidar os seguidores das publicações do IPÊ para participar da Conferência Online com o Dr. Arnaldo Chuster sobre “A CAPACIDADE NEGATIVA”. 
A capacidade negativa é um termo que Bion emprestou do poeta romântico inglês Keats, a partir de uma carta enviada pelo poeta aos seus irmãos em 1817 na qual, dizendo sobre qual qualidade pensa ser necessária para formar um Homem de Êxito, mencionando Shakespeare, escreve: “... referindo-me à capacidade negativa, isto é, quando um homem é capaz de conviver com incertezas, mistérios, meias-verdades, sem ter que apressadamente compreender...” (Chuster, 2019, p. 21).  
Segundo Zimerman (2004), a capacidade negativa é um conceito que:


 “diz respeito à capacidade que o psicanalista deve ter de suportar,
na situação analítica,um estado de “não saber” o que está se passando entre ele e o
analisando. Para reforçar a necessidade de obtenção desse estado mental, 
Bion preconizava que o analista deveria abster-se, durante a sessão, do uso de
sua memória, de desejos, e de uma obrigação de compreensão imediata”.
 (ZIMERMAN, 2004, p.67)
​

Apesar de, como destaca Chuster (2019), na língua portuguesa o adjetivo “negativa” significar algo improdutivo, a capacidade negativa de que Bion nos fala é oposta a esse significado. Bion nos remete a uma capacidade de manter a mente aberta, além do que podemos compreender. Dessa forma a capacidade negativa tem a ver com a tolerância ao não saber e a capacidade de não saturar-se facilmente, pois a saturação, ao contrário do que Bion nos propõe, impede o novo, esgota a criatividade e o pensamento.  Chuster (2019, p. 21) diz que na capacidade negativa “O negativo adquire outro sentido, e por isso talvez pudéssemos chamá-la de capacidade virtuosamente expectante, mas por enquanto manteremos a tradução originária que foi feita do termo Negative Capability”.

Com tamanha importância no trabalho clínico, acreditamos que a realização de um evento com esse tema seja uma ótima oportunidade de aprofundamento.

Venha participar conosco desse encontro sobre a capacidade negativa, nos acompanhando na busca da compreensão e do exercício do que mais temos sido demandados: nos manter virtuosamente expectante.
​

Informações para inscrição na imagem do post, ou via secretaria@ieprp.com.br

__________________________________________________
Departamento Científico - Diretoria IEP-RP



BIBLIOGRAFIA:
CHUSTER, A. (2019). Introdução. In: Capacidade Negativa: um caminho em busca de luz. A. Chuster et al. Cols. São Paulo: Zagodoni
ZIMERMAN, D. E. (2004). Bion: da teoria a prática - uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed 



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Texto 18 IPÊ: Sobre permitir-se ser observado

9/12/2020

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The Brooks Range, from the series Genesis (Sebastião Salgado, 2009)

​É bastante comum deparar-se com alguma particularidade humana que assusta e causa (muito) desconforto. É possível que isso aconteça na observação do outro ou na de si mesmo; e como é penosa a percepção da verdade de tudo aquilo que nos compreende enquanto humanos. Às vezes, a atitude alheia é observada e, defensivamente, imagina-se que nunca se assumiria determinada conduta e que alguns estados mentais estão muito distantes da própria experiência e natureza. Ainda, é possível captar de forma intuitiva alguma verdade dolorosa a respeito da própria mente, quase impossível de ser acolhida internamente em um primeiro momento. De acordo com Chesterton (1908), se pode ser real a felicidade requintada de um homem em esfolar um gato, uma das soluções humanas para lidar com tal desafeto pode ser negar o gato esfolado. Seria também uma saída ficar longe de tudo e de todos que mencionem ou lembrem da palavra “gato”? Ou quem sabe, dizer que não há nada de amoral em esfolar um animal? Dessa forma, diante da dificuldade em suportar a percepção de uma dimensão primitiva, violenta e secular pertencente a nossa existência, corre-se o risco de sufocar, negar, perverter ou banalizar tais conteúdos.


De fato, o preço a ser pago para acolher e tolerar tudo o que existe dentro de nós é alto; mas o preço por desconhecer que uma dimensão mental turbulenta existe, sufocando-a, pode empobrecer ou danificar a si mesmo e as relações; ou seja, perde-se muito. Neste caso, é possível que a dificuldade em reconhecer e tolerar a verdade conduza à evasão da realidade psíquica, instaurando-se, por exemplo, os estados de arrogância (BION, 1958).

A precariedade, o vazio, a violência e a confusão constituem a nossa existência. Ao mesmo tempo que tal percepção pode ser (bastante) desagradável, o contato com as assustadoras emoções (inerentes ao humano) e o acolhimento das mesmas, possibilita que elas sejam assimiladas, integradas em nossa personalidade, e, assim, civilizadas e passíveis de negociação, diferentemente de serem enquadradas ou aniquiladas (CASTELO FILHO, 2017/2018), o que forçaria uma homogeinização mental insana.

Dessa forma, a psicanálise é um “espaço” no qual a verdade sobre nós mesmos pode ser revelada, uma vez que ela permite que uma pessoa seja apresentada para ela mesma (CASTELO FILHO, 2017/2018). Sendo assim, a psicanálise seria também um espaço em que, a partir da disponibilidade e tolerância em ser observado e analisado por outra pessoa, a virtude da humildade poderia se desenvolver? Humildade no sentido de reconhecimento da nossa condição ontológica, que é a de ser precário, vulnerável e permeado por paixões. Nesse sentido, a possibilidade do florescimento desta virtude encontra-se no conflito (CHESTERTON, 1908), na “colisão” entre coisas aparentemente opostas; para ser “humilde”, é necessário encontrar-se com a própria onipotência e com o impulso de existir conforme os próprios desejos e conhecê-los.

Segundo Bion (1958) ao passo que a turbulência em conhecer a verdade pode ser tolerada, o orgulho pode converter-se em respeito por si mesmo. Assim, a possibilidade de investigar e conhecer quem se é, por mais desafiador que seja em alguns momentos, viabiliza que se desenvolva certa reverência pela própria existência e por tudo que a compõe. No entanto, o destino desse percurso é desconhecido, sempre existindo a ameaça de ruptura frente à perturbação característica da experiência de se conhecer. Para isso é preciso coragem. Virtude que novamente se desenvolve no conflito, sendo quase uma contradição nos seus termos (CHESTERTON, 1908): Significa um forte desejo de viver, que toma a forma de uma absoluta prontidão para morrer.
_______________________________ 
Agradeço ao Departamento Científico do IEP pelo generoso convite, e àqueles que me acompanham e me ajudam a (tentar) desenvolver virtudes em tempos difíceis. 
 
Referências:

BION, W.R. (1958). Sobre a arrogância. In: Estudos psicanalíticos revisados. RJ: Imago, 1974. Cap. 7, pp 101-109. 
CASTELO FILHO, C. (2017/2018). Estados primordiais da mente. Revista de Estudos Psicanalíticos, 35 (1), pp 39-59.
CHESTERTON, G. K. (1908). Ortodoxia. SP: Ecclesiae, 2013. 

Por: Ana Beatriz Paschoalato Di Nardo. Psicóloga graduada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP (CRP 06/124978).  Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas (IEP-RP). Membro titular e integrante da Secretaria do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão-Preto (IEP-RP).
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Texto 17 IPÊ: Adoecer: Sempre uma possibilidade

9/5/2020

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Vincent Van Gogh. Autorretrato. 1889, Pintura, óleo sobre tela, 60x49.
“Não existe ninguém tão grande para quem seja uma desonra estar sujeito às leis que regem com igual rigor a atividade normal e a atividade patológica.” (Gay [1989] apud Freud [1996a]).

Essa afirmativa de Freud nos coloca diante da possibilidade de navegarmos mentalmente por mares nunca navegados.

Quantos relatos me foram comunicados: “Fiquei assim de uma hora para outra.” “Nunca pensei que pudesse sentir isso.” “Sentir isso é muito ruim.”

Enfim, podemos ver a angústia materializada nas expressões faciais, no tom de voz, na respiração alterada, pedindo ou depositando na pessoa do analista a responsabilidade de tirar esse mal.

Dentre as angústias que são comumente apresentadas podemos constatar que a perda de controle, a baixa resistência à frustração e projeção da cura fora de si mesmo se sobressaem de maneira especial.

No entanto é a possibilidade que temos no processo analítico de desintoxicar conteúdos tóxicos e ressignificá-los, já que são nossos, e a realidade não muda e sim nosso olhar sobre ela.

Enfrentamos o desafio de como dizer ao nosso paciente que não vamos curá-lo, na medida em que, muito comumente é a idealização do paciente em relação ao analista que motiva a procura da análise.

O processo de desidealização exige tempo e sensibilidade permeados pela perspicácia de antever a condição interna do paciente.

Tarefa difícil essa, bem como, captarmos o nível de excitação mental do paciente, ou seja, se podemos avaliar que está dentro de um nível aceitável que possibilita insights, uma vez que Freud nos alerta para observarmos o “Princípio da Constância” isso implica a tendência do aparelho psíquico em manter a quantidade de excitação num nível baixo ou pelo menos a mais constante possível, ultrapassar esse limite invariavelmente resulta na descarga através de sintomas (Freud, 1996b).

Temos angústias e conflitos que são particulares, próprios da nossa subjetividade, da nossa história, da maneira como vivemos e sentimos nossas experiências emocionais.

Hoje temos um medo que nos é comum, esse inimigo invisível, que nos ludibria, se transforma, se altera, se esconde e nos ameaça, parecendo estabelecer uma competição com algo desconhecido que temos e que se constitui uma das feridas narcísicas da humanidade: Temos uma mente inconsciente.

Assim essa impossibilidade de ter ainda conhecimento e, portanto, a segurança de estarmos protegidos desse inimigo nos deixa no escuro.

O escuro pode causar medo, incertezas e despertar ruídos internos que estavam sendo “abafados” ou protegidos pelas defesas.

O que fazer diante disso?

O caminho que comumente percorremos junto aos nossos pacientes na experiência de estarmos juntos é permeado por investigação, escuta, continência e disponibilidade.
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Na tentativa ou na função de despertarmos ou fortalecermos a condição de aceitação e enfrentamento dos nossos pacientes em relação a sentimentos ou realidades que causam sofrimento, objetivamos ajudar a criação de recursos internos ou utilizar os que eles já tinham e não se apropriavam deles.

Assim, também podermos nos apropriarmos dos nossos recursos internos facilitando a esperança de estarmos fortalecidos diante da possibilidade de adoecer.
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Referências:
Freud, S. (1996a). Leonardo da Vinci e a lembrança de sua infância. Coleção Standard. Ed. Imago: Rio de Janeiro, RJ. Trabalho original publicado em 1910.
Freud, S. (1996b). Para além do princípio do prazer. Coleção Standard. Ed. Imago: Rio de Janeiro, RJ. Trabalho original publicado em 1925.
Gay, P. (1989). Freud uma vida para o nosso tempo. Denise Bottman (Trad.). Ed. Companhia das letras: São Paulo, SP. Trabalho original publicado em 1988.

Por: Alice Ivone Marconi França. Graduação em Psicologia (CRP: 06/8519) pela Universidade de São Paulo, Mestre pela Universidade Federal de São Carlos, Especialista em Psicoterapia Analítica de Grupo pela SPAGESP, membro titular e diretora suplente do Departamento de Supervisão do IEP/RP.
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