Foram quase dez meses até ela retornar totalmente restaurada, e eu nem sabia como funcionava. Hoje sempre ao ouvi-la, acredito que minha memória retorna ao passado por alguns instantes, imagino cenários, sinto cheiros e perfumes, reavivo pessoas e através da música (com aquele chiado bem específico), viajo com a saudade. Saudade de algo que não vivi, porém que estranhamente vive em mim. O objeto que trago é uma Victrola da Victor Talking Machine Company, fabricada em 1928, que foi adquirida pelos meus bisavós paternos nesta mesma época, e que após a recessão de 1929 não foi mais fabricada neste modelo.

Penso que este objeto tem potência na memória que carrega consigo, memória de uma época em que o tempo era sentido de uma maneira tão diferente de agora, e eu não vivo esse tempo, mas como me soa familiar! No mesmo compasso, ouvi-la me traz algo de dolorido e que talvez esteja relacionado à passagem do tempo, à transitoriedade da vida, a lugares, a pessoas…

Navegar pela transitoriedade me entrega a este estranho sentimento que chamamos de saudade. Mas afinal, sentir saudade é bom ou ruim? Como diz a música, interpretada pela banda Legião Urbana, Angra dos Reis (1987): “Se fosse só sentir saudade. Mas, tem sempre algo mais.” Para Freud (1916) a finitude de algo é o que lhe confere valor, o valor de “raridade no tempo” (pág. 249) que aumenta a preciosidade, e quando não sabemos lidar com essa fragilidade que nos é imposta, podemos ser conduzidos ou a um doloroso cansaço do mundo ou à uma rebelião contra a finitude constatada, sendo que ambas as atitudes somente nos impediriam de aproveitar a experiência presente.

Tem quem confunda a saudade com a tristeza, com a dor do luto ou o com o sofrimento da melancolia. Freud (1917 [1915]) diferencia luto e melancolia, afirmando que nesta, a relação com o objeto fica complicada pelos sentimentos ambivalentes que permanecem no inconsciente (fora do investimento das palavras) e geram os conflitos que dificultam a elaboração da perda, que não precisa ser tão real como geralmente ocorre no luto. Saudade não é necessariamente estar de luto ou estar em estado melancólico por algo, mas também pode doer ou entristecer ao estar sempre lidando com algo que já se findou e que não existe mais no presente. Sentir saudade seria então, diferente do luto e, talvez contorne alguns paradoxos sentimentais. 

O psicólogo Amaral (2020) traz o “sabor agridoce” da saudade, do quanto ela pode ser muito mais que uma lembrança e teria relação também com o ato de imaginar e de recriar. Ele a chama de “exercício de arqueologia”. 

Bion (1973) utilizando-se da lenda do Cemitério de Ur, compara a atividade dos psicanalistas à dos saqueadores das tumbas e arqueólogos, que dotados de grande coragem, ousaram ultrapassar os perigos de um lugar, que segundo as crenças vigentes na época, era guardado por espíritos maléficos, para acessar ou roubar os tesouros lá escondidos. Da mesma forma, quando trabalhamos com a psicanálise, precisamos nos aproximar do inconsciente e para isso teremos que enfrentar ousadamente o desconhecido para romper com as repressões, tabus, paralizações e medos a fim de gerar algo novo na experiência emocional vivida com o paciente. 

“Em psicanálise duas pessoas ousam fazer perguntas sobre aquilo que esqueceram e so­bre aquilo que não sabem, e devem, ao mesmo tempo, ser capazes de viver no presente. O resul­tado é que elas se tornam mais fortes.” (BION, 1973, p. 17).

Pode soar quase impossível a tarefa que nos propõe Bion, mas reflito sobre um poema de Fernando Pessoa, “A Tabacaria”, escrito em 1928 sob o pseudônimo de Álvaro de Campos que, em seu contexto, remete-me a esta capacidade de estar em uma experiência, muito atento ao que está ocorrendo no mundo externo e, ao mesmo tempo, podendo contar sobre os acontecimentos de seu mundo interno em relação ao que está fora e ao que está dentro, sem que uma realidade exclua a outra, como neste pequeno trecho: 

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(CAMPOS, 1951, v. 22-24)
A saudade parece guardar relação com esta dinâmica, algo bom que passou, porém que ainda reverbera internamente; uma experiência ligada ao mundo externo, mas que é guardada em mim, por minha mente e memória de forma única e extremamente subjetiva. Algo que me afeta no presente, mas que remonta a algo que já foi vivido, experimentado e esquecido, para poder ser relembrado e recriado novamente em outro momento e… deixar saudade de novo. Se sinto saudade, posso reviver na memória, e se há memória é porque pude estar de alguma forma presente naquela experiência. Poder sentir saudade e caminhar com ela, poderia então, auxiliar-me a estar mais inteira nas relações e necessitar menos de repressões. 

Por isso questiono: por que será que falamos tanto em “matar a saudade”? 

Relembro da transitoriedade e do quanto concordo com Freud (1916) a respeito da beleza que ela traz para as experiências, porém do quanto é difícil, às vezes, lidar com a angústia de que as coisas boas também se findam. Remeto-me neste momento, aos termos heimlich / unheimlich, utilizados por Freud (1919) de difícil tradução em outra língua, mas que no alemão carrega consigo um significado ambivalente ao se remeter não somente à angústia, mas também a algo que é familiar, íntimo e conhecido, sendo o segundo termo também utilizado para designar algo que deveria se manter secreto, mas que se manifesta. Será que permitir-se ficar um pouco na saudade precipitaria não somente o que foi bom, mas também os segredos e a ambivalência de nossas experiências, por isso desejamos mata-la?

Convido o leitor para caminhar neste paradoxo de sentir saudade e arriscar-se a permanecer presente nesta experiência emocional que nos remonta ao passado, nos faz recriá-lo, e por outro lado tem potência para atualizar nossas questões e nos dar a chance de criar algo novo, redescobrir tesouros e elaborar angústias vigentes, na medida em que podemos ganhar a oportunidade de nomear terrores, que talvez no tempo em que surgiram não puderam receber palavras, mas deixaram rastros de sensações, percepções e memórias que atrapalhavam a fruição das experiências atuais.

Enfim, se a saudade trata-se de vínculos, afirmo que a análise é, também, uma profícua relação na tarefa de rememorar, reconhecer e renomear saudades. Nesse aspecto, a reparação de um objeto antigo poderia ser uma maneira de lidar com as saudades? Uma Victrola teria a possibilidade de restaurar uma continuidade do tempo e dos vínculos? Hoje, ela mora em minha casa e divide o espaço com coisas do nosso tempo presente, e me inspira a criar novas memórias com as memórias que sua música me proporciona. Afinal, como nos cantou João Nogueira:

A vida é mesmo uma missão
A morte é uma ilusão
Só sabe quem viveu
Pois, quando o espelho é bom
Ninguém jamais morreu
(ALÉM DO ESPELHO, 1992)
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Agradeço imensamente o Departamento Científico IEP-RP
pelo convite e por poder compartilhar este pequeno elogio às saudades que cá e aí moram, afinal se houver vida, a saudade será certa. 

Referências:

ALÉM do Espelho. Compositor: João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Intérprete: João Nogueira. [S. l.s. n.], 1992. Álbum Além do Espelho.
AMARAL, A. A. A saudade, que parecia ser somente dor, vem lembrar que é saúde. In: AMARAL, A. A. Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020. cap. 4. E-book 192 p.
ANGRA dos Reis. Compositor: Renato Russo, Renato Rocha e Marcelo Bonfá. Intérprete: Legião Urbana. [S. l.s. n.], 1987. Álbum Que País é este?.
BION, W. R. Conferências Brasileiras 1: São Paulo [1973]. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA., 1974.
CAMPOS, Álvaro de. Poesias. Lisboa: Ática, 1951.
FREUD, S. A Transitoriedade [1916]. In: FREUD, S. Obras Completas Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos [1914-1916]. 1 reimpressão. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 247-252.
FREUD, S. Luto e Melancolia (1917[1915]). In: FREUD, S. Obras Completas Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos [1914-1916]. 1 reimpressão. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-194.
FREUD, S. O Inquietante [1919]. In: FREUD, S. Obras Completas Volume 14: História de uma Neurose Infantil (“O homem dos lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros textos [1917-1920]. 1 reimpressão. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 328-376.

Por: Rhianne Yukana Ishihara Souza. Psicóloga Clínica (CRP 06/108183), com graduação pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Especialista em Psicologia Clínica (CFP) e em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP. Especialista em Psicologia Hospitalar no Hospital Geral pelo Programa de Aprimoramento Profissional – HC-FMUSP. Membro Titular e Diretora do Departamento de Relações Institucionais no IEP-RP.