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TEXTO 33 IPÊ: "Qual foi a última vez que sentimos a análise viva? Considerações sobre a percepção de vitalidade e desvitalização na análise online e presencial."

7/5/2022

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Imagem do filme Náufrago. Direção e produção: Robert Zemeckis. Estados Unidos: DreamWorks Pictures, 2000.
“Os sobreviventes não tinham medo algum, mas ficaram
aterrorizados quando cogitaram que um navio se aproximava.
A possibilidade de salvamento e a possibilidade ainda maior
de que suas presenças não seriam percebidas na superfície do oceano
foi o que os aterrorizou. Anteriormente, o terror estava afundado,  ​por
​assim dizer, nas profundezas  opressivas  da depressão e do desespero.”
(BION, 2017, p.39)
A vivência pessoal que vou compartilhar aqui busca enriquecer a compreensão de uma questão importante dentro do mundo de delicadezas que a psicanálise alcança. Para, quem sabe, ajudar a rememorar a riqueza do atendimento presencial, em contraste com a praticidade e urgência do atendimento online, no que diz respeito ao reconhecimento da presença ou ausência de vida na análise.

Tal experiência intensa me marcou profundamente, suscitando escrever sobre a questão de Ogden (2013), título desse texto, que propõe olhar para o sentimento de vitalidade e desvitalização na análise, não apenas como elemento essencial da técnica analítica, mas, possivelmente, como a medida mais importante, segundo ele, do que ocorre a cada momento no processo analítico.

Ocorreu que, após dois anos de quarentena em análise online, fui convidada a retornar ao consultório da minha analista. No dia em que aceitei o convite, após algumas semanas de hesitação, estava eu parada diante do espelho checando minha aparência para sair de casa rumo à sessão presencial. Foi quando percebi meus cabelos sujos e sem corte. Cortar o cabelo era algo que eu mesma vinha fazendo, “dando um jeito” durante toda a pandemia. Pelo comprimento, lavar se tornou mais trabalhoso e menos frequente, então saí com o cabelo desarrumado, escondido em um coque feito às pressas, o que normalmente não é um problema pra mim. Mas naquele dia eu me senti diferente e isso me chamou atenção.

Enquanto dirigia, me lembrei de uma pessoa que me contou sobre como era importante pra ela se arrumar para trabalhar em casa, ou não aguentaria sobreviver ao isolamento. E mais pensamentos, que eu ainda não compreendia, surgiram ao longo do caminho. A cada minuto do trajeto, eu me sentia mais desarrumada, desmazelada... Sentia, mais intensamente, algo de um abandono com a minha aparência.

Dirigi com o sentimento ambíguo de querer e, ao mesmo tempo, não querer ter que me deslocar por aqueles quilômetros. Achava a sessão online algo prático: era colocar o fone, iniciar a chamada de vídeo e pronto. Mas a ocasião não era de ordem prática, e eu estava prestes a me encontrar com algo importante.

Estava uns minutos atrasada. Chovia. Ao chegar à sala de espera baixei a cabeça para olhar meus pés, que eu enxugava em um tapetinho. Foi quando abri a porta e me senti abraçada pelo calor e a luz cálida daquele ambiente seco e acolhedor, que contrastava com a umidade do dia frio e chuvoso lá fora. Uma música suave preencheu o silêncio.
Terminei de enxugar meus pés e levantei a cabeça, quando ouvi meu nome sendo chamado, com a entonação de uma interrogação:
- Raquel?
- Sou eu! Respondi espontaneamente, e logo percebi a esquisitice de me apresentar como se fosse a primeira vez. Eu me apresentava como uma pessoa nova, para outra que eu também não tinha certeza se ainda era a mesma.

Entrei e me deitei no divã, como de costume. De lá, a sala de atendimento parecia menor, comentei. Fui me dando conta do quanto eu havia ficado solta, num espaço aberto muito grande, fora dali, e que agora contrastava com aquele lugar acolhedor que me abraçava com seus móveis e paredes. Fui reconhecendo os objetos da sala, parados ali onde sempre estiveram, trazendo-me a lembrança do trecho de uma música: "Tudo estava igual como era antes / Quase nada se modificou / Acho que só eu mesmo mudei / E voltei”. (CARLOS, 1974)

Lembrei-me de um comentário que eu havia feito há poucos dias para meu companheiro, quando estivemos em um supermercado que tem duas portas de entrada, em lados opostos. E eu contava sobre uma lenda supersticiosa de que quando adentramos em qualquer lugar, o anjo-da-guarda que nos acompanha fica esperando na porta, e é por isso que sempre devemos passar pela mesma, para recuperá-lo ao sair. Demos risada, ele não conhecia a história, e ainda brincou com a cena de vários anjos esperando abandonados na porta do supermercado.

Na sala de análise, senti um aroma suave de madeira, vindo dos móveis, e me surpreendi, já que a Covid havia me tirado, entre outras coisas, parte do olfato. No entanto, aquele lugar e aquela presença pareciam lentamente me ajudar a recobrar os sentidos perdidos.

Durante a sessão, entendemos que eu me sentia desarrumada como um náufrago que passou tempos sem se barbear, cortar o cabelo e tomar um banho quente. Também associei os anjos esquecidos com aquele reencontro comigo mesma, na porta da sala de espera, na forma de um abraço.

Quem era eu, passados esses dois anos de pandemia, longe daquele lugar? Daquela relação que sempre me fez sentir resgatada? E me dei conta de que não um anjo, mas uma parte importante de mim aguardava um resgate desde que saí por aquela porta, anos atrás, para sobreviver em um mundo doente.

O encontro (presencial) me ajudou a recuperar algo vivo, algo de sensível, talvez ingênuo, como um anjo bobo esquecido, que teve que ficar guardado naquele consultório para que eu pudesse sobreviver em um mundo novo e caótico, em desespero silencioso como dos náufragos de Bion (2017).

Talvez as sessões por vídeo tiveram a importância de mensagens que flutuam sobre o oceano, em garrafas, para chegar até aquela ilha onde, naufragada, eu aguardava para ganhar fôlego e manter a espera. Durante toda a sessão, não houve muito que dizer, mas sentir. Começava mais um resgate... Saí da sessão me sentindo muito mais viva e perceptiva, e, ainda no carro, liguei para marcar um horário no cabeleireiro.

Conto essa experiência principalmente para exemplificar algo que acontece na análise presencial por se apoiar sobre elementos sensoriais presentes somente no espaço físico tridimensional. Por outro lado, chama a atenção o fato da análise se esparramar para além de um ambiente físico. Em casa, diante do espelho, dirigindo e entrando rapidamente no consultório para escapar da chuva, eu já estava na sessão. E continuei em análise quando saí e marquei um corte de cabelo, atuando um autocuidado que me acompanhou quando saí do consultório.

Penso ser importante notar que a pandemia foi um acontecimento que convidou mais veementemente ao recolhimento e refúgio na desvitalização. O modo sobrevivência, funcionamento elementar da condição humana frente às ameaças, necessita cuidado constante para não tornar-se crônico. Para alguns, manter a análise online pode ser um modo de manter-se na ilha, sobrevivendo com o mínimo necessário, enquanto a existência poderia ser mais vívida e abundante. Para outros, a análise online ainda é a única opção para este momento. Além disso, o convívio online foi fundamental para tornar possível a esperança e a sobrevivência psíquica durante o longo período de isolamento, como as garrafas que chegam trazendo lembretes de que há vida lá fora.
​
Assim, termino enfatizando que talvez tenhamos chegado ao momento de constatar que não há como eleger a melhor maneira de se encontrar para uma sessão. Mais importante que isso é a percepção de vitalidade ou desvitalização na análise, seja no encontro online ou presencial, para que sejam possíveis os regates cotidianos para que a mente sobreviva a tantos desastres pessoais, guerras íntimas, pandemias e naufrágios.
​

Referências:
BION, W. R. Seminário Dois. In: _____ Seminários Italianos. São Paulo: Blucher, 2017, p.31-46.
OGDEN, T. H. Analisando formas de vitalidade e de desvitalização. In: _____ Reverie e Interpretação: Captando algo humano. São Paulo: Escuta, 2013, p.35-68.
CARLOS, R. O portão. CBS, 1974. Disponível em: https://www.letras.mus.br/roberto-carlos/48648. Acesso em: 25 mai. 2022.
​

​
Por:
Raquel Mazo, psicóloga (CRP 06/112414) pela Unesp, mestra em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela Unesp e especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto IEP-RP (com efeito, especialista em Psicologia Clínica pelo CFP), e membro associado desse mesmo instituto. Psicoterapeuta de adolescentes e adultos na clínica psicanalítica de adolescentes e adultos, com consultório em Ribeirão Preto e atendimento online para demais localidades.
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TEXTO 32 IPÊ: "Entre luzes e sombras: veredas"

5/11/2022

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​A dor é uma estrada: você anda por ela,
no adiante da sua lonjura, para chegar a um
outro lado. E esse lado é uma parte de nós
que não conhecemos. Eu, por exemplo, já
​viajei muito dentro de mim... (Mia Couto
)

​

Em um mar de palavras: mergulha-se ou se submerge? É possível fazer um rasgo e divisar passagem? E o que se encontrará? Será uma paragem, uma parte do mar propícia à navegação? Ou haverá um clima tempestuoso, em mares turbulentos que, a qualquer momento, pode uma embarcação entornar? Haverá ilhas, em suas extensões cercadas - e ameaçadas! - por água por todos seus lados? Ou haverá um istmo, aquela porção estreita de terra que conecta duas grandes áreas emersas, recriando uma passagem e dois mares?

Realizar-se-á a profecia de um sertão que vira mar, em um transbordamento? Em que, em um sentido bioniano, o continente se rompe por forças... internas? Daí que o desaguar viria de dentro... Acessar tais forças não seria, pois, significado como ameaça a se evitar? Consistiria, então, a análise um perigo? Tendo, como pano de fundo, a ameaça e o temor que se apresentam: de a mente não oferecer guarida e sustentação a si. Ainda mais em uma situação que pode ser, no dizer de Bion (1992), ultrajante, em que o outro entra ou parece entrar na mente de alguém, e o terror correspondente. Mas qual perigo maior: conhecer-se ou não se conhecer? Eis a questão! 
Segundo o vértice do autor, a experiência emocional do encontro analítico e consigo mesmo é arriscada. Metaforizando o mundo interno a partir dessa perspectiva, pode-se aproximá-lo de um contexto de selva, de mata fechada, cuja exploração pode levar a abrir clareiras e fundar caminhos. Mas também à escuridão e estancamentos. Há aqueles “animais” domesticados, mas também aqueles não sonhados. Seriam esses “pensamentos selvagens”? Que qualidade seria essa? 

A esses, Bion (2009) atribui a característica de pensamentos que vagueiam em busca de um pensador, que podem vir a ser domesticados - e não domados -, tornados “residentes”, do lar, íntimos e familiares. Pensáveis e sonháveis. “Selvagem”, por sua vez, não remeteria a aspectos associados à ferocidade. Haveria a possibilidade de se captar e capturar tais pensamentos? Ou a “caça” suprimiria e subverteria o caçador/pensa-dor, que permaneceria ao largo daquela, distante da condição de se lhe oferecer hospedagem, ainda que temporariamente?

Poderia, a análise, partindo-se do modelo do sonho, configurar a possibilidade de domesticar, no sentido de poder captar, acolher, aconchegar, pensar, sonhar e, assim, quem sabe, não naufragar? Ou há também a possibilidade de a dupla submergir em mares turbulentos, não pensáveis ou sonháveis? Bion (2017) sinaliza que, da união que aproxima duas pessoas, a resultante pode ser o naufrágio ou uma jornada contínua. Tal qual a relação da dupla analítica, descrita como um trabalho difícil, análogo a se estar no mar, turbulento para ambos, analista e analisando, como pontua Bion (1994). Correria, pois, o risco de naufragar? 

Para Bion (1992), trata-se de uma relação a duas mãos, em que está em jogo o falar entre duas pessoas. O encontro analítico, ainda que perturbador (BION, 2017), possibilitaria o viver a experiência emocional, que também inclui a de ameaça - a do trans-bordamento (para além do que se pode conter) e do naufrágio. “O desenvolvimento da mente tem sido um incômodo terrível [...]” (BION, 2017, p. 79), de cujo contato emergiria uma turbulência emocional, essa sina de se ter uma mente com a qual lidar e con-viver. E que se precisa tolerar.

Como, então, atravessar esse ser-tão, onde também habita a dor mental? Aliás, que dor seria esta? Onde doeria? Seria possível acessá-la através de suas veredas? Áreas que permitem trânsito. Estreitas, com sua característica semiaridez e clima seco? Com a ameaça de invasão de que aquilo que súbita e violentamente irrompe possa arrebentar as cercanias, os arredores antes pensados conhecidos e, por sua vez, protegidos. “Travessia perigosa, mas é a da vida.” (ROSA, 2019, p. 440).

O ser-tão, a verdade, assim como nos diz Rosa (2019, p. 59) a respeito do real “[...] se dispõe[m] para a gente é no meio da travessia.”. Caminho o qual necessita ser percorrido se não quisermos restar à margem de nós mesmos. Não apenas pelo analisando. Pois que entre luzes e sombras, demasiadamente humano, também caminha um analista.

De que, então, necessita um analista em seu itinerário para afinar seu instrumental de trabalho? Não seria também, não só, mas sobretudo, a expedição rumo a si mesmo? Da qual um analista não escapa, dizendo de uma condição sine qua non para a gestação, o nascimento e o desenvolvimento de uma função analítica. Não sendo possível, ao ver de Bion (1994), ser analista sem conhecer tal turbulência emocional, equivalente a se estar em um tempestuoso mar... Aliás, o que faz de alguém um analista? Nasce-se analista? Torna-se um analista? Ou analista é um devir, um constante vir a ser que não se completa, no sentido de que não há um ponto de finalização, mas uma contínua formação, dependente do atravessar de seus próprios revoltos mares...

Pois não se engane, “[...] só aos poucos é que o escuro é claro.” (ROSA, 2019, p. 157). “É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 2019, p. 492). Em um “Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe.” (ROSA, 2019, p. 440). Afinal, “[...] podem ter pensamentos querendo nascer, querendo ajuda para sair para uma condição em que possam crescer e se expressar por si.” (BION, 2017, p. 124). Pois então, como divisar veredas?
​
Talvez a-ben-sonhar as próprias estórias e experiências, como propõe - tal qual um pensamento selvagem ao qual se ofereceu morada - um livro de Couto (1994). Para, quem sabe, chegar a outras partes de si. Tão estranhas quanto mais familiares, pois que próprias, como nos lembra Freud (2010). Mas que só se chega pela travessia. Penetrando e mergulhando em si mesmo. Cuja estrada impõe contato lonjuras adentro. Nas e através das fronteiras e turbulências internas. E que se dá a dois, acompanhado. É no junto com o outro que mais se aproxima de si. Como nos adverte Saramago (1999, p. 35), “O que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca, e é preciso andar muito para se alcançar o que está perto.”. Andemos, pois. Afinal, “Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.” (BOSI, 2003, p. 45). Entre compreensões internas e dores, luzes e sombras: veredas!
 

Referências:
BION, W. R.  Conversando com Bion. Quatro conversas com W. R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
BION, W. R. Clinical seminars and other works. Londres: Routledge, 1994
BION, W. R. Seminários na clínica Tavistock. São Paulo: Blucher, 2017.
BOSI, A. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2 ed., São Paulo: Duas cidades, 2003.
COUTO, M. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FREUD, S. O inquietante (1919). In: FREUD, S. Histórias de uma neurose infantil [“O homem dos lobos”], Além do princípio do prazer e outros textos [1917-1920]. São Paulo: Editora Schwarcz S. A., 2010.
ROSA, G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SARAMAGO, J. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


​
Por:
Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP (CRP 06/90086), Mestre em Ciências - Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEPRP.
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TEXTO 31 IPÊ: "VIDA: A GRANDE OLIMPÍADA"

3/11/2022

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Asian Civilizations Museum (2021). Russel Wong in Kyoto. Life in Edo (folheto).
Recentemente, lendo notícias sobre as Olímpiadas de 2020, me surpreendeu o desabafo sincero do Altobeli Silva sobre o seu desempenho na participação no atletismo. O atleta já foi finalista e medalhista em várias provas no Brasil e no mundo, tendo dedicado parte da sua vida ao esporte. Após chegar em décimo lugar na bateria eliminatória dos 3000m com obstáculos, desabafou: É uma decepção muito grande. A ponto de você analisar, será que vale a pena se dedicar? (GLOBO, 2021)

Acredito que essa pergunta possa ser comum a todos, ela deve ter aparecido na sua mente pelo menos em algum momento da sua vida. Quem sabe como com o atleta, quando nos dedicamos e ultrapassamos muitos obstáculos e não chegamos ao resultado desejado. E aí vem a decepção, dor, raiva, frustração e junto com tudo isso a dúvida, a pergunta quase inevitável: valeu a pena? Vale a pena se dedicar ao trabalho, ao emprego, a uma paixão, aos filhos, à família, à saúde, ...?

Pergunta complexa que parece sugerir uma resposta individual e subjetiva. Vou me permitir arriscar e divagar um pouco sobre ela, seguindo com uma associação de ideias, refletindo alguns temas que parecem estar envolvidos nessa situação. Os temas que me saltam aos olhos são a passagem do tempo, o valor atribuído a ele e a autoavaliação da atividade exercida. Para compreender melhor esses temas, faço a seguir uma reflexão sobre poesias e música da língua portuguesa do século XX, a arte japonesa dos séculos XV a XIX e ideias de Bion, psicanalista inglês do século XX.

Começo com Quintana com um trecho do poema Seiscentos e sessenta e seis: “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.  Quando se vê, já são seis horas: há tempo (...) quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, passaram 60 anos ... Agora é tarde demais para ser reprovado ...”

Esse trecho compara a existência humana com a lição de casa que trazemos da escola.  Se vamos adiando para fazer a tarefa porque não queremos, não sabemos ou qual for o motivo, adiamos a missão que temos na vida e deixamos de vivê-la em sua plenitude. Pode-se postergar por medo dos riscos ou ainda por dificuldades em compreender qual a missão destinada a nós mesmos. Em alguns projetos de vida arriscamos e investimos recursos, inspiração, transpiração e quando nos damos conta já se passou um bom tempo aplicado nisso. E aí? Não queremos ser reprovados, temos uma missão a cumprir e a vida é passageira.

Bom, se não dá para voltar ao tempo e começar tudo de novo, o que resta então com o que se investiu ou ainda com o que não pôde ser investido? E ainda, como avaliar esse percurso?

Divagando e com a ânsia de alguma resposta, lembrei-me de Pessoa e quem sabe você se lembrou também: “Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena.” 

Parece algo simples, uma resposta pronta, chavão. Podemos aproveitar tudo o que é vivido, de algum jeito, de alguma forma, se tivermos um coração nobre.  Explorando um pouco mais essa ideia, continuo com os versos desse mesmo poema, Mar salgado: “Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.”

Para o poeta, viver é arriscar, viver o incerto, superar o medo e fazer a travessia, com possibilidades de perder, de se frustrar, mas também de vencer e conquistar novos horizontes e desafios. A própria jornada pode ser fonte de prazer. No percurso pode-se hesitar, ter medo, mas se quiser prosseguir é preciso passar além da dor, porque nesse mar, além do perigo e frustração, há um encontro com o belo. Nos preocupamos com as tempestades, mas também podemos usufruir da calmaria e beleza de um céu azul. Poder enxergar o céu tão azul como o mar é viver uma experiência estética, uma beleza efêmera.

Há pouco tempo, numa exposição sobre o Japão no Museu da Civilização Asiática em Singapura, deparei-me com a arte do mundo transiente (ukyio), um gênero da arte japonesa. As figuras e pinturas (ukyio-e) retratam a captura de momentos fugazes na vida humana de forma bela, como paisagens, beleza feminina, flora, fauna, dentre outros.  O interessante é que alguns dos temas retratam momentos da vida cotidiana, como cuidados com a higiene pessoal, conversa entre pessoas, sorrisos, afagos em animais de estimação etc. A arte retrata a passagem do tempo sendo apreciada em sua própria finalidade.

Ressalto o que parece ser da dificuldade humana atual em apreciar a trajetória e o tempo investido principalmente quando o resultado é o insucesso. É muito prazeroso apreciar a passagem do tempo quando ela converge numa vitória, mas o sabor da derrota é amargo. Além disso, há muitas vezes o peso de carregar sozinho o resultado não alcançado. O fracasso pode ressoar como um problema interno do indivíduo, ideia muitas vezes relacionada à mentalidade contemporânea, segundo a qual, a autonomia e a responsabilidade são inteiramente atribuídas à pessoa.

Em muitas culturas, o insucesso pode ser visto como uma inadequação individual que não sofre influência do contexto social. As pessoas bem-sucedidas são até mesmo veneradas e às fracassadas resta nenhum apreço.  Existem muitas discussões acerca dessa temática, mas por aqui não vou me alongar e sim pontuar que a experiência individual não está delimitada apenas ao indivíduo, ela é também coletiva.  A apropriação da experiência vivida leva em conta o grau de percepção da nossa realidade interna (quem somos, o que queremos) e da realidade externa (o ambiente social, as pessoas, acontecimentos).

Verificar o que aconteceu na realidade, buscar a verdade interna e externa exige coragem, pois a realidade nem sempre é aprazível ou bem-vinda. Em um artigo intitulado Como tornar proveitoso um mau negócio, o psicanalista Bion (2000) aborda a capacidade humana de transformar uma circunstância adversa num resultado bom. Não que sejamos obrigados a fazer isso. Pode acontecer de não desejarmos ou não sermos capazes de modificar uma situação para que ela seja mais bem aproveitada, seja por uma dificuldade pessoal ou por um impedimento num contexto mais amplo.  Entretanto, quando há a possibilidade de transformar uma conjuntura em algo mais prazeroso, precisamos fazer uso da nossa capacidade de pensar.

Quando avaliamos o que nos ocorreu, podemos experienciar algo da ordem do desprazer.  No extremo do desprazer, a vivência pode estar embebida em frustrações e privações. A dor, tristeza, raiva e agonia podem ser vividas intensamente. Nesse momento, pode ser desafiador pensar sobre o que foi vivido e experimentado como desagradável. A autoavaliação pode ficar prejudicada.

Bion (2000) compara essa situação de pensar no que é desprazeroso com situações de guerra. É como se estivéssemos num campo de batalha à frente do inimigo.  Nessa condição, o objetivo do inimigo é fazer com que fiquemos aterrorizados e não consigamos pensar com clareza.  Para enfrentar as batalhas é interessante pensar com clareza, apesar da situação ser desfavorável. A avaliação lúcida da realidade é muito vantajosa.

Fazer perguntas, assim como fez o atleta, nos ajuda a refletir sobre os acontecimentos e avaliar a realidade na qual nos encontramos.  A reflexão é subjetiva, ou seja, não existe uma resposta igual para todos. Cabe a própria pessoa avaliar sobre a missão que se propôs a cumprir e as vocações e habilidades que emprega para isso. A reflexão é ainda mais desafiadora em momentos adversos, onde o uso do pensamento e atenção à realidade se fazem prementes.
​
Finalizo esse texto com a avaliação que Gonzaguinha fez sobre o sentido da vida. Ele compôs um samba como pergunta-desafio. O título da música faz referência aos jogos de adivinhação feito pelas crianças: O que é, o que é?  Seguem alguns dos versos: “Cantar ... a beleza de ser um eterno aprendiz (...) somos nós que fazemos a vida. Como der, ou puder, ou quiser”.
 
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Referências:
BARBOSA, I.V.; THOMAZELLI, P.P.; LAMAR, A.R. Lágrimas salgadas: Uma análise sobre o poema mar português de Fernando Pessoa e o refúgio sírio pelo mar mediterrâneo. In: Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação ISSN 1981-9943 Blumenau, v. 11, n. 1, jan./abr. 2017, p. 64-77.
BION, W.R. Como tornar proveitoso um mau negócio. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. VII, número 3, dezembro 2000, p.491-501.
GONZAGUINHA, O que é, o que é? Disponível em: https://www.letras.com/gonzaguinha/463845 Consulta realizada em: 03/11/2021.
GLOBO Altobeli Silva desabafa após 10º lugar: "Será que vale a pena se dedicar?" Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/altobeli-silva-desabafa-apos-10o-lugar-sera-que-vale-a-pena-se-dedicar.ghtml Consulta realizada em 31/07/2021.
QUINTANA, M. Seiscentos e Sessenta e Seis. Disponível em https://www.pensador.com/frase/MTA4NTY2NQ/  Consulta realizada em 03/11/2021.
PESSOA, F. Mar Português. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/ODM2OTU/ Consulta realizada em 03/11/2021.
 

Por:
Deborah Maria Amed Ali de Moura
Psicóloga de orientação psicanalítica (CRP - 06/51668), atualmente residente em Singapura
debmaa.moura@gmail.com

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TEXTO 30 IPÊ: Eu SOU PORQUE NÓS SOMOS

11/19/2021

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​Ubuntu significa: “Eu sou porque nós somos” ou, em outras palavras “Eu só existo porque nós existimos”. Ubuntu é uma palavra das línguas Zulu e Xhosa, faladas na África do Sul, que exprime um conceito moral, uma filosofia, um modo de viver bem diferente do individualismo tão presente em nosso modo de vida ocidental (DOMINGUES, 2015).


Muito tenho me perguntado a respeito de como temos vivido e se, como seres humanos, temos sido capazes de sustentar nossa vida em conjunto. Freud (1930), em seu texto muito lembrado em nossos tempos, “O Mal-estar na cultura”, afirma que a tensão entre as demandas do indivíduo e as demandas da civilização sempre se fará presente, pois o indivíduo terá que realizar renúncias pulsionais em favor da vida em coletividade. Diz assim: “O poder dessa comunidade opõe-se então como “direito” ao poder do indivíduo, poder esse que vai ser condenado como violência bruta. Essa substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade é o passo cultural decisivo. (pág. 344)”.

Em março de 2020, vivemos estarrecidos a experiência de, aos poucos, nos darmos conta, de que uma pandemia se espalhava pelo mundo e em consequência, nossas rotinas e hábitos teriam que ser mudados forçosamente. Na ocasião, o mundo parou: assistimos a vídeos surpreendentes em que lugares turísticos normalmente lotados de gente, apareciam vazios e silenciosos. Era voz corrente que a experiência seria transformadora para a humanidade. Nós, que levávamos vidas frenéticas e que não podíamos parar, pois tínhamos que ser produtivos e prová-lo a todo momento (Provar para quem? A nós mesmos? Ao vizinho? Ao banco do qual tomamos o último empréstimo?). Era certo que nossas vidas individualistas e autocentradas não seriam mais as mesmas: percebíamos que não era tão importante assim ir ao shopping, fazer compras e frequentar bons restaurantes. Ficamos em nossas casas e as descobrimos - casas que, em muitos casos, antes pareciam meros dormitórios, tal a extensão do dia de trabalho e afazeres de seus moradores… Ailton Krenak (2019), escritor e ativista das causas dos povos originários, se tornou presença constante em eventos on-line e seus livros “Ideias para adiar o fim do mundo” e “A vida não é útil” se apresentaram como urgentes e necessários. Afinal, o mundo parecia estar acabando ou, pelo menos, aquele mundo ao qual estávamos habituados. Era tempo de cuidarmos uns dos outros, pensarmos no coletivo e repensarmos nossa relação com a natureza: enxergarmos a nós, humanos, como centros do mundo e como os donos da terra e dos recursos naturais (o que tem sido chamado de Antropoceno), não tem sido um bom caminho. A natureza está nos cobrando seu preço, pandemia e as urgências climáticas estão acontecendo, fenômenos de clima extremo em vários pontos do planeta - tudo ligado ao desmatamento e ao consequente aquecimento global. Tudo isso nos assombra, embora os ambientalistas viessem nos avisando há tempos…

Urgência climática e urgência sanitária: ares de fim de mundo! A emergência sanitária nos trouxe a necessidade de refletirmos sobre o conceito de liberdade. Quando o corpo de qualquer um de nós pode ser o portador de um vírus muito contagioso, até onde vai nossa liberdade de tomarmos decisões sobre ele, decisões sobre ir e vir, de usar ou não máscara e etc? Era hora, sem dúvida, de priorizar o coletivo, de cuidar dos mais velhos, dos mais vulneráveis. Inclusive porque, quando atingidos em sua saúde, isso atingiria a todos, pois o sistema de saúde se sobrecarregaria e as chances de todos, de receberem tratamento, diminuiriam. Nunca nos ficou tão clara nossa dependência do outro, dos muitos outros e de dispositivos de amparo fortes como sistemas públicos de saúde e campanhas de vacinação.

Mas após alguns meses de pandemia, os países do Norte (com seus casos mais controlados) começaram a retomar suas rotinas e nós, abaixo do Equador, com números altíssimos de casos e mortes, também iniciamos a volta à “normalidade”. Parecíamos ávidos por circular e voltar à vida frenética. Mas e aquela transformação da humanidade? E a vida mais calma que levaríamos? Que nada: logo vimos filas em shoppings, pessoas enlouquecidas para comprar e comprar, para se divertir em bares e baladas e nas praias novamente lotadas.
Hélio Pellegrino, psicanalista e pensador do Brasil, escreveu um texto seminal em 1990: “Pacto edípico e pacto Social”), onde coloca que as renúncias que todos realizamos em favor da civilização pressupõem ganhos em troca: a inserção na ordem social. Em outras palavras, perdemos, mas ganhamos, pois ingressamos na ordem simbólica e ganhamos as ferramentas para nos construirmos como sujeitos. O que será que vem acontecendo com esta ordem simbólica, que parece não garantir a todos os indivíduos que encontrem seu lugar no mundo? Muitos chamam nossos tempos de “tempos de ódio”: as interações parecem se constituir de forma a aprofundarem as exclusões e a lógica de que “Eu existo porque sou melhor que você. Eu sou e você não é!” Freud (1930), no texto citado, fala sobre o narcisismo das pequenas diferenças, como um elemento que se faz sempre presente.

As más notícias não param em nosso país: no momento, passamos pela maior crise hídrica de nossa história, o Brasil voltou ao mapa da fome, o desemprego é enorme. Mas esses problemas nos incomodam? Nos afetam verdadeiramente, provocando turbulências e tomadas de atitude? Artigo recente do UOL (COLUCCI, 2021) parece bem sugestivo: “Efeito Zoom faz pessoas acharem nariz feio e gera onda de rinoplastias”. O aumento de videoconferências gerou uma preocupação e desconforto com os próprios corpos e os próprios narizes. Com os próprios umbigos??  Christopher Lasch, em livro de 1983, A Cultura do Narcisismo, expõe uma tese de que a ameaça nuclear advinda da guerra fria teria exposto a humanidade a tal vulnerabilidade, que, juntamente a outros fatores, teria provocado uma verdadeira cultura narcísica (indivíduos superficiais, consumistas e auto voltados) - entendo que por desespero e necessidade de sobrevivência. Será que vivemos algo parecido neste momento? Então, ao mesmo tempo em que situações de calamidade despertam a solidariedade e o senso de coletividade, podem provocar, por outro lado e inconscientemente, o efeito “contrário”: um movimento das pessoas se voltarem mais ainda a si mesmas, querendo se proteger e proteger aos “seus”. Em nossas clínicas, observamos que o narcisismo recrudesce em situações de desamparo e vulnerabilidade.

Há alguns anos, comentei um filme inglês chamado “Um Grande Garoto”. Nesse filme, o protagonista começa debochando do belíssimo poema de John Donne (2007) que diz: "Nenhum homem é uma ilha” dizendo “Que nada! Esta é a hora das ilhas!” Ele diz que, com tantas coisas legais às quais ele tem acesso e pode comprar, não depende de ninguém para ficar bem e ser feliz. Este personagem, raso e cínico, é emblemático: consumir é muito mais importante que formar vínculos afetivos.

Vivemos um paradoxo: momento de redescobrir que “nenhum homem é uma ilha”, momento em que vemos as pessoas precisarem, como nunca, se afirmarem como ilhas auto suficientes e autocentradas. E agora?
 
Nenhum homem é uma ilha, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”, John Donne (excerto meditação XVII, 1630).
 
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Referências:
DOMINGUES (2015) https://ensinarhistoria.com.br/ubuntu-o-que-a-africa-tem-a-nos-ensinar/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues.
FREUD, S. (1930). O Mal-estar na Cultura, in Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
KRENAK, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo, Cia das Letras, 2019.
KRENAK, A. (2019). A vida não é útil, Cia das Letras, 2020.
PELLEGRINO, H. (1983). Pacto Edípico e Pacto Social.  Folhetim da Folha de São Paulo, setembro de 1983.
COLUCCI, C. (2021). Efeito Zoom faz pessoas acharem nariz feio. https:// www1.folhauol.com.br
LASH, C. A. (1983). Cultura do Narcisismo, Rio de Janeiro: Imago Editora.
DONNE, J. (2007). Meditações (edição bilíngue). São Paulo: Editora Landamark.

 
Por:

Josimara Magro Fenandez de Souza é Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Coordenadora da V Bienal de Psicanálise e Cultura (2020-2021) da SBPRP. Coordenadora do grupo Múltiplas Manifestações da Sexualidade e do Núcleo de Reflexão sobre psicanálise e mal-estar na cultura, da Diretoria de Cultura e Comunidade.
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TEXTO 29 IPÊ: A Mente aprisionada

10/12/2021

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“Criança geopolítica observando o nascimento do novo homem” - Salvador Dalí, 1943, óleo sobre tela.

Durante a atual pandemia do novo coronavírus, muitos desafios vieram se colocando diante de nós. Dentre eles, pode-se destacar a adaptação ao isolamento social, a prática de uma nova rotina, mais restrita, forçando-nos a permanecer mais tempo em casa, trazendo-nos a vivência do medo constante de alguém que amamos, ou de nós mesmos, sermos infectados pelo vírus. Por si só, todo esse contexto já é bastante inquietante, mas, direcionando o olhar para os indivíduos que possuem um funcionamento psíquico prevalentemente obsessivo, é possível observar algumas particularidades.


A neurose obsessiva pode ser compreendida como uma neurose na qual “[...] a interdição principal e núcleo (…) é a de contato, daí o nome 'medo do toque'” (FREUD, 2012, p. 54). O sujeito obsessivo se vê preso diante de uma cadeia de ideias intrusivas, repetitivas e angustiantes, encontrando nos comportamentos compulsivos o único modo de lidar com elas, tentando anulá-las. O obsessivo acredita (ao mesmo tempo que, em contatos frustrantes com a realidade, duvida) ter uma borracha mágica, com a qual ele poderia apagar tudo de desagradável que passasse em sua mente, pois, o que ele pensa, ele acredita que se tornaria realidade. Em princípio, alguns poderiam achar que isso é uma grande vantagem: já que o que é pensado se realiza, a solução é só pensar em coisas boas! Porém, aí está o sofrimento do sujeito: as ideias intrusivas aparecem predominantemente com conteúdos negativos, sendo sentidas como um sofrimento que precisa ser eliminado com urgência.

Observo que é comum que o obsessivo se sinta culpado por tudo de ruim que acontece em sua vida, e logo se condena; é seu mais cruel algoz. “É desnecessária uma ameaça de castigo externa, pois há uma certeza interna (uma consciência) de que a transgressão ocasionará uma intolerável desgraça” (FREUD, 2012, p. 54). É como se sua mente vivesse acorrentada, impedida de voar e se expressar de modo criativo e livre. O que será encontrado se o sujeito se lançar nessa liberdade? Que desejos apavorantes são esses que ele precisa ocultar a custo da própria paz mental?

A ideia intrusiva passa pela sua mente e o sujeito se assusta; ele precisa então pensar em algo bom ou fazer algo que pareça anular essa ideia ruim. O problema é que, além desse mecanismo, raramente o obsessivo consegue fazer isso uma vez só: permanece a sensação de que não foi realizado de modo correto e suficiente, e precisa ser feito ou pensado de novo. E de novo. E de novo. E mais uma vez. Atos sentidos como perda de tempo, que geram uma verdadeira exaustão mental, mas que são vistos como a única maneira que o sujeito encontra para se livrar temporariamente do que o atormenta. Em “Totem e Tabu” (1912-1913), Freud (2012, p. 56) descreve que “as proibições obsessivas trazem consigo formidáveis renúncias e limitações da vida”.

Pensando em termos do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), pode-se considerar que este apresenta sintomas que o sujeito consegue, sem muita dificuldade, esconder de outras pessoas de sua convivência, sendo vivido silenciosamente por muitos anos sem que ninguém saiba, até que, devido à crescente gravidade, o sujeito busca ajuda. Devido à presença das preocupações intensas, dos rituais e das ideias obsessivas de culpa, o TOC pode ser muito confundido com outros transtornos, como os de ansiedade, os depressivos e os alimentares (APA, 2014).

Atualmente, devido à pandemia da COVID-19, o sujeito com predominância do funcionamento obsessivo precisa enfrentar ainda mais desafios: como não ser inundado por mais ideias apavorantes de tragédias e contaminações? Como lutar contra algo que antes estava “só” em sua mente e que ele podia fazer uso da realidade para se questionar, mas que agora é a realidade e o cotidiano de muitos outros? Manter distanciamento, higienizar-se constantemente, proteger-se contra todo perigo que vem do exterior que pode ser mortal para si e para quem ama: como vivenciar tudo isso sem recorrer aos sintomas, sem acreditar que o que o salvará é um ambiente estéril, sendo que este, na verdade, é exatamente o oposto, é aquele em que não há vida, potencialidade e crescimento. Será que o obsessivo se permite entrar em contato com sua potência e vitalidade sem se sentir destruído por elas?

Um grande desafio se impõe! Com os agravamentos contextuais como de uma pandemia causada por um vírus altamente contagioso, como o novo coronavírus, as pessoas com tais funcionamentos de predominância obsessiva merecem olhares e cuidados atentos. Que aqueles que sofrem da “doença do tabu” (FREUD, 2012, p. 53) possam buscar ajuda e encontrem terrenos de fertilidade em suas mentes, percebendo que até mesmo aquilo que é considerado perigoso, contagioso e destruidor tem espaço para existir sem causar tanto mal. Renunciando à fantasia onipotente de controle dos objetos internos e externos e acreditando nas próprias capacidades de lidar com o imprevisível e as frustrações, o sujeito obsessivo pode, aos poucos, entrar em contato com o novo, com o transformador. Entendo que a psicanálise se refere justamente a isso, ou seja, à possibilidade do encontro entre analista e analisando gerar o nascimento do novo, de capacitar o analisando a descobrir seus recursos para entrar em contato com o que o assusta e a transformar em liberdade aquilo que o aprisiona.
 
Agradeço ao Departamento Científico do IEP por oferecer a possibilidade aos alunos de também terem um espaço de expressão de suas reflexões.
 
 
Referências:
American Psychiatric Association (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
FREUD, S. Totem e Tabu (1912-1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Sigmund Freud - Obras Completas, v. 11, 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,  p. 13-244.

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Por: 
Natália Palomares. Psicóloga clínica (CRP: 06/150493), formada pela Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP. Aluna do 2º ano do curso de Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas do IEP. Contato: natalia.palomares@hotmail.com
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Texto 28 IPÊ: O fanatismo como manifestação do mal-estar contemporâneo

8/15/2021

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Golconda (Rene Magritte)
Ao ouvir os noticiários pela TV, acompanhar notícias em redes sociais, ou ler as manchetes dos principais jornais, a temática do negacionismo e do fanatismo tem sido presença garantida. A atualidade do tema, todavia, não faz com que surjam explicações para o fenômeno, fazendo-se necessário aprofundar o conhecimento das possíveis causas que têm nos levado a um crescente aumento do fanatismo entre nós.

A presença de visões unilaterais, que simplificam a visão sobre determinadas situações, se evidenciaram em fenômenos sociais de ordens fanáticas, racistas, xenofóbicas e manifestações agressivas de intolerância, que começaram a se aproximar cada vez mais do nosso cotidiano, trazendo consigo nuances de um processo de desumanização. 

Mais recentemente, a polarização política em nosso país vem expondo uma forma importante de fanatismo: grupos  negacionistas, defensores da terra plana e criadores de teorias conspiratórias, idolatrias a líderes políticos oriundos de qualquer posicionamento, que se mostram impenetráveis a confrontações racionais, proibindo o exercício da dúvida. 

Outra questão importante que observo se detém em comportamentos de algumas pessoas frente à pandemia causada pelo novo coronavírus. Pessoas de nosso convívio aceitando e esperando a vacinação e outras se negando a vacinarem-se, ou até mesmo, alguns líderes minimizando a gravidade da doença, e desestimulando a prática do distanciamento social e o uso de máscaras. Tais comportamentos, sob meu olhar, podem gerar na população, dúvidas sobre a necessidade de se imunizar de um vírus potencialmente fatal, e apoia  comportamentos desfavoráveis ao controle da pandemia. 

 À primeira vista, parecem ser fenômenos absolutamente irracionais e ilógicos, afinal, esbarram na questão da própria sobrevivência, o que em qualquer espécie é um chamado imperativo. Afinal, o que explica então pôr a própria vida em risco ou até mesmo desejar consciente ou, inconscientemente, a própria morte através da defesa de uma ideia? Poderíamos, numa tentativa de reflexão aberta, como a psicanálise nos permite e nos propõe, que olhássemos para estes comportamentos como manifestações de fanatismo? 

Considero que as contribuições da psicanálise possam nos auxiliar a compreender alguns aspectos de tal complexidade.  Em O Mal estar da civilização de 1930, Freud (2010) abordou a questão do eterno conflito entre as pulsões de vida e de morte, e o esforço constante para manter o pacto civilizatório à custa da repressão instintual. Concluiu que esse é um problema sem solução, no sentido de que, de tempos em tempos, algum tipo de mal-estar sempre estará presente, pois na medida em que um tipo de mal-estar é solucionado, outro entrará em seu lugar, pois essa briga – entre as pulsões e as repressões vindas da civilização – é eterna.

Podemos pensar, portanto, que ao longo do tempo há apenas uma renovação da roupagem sob a qual se apresentam os conflitos que ameaçam a civilização. Neste momento, o fenômeno do fanatismo - e sua apresentação sob a ótica do extremismo e da polarização - parece estar sendo uma dessas manifestações. 

De acordo com alguns autores, alguns acontecimentos contribuíram para o aumento do fanatismo na atualidade, tais como: a queda dos ideais iluministas a perda da importância da razão científica em função do fato desta ter sido idealizada como portadora de todas as respostas (ATLAN, apud MONDRZAK, 2020), a queda da “imunidade” adquirida pela humanidade após os horrores do nazismo e o desamparo suscitado pelo estilo de vida contemporâneo, onde a segurança em relação ao futuro é ameaçada, conduzindo a uma sensação de desemparo existencial que contribuiu para a busca rápida por certezas, em busca de sentir alguma segurança (OZ, 2016). 

Cassorla (2020) nos auxilia nesta compreensão, ao afirmar que “[...] em tempos mundiais de ‘nós contra eles’, o lado fanático de todos nós é facilmente estimulado. Para o autor, o fanático é um indivíduo que apresenta dificuldade em lidar com o diferente e possui uma rígida configuração narcísica, cujas defesas impedem um legítimo contato com o outro. Ele ressalta que “na mente fanática não há espaço para a alteridade, para o outro, para lutos, culpa ou reparação”. Coloca também que o fenômeno do fanatismo pode ocorrer tanto em mentes psicóticas como em não psicóticas, mas diferencia dizendo que “O fanático procura adeptos, o psicótico não” (CASSORLA, 2020). 

Outra distinção interessante colocada pelo autor, se dá entre o fanático e o mentiroso: “O fanático acredita na sua ‘verdade’, uma vez que deformam a realidade por conta de seu funcionamento mental, enquanto o mentiroso tem consciência de que o que disse é uma mentira”. (CASSORLA, 2020).

Já Ferrari-Filho (2020), define o fanatismo como “uma paixão excessiva que transforma o pensamento do indivíduo” e que, a depender da maneira como o aparelho psíquico irá lidar com a pulsão de morte, o fanatismo poderá estar mais ou menos presente.

O fanatismo também apresenta ligações com o narcisismo, pois pessoas que tiveram falhas na estrutura primária, caracterizando um narcisismo pouco nutrido na infância primitiva, apresentam um predomínio do chamado narcisismo de morte, onde há desesperança e desconfiança básica (FERRARI-FILHO, 2017).  Lidar com a diferença, com o que é ameaçador, aciona defesas muito primitivas, gerando insegurança e incertezas ligadas a núcleos primitivos e à sensação de desamparo  que, quando surgem imersas a um caldo cultural de extremismos e polarizações, compõem uma fórmula muito favorável para a adesão a ideias fanáticas (MONDZARK, 2020; FERRARI-FILHO, 2020; SOR e SENET, 1992, apud MONDRZAK 2020). 

O senso de pertencimento proporcionado por aderir a uma causa ou ideal mostra-se como o cerne da questão, funcionando como uma poderosa defesa frente ao desamparo. Todos nós, em busca de identificação e pertencimento, podemos nos inserir em grupos e caracterizar o que é denominado fanatismo benigno, como por exemplo,  agremiações esportivas e inúmeros grupos nos quais partilhamos afinidades. Porém, passa a ser um fanatismo marcado pela malignidade quando envolve a exclusão, a destruição e a desumanização do outro (MONDRZAK, 2020)., O que parece se apresentar no movimento negacionista fanático anti-vacina, que cito anteriormente. 

Embora Freud tenha concluído, em O mal-estar  na civilização (2010) que seria sempre necessário algum esforço para a manutenção do pacto civilizatório e de ter reforçado que sempre haveria a presença do mal-estar entre nós, deixou-nos como legado seu profundo conhecimento sobre a natureza humana e a dualidade que nos habita. 

Considero que essa dualidade ilustra o potencial destrutivo tão bem representado pela pulsão de morte, mas que pode ser sobrepujado pela infinitiva força criativa da pulsão de vida, que se manifesta na solidariedade, na arte, na música, na ciência e em tudo que trabalha em prol do desenvolvimento humano. Não por acaso, os governantes autoritários, líderes políticos adeptos a ideais fanáticos tratam logo de impor censura e destruir o que representa a arte, a literatura, a educação e o conhecimento, ou seja,  investem na desumanização. 

Quase cem anos se passaram da referida publicação de Freud, e continuamos sem uma resposta definitiva, afinal a natureza humana e a luta pulsional permanecem iguais. Assim como uma vacina pode nos imunizar sendo criada a partir de seu próprio vírus, podemos conjecturar que a agressividade nascida das relações, pode também encontrar sua “imunidade” através delas próprias. Para tanto, a força de eros, presente através de nossa esperança e do incremento de saídas sublimatórias para as dores e conflitos individuais e coletivos, deve se fazer presente, para que predomine sobre thanatos,  proporcionando que a civilização predomine sobre a barbárie com o compromisso de que toda forma de desumanização deva ser denunciada e combatida.

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* O IEP-RP não se responsabiliza pelo conteúdo dos artigos e informações aqui publicadas, uma vez que os textos são de autoria e responsabilidade exclusiva de terceiros e não traduzem, necessariamente, a opinião do instituto.


REFERÊNCIAS:
CASSORLA, R. Entrevista cedida ao Diário de Pernambuco em  14/03/2016. Disponível em www.diariodepernambuco.com.br Consulta realizada em 20/06/2020
FANATISMO ep.#15. Entrevistado: Dr Carlos Augusto Ferrari Filho. Entrevistadora: Lívia Hartman de Souza. CelgCast. Porto Alegre, Centro de Estudos Luis Guedes, 04/08/2020. Podcast. Disponível em https://open.spotify.com/episode/5dR2lMLVbIFNwJyQPUjT2A?si=B9MGgkKLTVyz9YkRxxoDVw&utm_source=copy-link Acesso em: 10/12/2020
FERRARI FILHO, C.A. Odeio, então existo! Fanatismo, uma linguagem (possível?) ao narcisismo de morte. Revista de Psicanálise da SPPA, Porto Alegre v. 24, n.3, p.571-585, dez 2017
FREUD, S. (1930 [1929]) O Mal estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010
MONDRZAK, V. Quinta Científica: Pensamento fanático. Youtube, 18/08/2020. Disponível em: https://youtu.be/yaujjPBSQzM Acesso em 27/11/2020
OZ, A. Como curar um fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016
OZ, A. Mais de uma luz: Fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017
ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016

Por: Celi de Souza, psicóloga, graduada pela Universidade Estadual de Londrina. CRP 06/50.533-9. Fez especialização em Dependência Química (Unifesp), Transtornos Alimentares e Obesidade (HC/USP) e em Teoria e Técnica Psicanalítica (IEP/RP).
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Vídeo 05 IPÊ: Donald Meltzer: Dimensionalidades e Identificação Adesiva

7/3/2021

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​Produzido por: 
PATRICIA RODELLA DE ANDRADE TITTOTO
Psicóloga, Psicanalista (Membro Associado da SBPRP). Procuradora incessável de tentativas de diálogos com as artes plásticas, a dança, fotografia, música, literatura e poesia.
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Texto 27 IPÊ: Da Potência da Vida

5/29/2021

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Gravura Anna Cunha (2016)
“O que tem que ser tem muita força.”
​(Guimarães Rosa)

É a lei da vida. Esta força que urge por existir. Que encontra seu curso e meio de se manifestar. E desabrochar também. Mesmo em inóspitos tempo e espaço. Em meio a relações desérticas, isoladas e ilhadas. Pois que, no mais insuspeitado momento, em meio à náusea do mundo, eis que “[...] uma flor nasceu na rua!” (ANDRADE, 2012, p. 14).

Também é a lei do inconsciente, que comunica a despeito da falta do concreto. Pois que, para se enxergar, não bastam os olhos. Posto que também se capta aquilo que nem mesmo se vê - com os olhos, frisa-se. Mas qual não era o medo de, em tempos pandêmicos, de atendimento psicológico online, não saber como nem quando comunicar a vida que vem? Esta, que diz da gestação da analista, que, em tempos anteriores, introduzia-se pelo despontar da barriga, fazendo-se até mesmo presença intrusiva. Revelando-se, outrora, concretamente aos órgãos dos sentidos, o que, por sua vez, não garantia visão, nem captação, o que dirá compreensão e elaboração. Mas, hoje, através de uma tela, ou menos, por meio de um áudio, essa força se manifestaria? Em caso positivo, como? Do que uma questão se impunha, entre curiosidade, receios e inquietações: como comunicar - anunciar ao paciente ou, então, aguardar, pois a gestação encontraria uma via para se expressar?

Se existe uma força que faz furo no concreto - ou no asfalto -, que é a de Eros, como força criadora, necessitava, pois, acreditar no que entoam Brandt e Nascimento (MARIA MARIA, 1978): “É preciso ter sonho sempre / Quem traz na pele essa marca possui / A estranha mania de ter fé na vida.”. E, nós, ainda mais: no inconsciente e em sua potente comunicação, que encontra seu curso, por vias deveras insuspeitadas. E variadas, dependentes inclusive da relação da dupla que se forma, em suas espectrais manifestações. E veredas transferenciais. 

Aquelas que convocam a presença viva da díade que se encontra no agora e então. Que falam de duas pessoas que se relacionam, não lá fora, mas aqui dentro, não limitado ao espaço físico de uma sala de atendimento. E que hoje mais que se estende, alcança as fibras digitais, como veios que irrigam nascentes e raízes que se fixam e absorvem os nutrientes. Pois o dentro é o que se conjura no espaço do encontro. Tendo o inconsciente a marca pungente, comunicando-se, mesmo na via online, com ou sem imagem. Posto que as transformações da gestação não se limitam ao físico, abarcando o psiquismo da analista gestante e suas reverberações. E suas relações também.

E o que dizer então, de um sentimento - culpa? - de provocar uma nova perturbação em um momento já deveras turbulento como o é da pandemia? Como se fosse possível manter tudo inalterado... Que potencializa uma cesura dentro de outra, aquele rachar do solo, desvelando suas marcas e composição. Para Bion (1981), cesura faz alusão a processos de ruptura, que, ao mesmo tempo que separam, implicam continuidade e trânsito na passagem de um estado mental a outro. E faz ponte. Travessia. Pois a cesura carrega em si a fecundidade daquilo que pode vir a ser.

Se, por um lado, modifica o solo, por outro abre espaço, permitindo que algo possa brotar, nascer. - Quem sabe uma flor e, claro, seus espinhos. Afinal: “Picasso pintou um quadro num pedaço de vidro de maneira que pudesse ser visto de ambos os lados. Sugiro que o mesmo pode se dizer da cesura: depende de que lado se mira, para qual lado se está indo.” (BION, 1994, p. 306). - Um nascer com toda a sua pulsionalidade interior, que, então, revela-se. A partir de abalos sísmicos, interiores, também existentes nas relações psicoterapêuticas. Abrindo novos caminhos e manifestações no atendimento clínico. Dizendo de fraturas que transitam entre manifestações de vida e de morte. De cujas aberturas e rachaduras não podemos nos esquivar se quisermos nos manter em nossa função analítica.

Que se dá na e através da transferência, pois que trabalhar a partir da cesura, investigando-a, é atravessá-la da perspectiva de dentro. É ousar, quem sabe, perturbar um universo mental, permitindo embrenhar-se no terreno do desconhecido rumo a novas construções. Possibilitando gestar um novo espaço que, ao mesmo tempo, propicia a gestação de um analista outro, o qual se reconstrói em meio à experiência. E que oportuniza inaugurar e iluminar frestas rumo a caminhos não antes explorados. O que ocorre na presença de um terceiro, esse ilustre desconhecido. Cuja força se faz sentir, mesmo quando ainda não nascido. 

Posto que a vida traz a potência daquilo que tem que ser, que, então, brota, como um ato de fé na vida, que prevalece. Capaz de ressignificar, gestar e fazer nascer até mesmo no mais concreto e insalubre dos tempos e terrenos. Pois que há o anseio, como propõe Bion (1994), uma força que urge para existir. Já dizia Hesse (2015, p. 73): “Quem quiser nascer tem que destruir um mundo [...]”, mesmo que seja um mundo um tanto quanto estilhaçado. Podendo dizer da transformação da concretude em algo vivo, que, então, floresce. Em outras palavras, diz-se do processo de poder dar à luz. Seja o bebê real, seja o simbólico, alumiando o que antes não podia ser re-conhecido. O nascer de novas relações, ou o renascer do vínculo em toda a sua inteireza, complexidade e humanidade.

É a vida encontrando seu curso, insistindo e teimando em continuar, recriar-se e pulsar. Resistir. Re-existir. Como nos embala Couto (2011, p. 70), “No oculto do ventre, / o feto se explica como o Homem: / em si mesmo enrolado / para caber no que ainda vai ser.”. Tal qual as relações, que se engravidam do seu devir, necessitando de um invólucro continente de cuja elasticidade tantos aspectos ainda não nascidos podem vir a germinar, já que, de “Parteiros gestos [...] a vida inteira vamos nascendo.” (COUTO, 2011, p. 5). E, das relações, nasce-se inclusive um analista. Pois, em tempos sombrios, também se encontram movimentos embrionários e fecundos, com toda a sua potência de vida. Ou, como eternizado nas letras de Tom Jobim e na voz de Elis, “É a promessa de vida no teu coração.” (ÁGUAS DE MARÇO, 1972). 

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Referências: 
ÁGUAS DE MARÇO. Compositor: Tom Jobim, 1972. Zen Produtora Cinematográfica e Editora Musical Ltda 1 CD.
ANDRADE, C. D. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012.
BION, W. R. Clinical seminars and other works. London: Karnak Books, 1994.
BION, W. R. Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 123-136.
COUTO, M. Tradutor de chuvas. Alfragide: Editora Caminho, SA, 2011.
HESSE, H. Demian. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.
MARIA, MARIA. Compositor e intérprete: Brant, F.; Nascimento, M., 1978. Rio de Janeiro: EMIODEON. 2 CD, CD 2, faixa 8.


Por: Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP - CRP 06/90086, Mestre em Ciências - Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEPRP.
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Vídeo 04 IPÊ: Convite "Disputa de Guarda: Quando a Casa não abriga" Seminário Clínico Online

4/25/2021

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Dia 30 de Abril teremos nosso primeiro Seminário Clínico de 2021 “Disputa de Guarda: Quando a casa não abriga”, e o IPÊ convidou as palestrantes para compartilhar um estímulo 
sobre o conteúdo que será abordado na apresentação do seminário, que contará com a apresentação de um caso do Judiciário, apresentado pela psicóloga Ms. Ana Flávia de Oliveira Santos, com comentários da psicóloga Dra. Ana Cristina Bragheto baseados em autores da Psicanálise como Di Loreto, Dolto, Winnicott, entre outros.

Esperamos que gostem do resultado do vídeo e que se sintam instigados a participar conosco de mais este evento científico do IEP-RP.


As inscrições são restritas a Psicólogos, Médicos e estudantes de Psicologia.

Será realizado via plataforma online das 20h às 22h.

Para realizar sua inscrição entre em contato com:
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(16) 99706-5419

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Trilha sonora: “A Casa” Composição: Marcus Vinicius Da Cruz De M. Moraes

Palestrantes:
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Ana Flávia de Oliveira Santos
é Psicóloga Clínica (CRP 06/90086) formada pela FFCLRP-USP, Mestre em Ciências - Área: Psicologia pela mesma Faculdade e Especialista em Psicologia Clínica pelo CFP. É Membro da Diretoria de Ensino - gestão 2020/21 e Titular do IEP-RP
 
Ana Cristina Bragheto é Psicóloga Clínica (CRP 06/74526), Dra. em Ciências pela USP-RP. É Membro da Diretoria de Ensino - gestão 2020/21 e Titular do IEP-RP.
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Texto IPÊ 26: Vacinar e ter a capacidade de sonhar

4/11/2021

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Obra de Marcos Tedeschi (2016, Óleo sobre tela)
O coronavírus não dá trégua: mesmo com a chegada da vacina, ainda temos que usar máscara, higienizar as mãos e evitar aglomerações. Como conviver com esta nova realidade? Nossa única saída é usar a mente, pensar, para suportar tudo isso.

E, diante do caos, finalmente ela chegou... A tão aguardada: vacina contra a Covid-19. A imprensa brasileira detalha o seguinte fato: “Após a aprovação do uso emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid-19 no Brasil. Ela recebeu o imunizante Coronavac, desenvolvido no país pelo Instituto Butantã, no Hospital das Clínicas de São Paulo” (SATIE, 2021). 

 Com essa notícia, fomos contagiados por uma grande euforia. Um estado que apresenta despreocupação, alegria e otimismo que, em pouco tempo, não correspondeu mais com a realidade. Pois, mesmo com a chegada da vacina continuamos perdendo vidas e enfrentando grandes desesperos. Assim, vamos contabilizando decepções e perdendo a capacidade de sonhar. 

Muitos de nós estamos perplexos! Percebemos que essa realidade do coronavírus expõe a nossa miséria. Não conseguimos isolar os nossos consultórios destas questões de morte, de luto e de perdas. E de um sistema individualista que apela ao lado narcísico de cada um. 

Hoje, mais do que nunca, precisamos ter uma mente para transformar tudo isso. Há uma imensidão de estímulos. Vivemos entre traumas, mortes e questões significativas da própria essência. Temos que pensar. Se não pudermos pensar, não temos escolhas. Ferro (2005) afirma que as situações traumáticas com grande quantidade de estimulação sensorial, atingem a capacidade operacional da função alfa. Ou seja, diminuem a capacidade de pensar e de sonhar. 

Precisamos construir pontes de simbolização, fortalecendo nosso aparelho de pensar, introjetando funções psíquicas elaborativas, utilizando o autoconhecimento, criando possibilidade e transformando a forma de lidarmos com o mundo. Necessitamos conhecer nossos pensamentos e sentimentos, passando por um processo de reflexão onde nos debruçamos sobre a parte mais escura de nós mesmos. Para isso, contamos com a ferramenta do processo analítico. 

Para Ferro (2013) a análise tem como um dos seus objetivos possibilitar ao paciente a capacidade de sonhar. Dessa forma, ele metaboliza a imensidão de estímulos que não foram assimilados e que provocam sofrimento.

Parece possível afirmar que a vacina oferece um paralelo simbólico interessante de benefícios, em comparação com o processo psicanalítico. A vacina é como um instrumento, assim como a análise, que auxilia a nossa capacidade de nos mantermos vivos, sentindo e pensando, mas que não nos impede totalmente de entrar em contato com o vírus ou dor psíquica. 

  A análise é um caminho que pode nos leva a manter a esperança, o sonhar, sem perder os pés da realidade. A vacina produz um determinado efeito, que pode ser comemorado, mas não exaltado como a resolução definitiva do combate ao coronavírus. Porém nada a ser comemorado, já que a eficácia da vacina não corresponde ao desejado. Temos, ainda, que se munir de meios para prevenção e tratamento, afinal o sistema de saúde está em falência. O resultado é que ainda não podemos abraçar familiares e amigos.

Nessa linha, retomando o paralelo com a análise, se esperamos que a análise seja a tábua de salvação de nossos problemas, que nos salvaria de um jeito mágico, nos livrando de qualquer dor, estaríamos, infantilmente, acreditando que a vacina nos protegesse e nos livrasse de qualquer mal, ou que elimine totalmente este vírus (o que não é verdade).

Assim sendo, temos que nos contentar com o fato de que a vacina auxilia o corpo a desenvolver defesa contra a Covid-19, mas ainda nos obriga a utilizarmos máscara, higienizarmos as mãos com frequência e respeitarmos o distanciamento social. Penso que o mesmo vale para a análise: nunca estaremos imunes à experiência de dor psíquica, mas através desse processo, poderemos encontrar mais recursos de enfrentamento e tolerância, aos ataques a um “corpo/mente” que consegue receber um “vírus”, e encontrar formas de enfrentar a dor. 

 
Referências 
FERRO, A. (2005). Fatores de doença, Fatores de cura-gênese do sofrimento e da cura psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago.  
FERRO, A. & BASILE, R. (2013). Campo analítico: um conceito clinico. Porto Alegre: Artmed.
SATIE, A. CNN em São Paulo – disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/02/12/enfermeira-monica-calazans-1-vacinada-do-pais-recebe-2-dose-da-coronavac. Acesso em 03 de março de 2021.

 
_______________________________________
Agradeço ao Departamento Científico do IEP por estar de braços abertos para divulgar os textos de seus alunos proporcionando a capacidade e pensar e de sonhar.  ​

Por: Cássia Maria Andrade Braghetto. Graduação em Psicologia (CRP:06/11.89.84) pela Universidade Paulista. Aluna do 2º ano do curso de Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas do IEP. 
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