Entrementes 2020, o privado tem sido mais exposto: pedaços da casa visualizados virtualmente de fora, parte de diálogos domésticos expostos na internet, cenas íntimas vazadas, bem como uma parte importante da vida, até então de competência mais individual, tornaram-se mais suscetíveis a uma ordem social. É de onde eu parto para aqui escrever, tentando localizar meu incômodo com uma exposição perante as câmeras de meus filhos em seus agora compromissos on line e, mais amplamente, desta redefinição da minha casa. Privado e social/público tem apresentado novos limites, que podem se encaminhar para uma confusão, ou para um endereço único. O quanto isso pode repercutir no funcionamento mental dos indivíduos e na díade terapêutica? Diante de algo novo, num contexto em que ainda não foi possível aprender pela experiência, estaríamos mais suscetíveis a agir sob pressupostos básicos?
Vázquez (2015) ressalta a suscetibilidade aos grupos de supostos básicos como defesa, havendo um desejo de proteção e gratificação advindas do grupo. Tais grupos, segundo Bion (1961/1975), parecem funcionar apoiados numa suposição básica, que nunca foi combinada previamente entre seus membros, mas que ocorre de modo inconsciente e automático. O autor considerava comum a estes grupos a valência, condição do indivíduo de “combinar-se instantaneamente com outros indivíduos segundo um padrão estabelecido de comportamento” (BION, 1961/1975, p. 163). Ele também observou que nos grupos de supostos básicos é comum a descrença na capacidade de aprender pela experiência.
Em linhas gerais, o funcionamento dos grupos de supostos básicos baseia-se na ação recíproca de uma tríade entre as necessidades individuais, a mentalidade de grupo e a cultura (BION, 1961/1975). A mentalidade grupal é a vontade do grupo expressa de forma unânime; a cultura grupal diz respeito aos comportamentos advindos do conflito entre a mentalidade grupal e aquilo que o indivíduo deseja, incluindo “a estrutura que o grupo atinge em qualquer momento determinado, as ocupações que persegue e a organização que adota” (Ibid, p. 47). Bion (1961/1975) descreve ainda que há uma tendência, por parte do indivíduo destes grupos, de ignorar qualquer atividade intelectual dissonante da suposição básica.
Neste sentido, Schneider (2015) afirma que os postulados de Bion envolvendo a relação entre a mente individual e sua capacidade para pensar, as mentalidades dos grupos nos quais o indivíduo está inserido e estados corporais deste constituem importante contribuição à psicanálise. Ele chama a atenção para a constante presença de fenômenos grupais, mesmo na díade analítica, reconhecendo mentalidades grupais na análise de indivíduos.
É possível considerar a colocação acerca de Margot, além de seu pertencimento ao grupo familiar, como fuga para fora da dupla: respaldado por um grupo (o acadêmico), fuga rumo a um logradouro coletivo. Em consonância com tal perspectiva, Kitty pode ser considerada um espaço salvaguardado, endereço particular, onde Anne pôde recolher e pensar seus próprios pensamentos. Reflexões acerca desses lugares parecem importantes para o trabalho analítico: ao fazer um apanhado do desenvolvimento de determinadas teorias psicanalíticas, Meltzer (2009) escreveu
Segundo essa teoria, toda função criadora considerada artística, científica, tem suas raízes na criatividade desses objetos internos e essa criatividade depende dos objetos internos terem permissão para retirar-se para sua câmara nupcial e renovar sua combinação um com o outro. Evidentemente, o trabalho psicanalítico nos faz saber que forças tremendas da personalidade se alinham para não permitir essa conjunção. (MELTZER, 2009, p. 406) |
Nestas considerações, Vázquez (2015) destacou que Bion considerou a verdade sendo oriunda de uma “verdade em comum”, estabelecida na relação mãe e bebê, com uma mãe “continente”, sentindo junto com o bebê e oferecendo tempo e espaço para suas necessidades. Neste contexto, Bion identificou a reverie da mãe como um dos fatores da função-alfa: “A capacidade de reverie da mãe é o órgão receptor da colheita de sensações que o bebê, através de seu consciente, experimenta em relação a si mesmo.” (BION, 1962/1994, p. 134). Cabe à função alfa desenvolver um caráter minimamente simbólico a estímulos e sensações brutas oriundas da realidade interna ou externa, tornando a matéria bruta da realidade pensável (BLÉANDONU, 1993). Se a função alfa falhar, os elementos, permanecendo brutos, somente se prestam à eliminação motora ou alucinatória, ou se produz pensamento concreto. O aprender com a experiência está atrelado à função alfa. Assim, sem a função alfa, não se pode sonhar (BLÉANDONU, 1993).
Vázquez (2015) explicou que, se houver fracasso deste processo, a capacidade de pensar fica comprometida, o que, somado à fragilidade humana, pode predispor o indivíduo a recorrer aos supostos básicos como defesa. Se bem sucedida, a relação mãe-bebê estabelece um continente adequado e o Outro passa a ter papel importante no desenvolvimento de recursos numa relação de cooperação, no sentido conferido por Bion, possibilitando o aprender com a experiência. Se assim for, abre-se possibilidade para o pensar, tanto em grupo quanto individualmente, com maior proteção em relação aos grupos de supostos básicos e mentalidade grupal.
No recorte trazido inicialmente nesta reflexão, se por um lado as colocações de Anne sobre Margot sugerem que esta não oferecia uma relação continente para suas particularidades, Anne sinalizou endereçá-las ao papel/função “Kitty”, “papel paciente”, conforme citado no primeiro parágrafo. Kitty extrapola as folhas do caderno de capa dura, constituindo um espaço com possibilidade de simbolização, podendo-se fazer uma aproximação com a função-alfa. Metaforicamente inseridos em anexo(s, secretos?), entrementes 2020, caberiam destinatários e remetentes desse papel, onde é possível sonhar? Sonhos? Estes, querida Kitty, são matéria para um outro dia.
__________________________
Meus agradecimentos especiais à Professora Dra. Adriana Salvitti, orientadora da monografia “Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell”, trabalho que baseou este artigo.
Agradeço ao IPÊ/IEP-RP o convite à escrita, em especial a Marina, Luís e Ana, pelos generosos espaços de trocas.
Referências:
BASTOS-FORMIGHIERI, M.S. Grupos e anti-pensamento: uma discussão de conceitos de Bion à luz de 1984 de George Orwell. Monografia (especialização) – FATECE/IEPRP, Ribeirão Preto, 2020.
BION, W. R. (1961). Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 2ª.ed.
_____. UMA TEORIA DO PENSAR (1962). Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.
BLÉANDONU, G. Wilfred R. Bion: a vida e a obra, 1897-1979. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1993, 268p.
FRANK, A. O diário de Anne Frank. Jandira, SP: Principis, 2018, 192p.
MELTZER, D. Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 26, n. 3, p. 397-408, 1992.
SCHNEIDER, J. A. Bions’s thinking about groups: a study of influence and originality. Psychoanalytic Quartely,vol. 84, n.2, p. 415-440, p. 2015.
VÁZQUEZ, S. Abrirse al pensamiento, abrirse al Outro: una reflexión sobre el respeto y la alteridad en Wilfred R. Bion y Emmanuel Lévinas. Desafios, vol. 27, n. 2, p. 187-217, 2015.